O padrinho

Os protetores são os piores tiranos.

(Diário íntimo, p. 34)

Começa a cavar-se o abismo. O estudante, pobre mas orgulhoso, era prevenido contra tudo e contra todos. O ambiente da Escola asfixiava.1 Sofria com a convivência obrigatória dos colegas ricos, de outra condição social que não a sua. Começou então a ver que a origem humilde o tornava diferente dos outros rapazes da sua idade, felizes e despreocupados, que passavam tranquilamente pela Politécnica sem maiores problemas que os de estudar e prestar exames, tirar o diploma de engenheiro civil e ostentar no indicador o vistoso anel de grau azul-safira.

Para estes, filhos de pais ricos, as coisas corriam docemente, deslizavam. Não tinham preocupações de ordem material, não precisavam economizar, vestiam-se nos melhores alfaiates, podiam comprar os livros que quisessem. E, mesmo que não levassem os estudos muito a sério, isso não teria maior importância. Contavam com as relações de família, os empenhos, os “pistolões”, que lhe abriam todas as portas, como num passe de mágica.

Nos tempos do colégio – nem no Liceu Popular Niteroiense, nem no Paula Freitas – não sentia Lima Barreto a diferença de classe, como aquele personagem do Gonzaga de Sá que, só depois de homem-feito, deu-se conta de sua condição, menosprezado por “olhares vesgos e idiotas”, que não se despregavam dele “nos cafés, nas ruas, nos teatros”.2

Foi na Escola Politécnica, não há negar, que a coisa se revelou. Há quem diga que na Escola do Largo de São Francisco de Paula nunca existiu preconceito de raça, invocando, como argumento, a tradição de um mestre negro ilustre, o grande André Rebouças, cuja memória já era venerada nos tempos em que o romancista por lá andou. Ademais, o filho do porteiro Cirilo, preto da cor da noite, cursava as aulas, sem nenhum constrangimento, e chegou mesmo a fazer-se “doutor”, como os seus colegas brancos e ricos. Mas esses depoimentos são de brancos,3 de gente que pouco ou nada sabe das estranhas reações de um homem de cor em contato com eles.

A verdade é que preconceito de cor sempre existiu e ainda existe no Brasil, em maior ou menor escala. O que acontece é que há os que vencem e se acomodam, como há também os que se deixam marcar com cicatrizes mais profundas, quando não sucumbem às restrições e reservas que se lhes impõem. Questão de temperamento. O caso de Lima Barreto é típico, e bem merece um estudo mais profundo, o que somente um especialista poderia fazer.

Quanto ao preconceito de raça, na Escola Politécnica daquele tempo, conta-se um episódio significativo, em que justamente Lima Barreto aparece como um dos personagens. A ser verdadeiro, bastaria para justificar o mal-estar em que vivia o aluno modesto e tímido, desde o momento da sua inscrição no primeiro ano do Curso Geral. O fato é que, ao tomar conhecimento do nome bonito do novo colega – Afonso Henriques de Lima Barreto –, um veterano mal-humorado fizera para o secretário da Escola, Sousa Ferreira, o seguinte comentário:

“Vejam só! Um mulato ter a audácia de usar o nome do rei de Portugal!”4

Certamente, Lima Barreto não ouviu a observação cheia de maldade. Só mais tarde dela tomaria conhecimento. Se a tivesse ouvido, sofreria ainda mais a repulsa estúpida que despertava a simples leitura do seu nome ao colega de tão explosivos sentimentos arianos. Lima Barreto era, de fato, pronunciadamente mulato, sem disfarces, cabelo ruim, pele azeitonada.

Na primeira mocidade, a vida desportiva da Ilha do Governador dava-lhe à fisionomia um ar sadio e às maçãs do rosto uma tonalidade cor-de-rosa. Foi assim pelo menos que o conheceu Álvaro Osório de Almeida, que, sem abandonar o curso de Medicina, que iniciara por volta de 1901 ou 1902, decidira frequentar também a Escola Politécnica, como a experimentar qual seria a sua verdadeira vocação.

Encontravam-se, os dois, no Café Java, quase todas as tardes, durante certo período. Edmundo da Cunha Melo, o Mundinho, e Antônio Noronha Santos completavam a roda. Noronha Santos, estudante de Direito, dominava sempre as conversas com as suas boutades. Era um rapaz muito inteligente. Fizera os primeiros estudos em Paris, na École Alsacienne, onde também se educara André Gide. Falava francês corretamente. Tinha espírito.5 De todos, Lima Barreto parecia o mais amadurecido. Sem os exageros comuns da idade, era discreto e comedido nas palavras. Não amava o brilho. Os seus comentários eram, entretanto, seguros e conscientes, sempre animados por um leve toque de ironia, como se partissem de homem bastante vivido e experimentado.

No trato pessoal, tinha comportamento de gentleman.6 Era, porém, desconfiado e retraído, esquivando-se do convívio de certos colegas de que não gostava. Evitava os contatos desagradáveis, talvez por temor de alguma desfeita, como parece ter acontecido com Miguel Calmon du Pin e Almeida, que o haveria, certa vez, tratado com desprezo. Este incidente marcou, aliás, a inimizade entre o filho do almoxarife das Colônias de Alienados e o rapaz de nome ilustre, para quem o futuro não pouparia benesses, dando-lhe tudo: além de dinheiro, sucesso na política.7

Não há dúvida de que Lima Barreto sofria por ser mulato e pobre. “É triste não ser branco”, segredava numa das páginas do seu Diário íntimo.8 Um dia, porém, desabafou-se em confidência ao companheiro de quarto, o bom Nicolau Ciancio.

Em poucas linhas, o caso pode ser resumido. Uma noite, por falta de céu, deixou de haver exercícios práticos de astronomia. Sem ter o que fazer, um grupo de estudantes desceu ruidosamente a ladeira do Observatório, então localizado nas alturas do morro do Castelo. Eram muitos, e no meio deles Lima Barreto, Bastos Tigre e Nicolau Ciancio. Chegando à planície, o bloco caminhou em direção do Teatro Lírico.

Bastos Tigre, o chefe do bando, lembrou aos companheiros que a Companhia Italiana, chegada ao Rio havia pouco, ensaiava a Aída. E propôs que todos pulassem o muro dos fundos do velho teatro para assistirem ao espetáculo, “de carona”. Foi o mesmo que uma ordem de comando. Nem o cão enorme que guardava o edifício conseguiu deter a arremetida juvenil. Em menos de cinco minutos, alegres e ofegantes, os rapazes estavam aboletados nas galerias do Lírico, ouvindo Ramfis, que cantava os primeiros acordes da ópera de Verdi:

“Si: corre voce che l’Etiope ardisca

Sfidarci ancora, e del Nilo la valle

E Tebe minacciar.”VII

Todos haviam topado a estudantada. Todos, menos Lima Barreto. Este não tivera coragem de pular o muro. Depois do ensaio geral, Nicolau Ciancio teve de ir sozinho para casa – a pensão de Madame Parisot. E ali chegando, cantarolando, como bom italiano, os últimos trechos da Aída, encontrou o amigo deitado, lendo. O diálogo que se seguiu e vai adiante transcrito foi reconstituído pelo próprio Nicolau Ciancio. Ei-lo, sem alteração de uma só vírgula:

“– Por que você não veio?

“– Para não ser preso como ladrão de galinhas!

“– ?!

“– Sim, preto que salta muros de noite só pode ser ladrão de galinhas!

“– E nós, não saltamos?

“– Ah! Vocês, brancos, eram ‘rapazes da Politécnica’. Eram ‘acadêmicos’. Fizeram uma ‘estudantada’... Mas eu? Pobre de mim. Um pretinho. Era seguro logo pela polícia. Seria o único a ser preso.”9

Eram assim imprevistas as reações do jovem Lima Barreto. Descreveu-as depois o romancista, no exame retrospectivo das humilhações por que passou na adolescência o seu personagem Isaías Caminha. Este também sentia-se um condenado por culpa da cor, proibido de viver, fechado o caminho da vida “por mãos mais fortes que as dos homens”.10

Pretinho! Mulatinho! Isso doía mais do que uma bofetada! Esta é, pelo menos, a confissão de Isaías Caminha:

“Eu saíra do colégio, vivera sempre num ambiente artificial de consideração, de respeito, de atenções comigo; a minha sensibilidade, portanto, estava cultivada e tinha uma delicadeza extrema que se juntava ao meu orgulho de inteligente e estudioso, para me dar não sei que exaltada representação de mim mesmo, espécie de homem diferente do que era na realidade, entre superior e digno a quem um epíteto daqueles feria como uma bofetada.”11

Sozinho, no silêncio do quarto pobre da pensão da Rua das Marrecas, devia chorar como Isaías. Nessas horas, vinha-lhe com certeza “um assomo de ódio, de raiva má, assassina e destruidora; um baixo desejo de matar, de matar muita gente”,12 para depois invadir-lhe a alma “uma grande covardia e um pavor sem nome... amedrontado em face das cordas, das roldanas, dos contrapesos da sociedade”, sentindo-os por toda parte, graduando os seus atos, anulando os seus esforços, esmagando-o, achatando-o completamente.13

Por esse tempo, o estudante continuava dependendo de Mecânica Racional para terminar o ano. A 4 de novembro de 1901, pediria novamente inscrição na cadeira do professor Licínio Cardoso e “em todo o terceiro ano do Curso Geral”, o que foi deferido, com a informação de que “o requerente está inscrito nos exercícios práticos do terceiro ano, conforme taxa que pagou na época própria, faltando porém pagar mais 50$000”.

A 22 de março do ano seguinte, requer exame de Mecânica e “do conjunto de todo o terceiro ano do Curso Fundamental”, mas tendo sido reprovado, mais uma vez, pelo implacável Licínio, não pôde fazer os exames das matérias do terceiro ano. Teria que se conformar em repetir novamente a cadeira e frequentar como ouvinte o terceiro ano.

Maldita Mecânica! Maldito professor! Maldito Licínio Cardoso! Há de pagar por isso! Lima Barreto tem, agora, a seção d’A Lanterna e é nela que vai tirar a desforra contra o lente ranzinza.

Ao mesmo tempo, procura consolar-se com um jogo de frases, ironizando os colegas que acreditam no resultado dos exames e se julgam gênios com a conquista dos primeiros lugares. “Pobres rapazes! Como neles cavaram profundo a tradição e o preconceito, que são o sedimento das gerações! Pois não veem que bombas e etc. são ideias feitas, nada atesando quanto à nossa capacidade e valor intelectual?”14

Isto escreveu Lima Barreto numa de suas crônicas do jornalzinho universitário. Noutra, porém, vai explodir toda a sua raiva malcontida. É que está virando um estudante crônico, marcando passo. E escreve:

“Crônico! Crônico” E o duro epíteto, e mau, vai com a constância de uma Eumênide, a nos perseguir no leito, no baile, na igreja, através de meses, anos, torturando-nos a vida toda. Os graves burgueses ao isso saberem viram-nos as costas: um criminoso, talvez, pensam. As deliciosas moças riem à socapa e, entre si, tão preciosas criaturas, endossadas por algum primo elegante, apostrofarão: uma zebra! Os lentes exorcizam e excomungam o pobre-diabo... E assim vivemos nós a ouvir sempre dos céus, das árvores, das coisas mudas o duro epíteto: crônico! crônico!”

Logo adiante, na mesma crônica, o estudante encontra consolo, falando em Jesus, Aristóteles, Homero e Descartes, que seriam provavelmente reprovados na Escola Politécnica, onde jamais conquistariam o “canudo nobilitante”. E, pensando nos colegas medíocres, aprovados nos exames, conclui o cronista:

“Só tu – grave e equilibrado Pacheco! – só tu não ouvirás durante o existir todo aquele desgracioso vocábulo. Burgueses honestos, lentes austeros, meninas casadoiras! Repeti aos ouvidos de Descartes, de Homero, de Aristóteles, aos meus também, tão agudo dizer e reservai a vossa consideração, as vossas delicadas mãos aos que melhor do que aqueles merecerem.”15

A verdade é que as reprovações o aborreciam. Não só por ele próprio, mas pelo pai. E, mais de uma vez, dominava-o o sentimento de injustiça, o recalque contra o meio hostil, que o abafava. Começava a comparar o seu exame oral com o de outros colegas. Não se podia conformar. Aquilo era perseguição. Tudo porque não nascera no luxo, vivia pobremente, era mulato. Todos esses pensamentos estão contidos num artigo de jornal, escrito muitos anos mais tarde:

“Na Escola Politécnica, é de praxe, de regra até, que todo o filho, sobrinho ou parente de capitalistas ou de brasseurs d’affaires, mais ou menos iniciados na cabala crematística do Clube de Engenharia, seja aprovado. É bem de ver por quê. Os lentes das nossas escolas, com raras exceções, não se contentam com os seus vencimentos oficiais. Todos eles são mundanos, querem fazer parada de luxo, teatros, bailes, com as suas mulheres e filhas. A situação oficial que têm, dá-lhes prestígio, fazem-nos ‘figuras de proa’ e os seus nomes são procurados para apadrinhar as companhias, as empresas, mais ou menos honestas, que os especuladores de todos os matizes e nacionalidades organizam por aí.

“Não é possível que um lente de química orgânica, por exemplo, que, devido às relações que tem com o capitalista Joab Manassés, foi feito, com grandes honorários, presidente da companhia de docas de um porto do Mar de Espanha, consiga do seu coração a violência de reprovar-lhe o filho. O Efraim, o filho de Joab Manassés, vai assim correndo os anos; e, se encontra um lente honesto, procura uma escola outra para fazer o exame que não lhe querem dar.”16

Lima Barreto, o mulatinho, o filho do almoxarife das Colônias de Alienados da Ilha do Governador, ainda vai enfrentar o velho Licínio Cardoso mais duas vezes: em novembro de 1902 e em fevereiro de 1903. Reprovado sempre, sempre. Era inútil insistir. Ao publicar o Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, dezesseis anos depois, recordará com amarga ironia:

“Não sei grego nem latim, não li a gramática do Senhor Cândido Lago, nunca pus uma casaca e não consegui até hoje conversar cinco minutos com um diplomata bem talhado; sigo, entretanto, o exemplo do severo e saudoso lente de Mecânica da Escola Politécnica, Doutor Licínio Cardoso, que estudou anos a alta matemática para curar pela homeopatia.

“O seu espetáculo foi-me sempre fecundo. As reprovações que levei foram justas: antes de mim, todos os que passaram, saíam maravilhosamente; depois... oh! então!

“O seu julgamento é um julgamento de Minos, inflexível e reto, e que tira a sua inflexibilidade da própria ordem dos Cosmos; e se, nos atos de minha vida, alguma vez fui justo, devo-lhe a ele, só e unicamente ao seu exemplo, que tive sempre diante dos olhos, durante minha adolescência atribulada.”17

Apesar de tudo, João Henriques não desistia de ver o filho formado. A autoridade moral do almoxarife obrigava o estudante desgostoso a prosseguir nas suas tentativas sempre malogradas. Lima Barreto não tinha dúvida de que estava sendo perseguido por Licínio Cardoso, convicção esta que os anos só fizeram confirmar.

Preto, pobre, tinha que ser reprovado sempre.

Sentia-se assim, cada vez mais, humilhado. Contudo, o pai insistia com ele para que continuasse nos estudos. Ignorava decerto o drama em que o filho se debatia. Do contrário não exigiria tanto sacrifício.

Era o próprio almoxarife quem pagava a Escola Politécnica. Ouro Preto, que havia custeado os primeiros estudos do afilhado, já não ajudava mais o compadre João Henriques. Entre os dois – o político outrora poderoso e o almoxarife das Colônias de Alienados – não mais existia a camaradagem dos tempos da Monarquia.

As coisas, agora, eram diferentes. João Henriques tivera que tomar outro rumo. Embora fiel à velha amizade, pouco podia frequentar o escritório de Afonso Celso, quartel-general dos saudosistas do regime deposto, e onde o chefe liberal continuava na sua luta. A política era-lhe a vida. Mas o antigo tipógrafo, pequeno funcionário público, viva dos vencimentos, tinha que precaver-se.

O Visconde de Ouro Preto propusera a João Henriques fazê-lo administrador de uma sua fazenda em Minas Gerais. O pai de Lima Barreto não quis, porém, aceitar o convite, pensando no emprego público a que teria que renunciar, no montepio, dinheiro certo e seguro de que privaria a família.18

Não, o que o compadre lhe pedia era muito, era acima de suas forças. É possível que a recusa tivesse contribuído para arrefecer as relações entre ambos, cortadas, depois, de modo definitivo.

Afonso não conhecia ainda o padrinho ou dele não se lembrava mais. João Henriques sempre falava em levá-lo até o escritório do compadre.

– Você precisa tomar a bênção do seu padrinho. Vamos lá.

Foram os dois finalmente, depois que Ouro Preto regressou do segundo exílio, quando as relações de João Henriques com o compadre importante começavam a esfriar. O encontro foi desastroso e dele o estudante Lima Barreto guardou desagradável impressão para o resto da vida. Quando entrou com o pai no escritório do visconde, este mal levantou os olhos da mesa em que escrevia e é bem possível que uma “ruga de aborrecimento”, diante dos incômodos visitantes, se tenha desenhado na “fisionomia empastada” do antigo titular do Império. Há nisso qualquer coisa que faz lembrar Isaías Caminha, entregando a carta de recomendação ao deputado.19

– Quem é este? – teria perguntado o visconde, olhando displicentemente para João Henriques. – É o Serafim?

A pergunta era cruel. E teria chocado ao rapaz, que se chamava Afonso em homenagem àquele homem antipático, de suíças, que tão mal os recebia. O desenvolvimento da conversa não corrigiu a primeira impressão. Ao contrário, agravou-a. Em matéria de política, o afilhado não afinava com o padrinho, a ponto de este observar a João Henriques:

– Este meu afilhado está me saindo um jacobino!20

Lima Barreto jamais fez qualquer referência direta ou indiretamente a esse encontro com o Visconde de Ouro Preto. Não há, em toda a sua obra, repleta de confissões íntimas, nada que possa lembrar a impressão desagradável que lhe proporcionara o conhecimento com o seu protetor, a não ser talvez aquela cena, acima citada, em que o deputado tenta dissuadir o jovem Isaías Caminha de estudar Medicina.

Vale a pena transcrever o final da conversa. “Houve ocasião”, escreve o memorialista, “em que ele exprobrou essa nossa mania de empregos e doutorado, citando os ingleses e os americanos. – Todo o mundo quer ser doutor... Corei indignado e respondi com alguma lógica, que me era impossível romper com ela; se os fortes e aparentados, os relacionados para a formatura apelavam, como havia eu, mesquinho, semi-aceito, de fazer exceção?”.21

No Diário íntimo, só uma vez Lima Barreto falou em Afonso Celso, e assim mesmo vaga e imprecisamente. “E os 10$000 do tal visconde! Idiota. Os protetores são os piores tiranos.”22 Que 10 mil-réis eram esses? Com certeza, uma dádiva do padrinho. Da reação tão violenta, vê-se que o afilhado se ofendera com o gesto, ainda que a intenção tivesse sido generosa, marcando desde logo a separação.

Tudo isso, é bem verdade, não passa de simples conjectura. Seja como for, a suposição é de que Lima Barreto rompeu com o Visconde de Ouro Preto nos primeiros anos da sua mocidade. Não o visitaria nunca mais. Nem mesmo quando publicou o seu primeiro livro, em 1909, o Recordações do escrivão Isaías Caminha, teve a lembrança de oferecer um exemplar a Afonso Celso.23

Ingratidão ou complexo de inferioridade? Fosse o que fosse, o certo é que o escritor vai-se “vingar” de Ouro Preto, da aspereza e do pouco caso com que foi tratado pelo visconde, criando em dois dos seus romances as mais simpáticas, as mais carinhosas figuras de padrinhos de que há notícias em nossa literatura.

Um deles é o Policarpo Quaresma, cuja afeição pela Olga, sua afilhada, desmancha-se em ternuras, ocupando a moço no velho coração do major “o lugar dos filhos que não tivera nem teria jamais”.24

Outro é o solene Gonzaga de Sá, que adora o afilhado, o pequeno Aleixo Manuel, que era por sinal filho de um modesto servente da Secretaria de Cultos, e que morava numa esburacada rua suburbana. “Cético, regalista e voltairiano”, encarando os homens e as coisas deste mundo com irônica resignação, Gonzaga não se descuidaria da educação do menino.

“Sob a ascendência do padrinho, estudaria muito, aplicar-se-ia nos livros.” E o filósofo, conhecedor profundo da alma humana, temia pelo afilhado de condição social inferior, beijando-o e animando-o. Nessas horas, “cheio de pena, de afeto e de tristeza”, o padrinho pensava consigo mesmo, no seu irremediável pessimismo: “Coitado! Nem o estudo lhe valeria, nem os livros, nem o valor, porque, quando o olhassem diriam lá para os infalíveis: aquilo lá pode saber nada!”.25

Foi isso exatamente o que Ouro Preto não soube dar a Lima Barreto. O rapaz pedia ternura e compreensão, enquanto o padrinho lhe estendia uma cédula de 10 mil-réis. Ressentido, o afilhado passou a evitar a presença antipática, que só lhe fazia avivar a situação humilhante de protegido. Isto aconteceu em 1902 ou 1903. Lima Barreto não mais se avistaria com o padrinho.

Guardaria mais essa mágoa no coração. Porém quando Ouro Preto morreu, em 1912, o escritor recortou a notícia do jornal, pregando-a num dos seus cadernos de retalhos, onde costumava escrever as suas notas e tomar os seus apontamentos. Não fez nenhum comentário. Nem era preciso. Bastava o sentimentalismo do gesto.26

Notas

1 “Desgostava-me e era reprovado; e as minhas reprovações desgostavam meu pai, tanto mais que, a bem dizer, até aí não tinha sido reprovado” (Bagatelas, p. 195).

2 Gonzaga de Sá, p. 123.

3 Depoimentos de Everardo Backheuser e Manuel Ribeiro de Almeida, em conversa com o autor. “Na Escola do Largo de São Francisco, no meu tempo, não havia preconceito de cor”, escreveu Nicolau Ciancio. Ver “A verdade sobre Lima Barreto”, em Vamos Ler!, Rio de Janeiro, n. 213, 29/08/1940.

4 Ver artigo de Antônio Noronha Santos, “A legenda de Lima Barreto”, em Diário da Manhã, Niterói, 01/05/1943. Conhecendo a versão de que o Sr. Eduardo Jacobina, residente em Bragança, estado de São Paulo, fora quem proferira o infeliz comentário, o autor dirigiu-lhe uma carta, interpelando-o a respeito. Em resposta, recebeu atenciosa missiva, que resolve transcrever na íntegra, por julgá-la documento do maior interesse: “Bragança Paulista, 12-outubro-1947. Ilmo Sr. Dr. Francisco de Assis Barbosa. Rio de Janeiro. Prezado Senhor. Só hoje, com algum atraso, posso responder à s/ carta de 2 de oto. recebida no dia 4; e isto devido a meu estado de saúde q. só me permite fazer o que posso e não o que quero. A frase, um pouco cruel, proferida a respeito do pobre Lima Barreto, não me lembro de a haver pronunciado, por este motivo não posso assumir-lhe a paternidade. Lima Barreto foi meu colega na Politécnica e com ele sempre mantive boas relações de cortesia, dês essa época e pela vida adiante até sua morte, muito moço ainda, vítima que foi de seu vício de alcoolismo. Lamentei sempre essa sua fraqueza e sempre apreciei e reconheci seu valor de romancista. Seu julgamento sobre Floriano, posto por ele na boca de Policarpo Quaresma, eu o julgo muito exato e sagaz. Não me agradaria vê-lo amesquinhado por uma frase ou juízo depreciativo q. me é atribuído e do qual, repito, não me lembro; lembrando-me entretanto que aos vinte anos éramos muito folgazões e pouca piedade tínhamos. Algumas informações sobre a vida nossa, como estudantes, nos últimos anos do século XIX, entretanto, com prazer lhe fornecerei. Em 1896 reformou-se o regulamento, substituindo-se o de 1874 (sob cuja regência eu me matriculara) pelo novo. Em consequência deste fato, deu-se uma interpenetração das diferentes turmas dos diferentes anos letivos em virtude de cadeiras que, por um regulamento, pertenciam a determinado ano haverem passado pª outro. Assim se explica a formação do grupo S. A. M. (Sob Auspícios de Maria), ao qual alude Backheuser no seu livro O Professor. Esse grupo era composto de sete colegas de diversos anos e unidos por sólida e firme amizade. Chamavam-se esses rapazes: César de Sá Rabelo, Luís Castenhede de Carvalho Almeida, Henrique Burnier, Carlos de Sousa Ferreira, José Pereira da Graça Couto, Heitor Lira da Silva e Eduardo d’Araújo Ferreira Jacobina. Vivos, hoje, estão apenas o primeiro e o último. Com que saudade me saem agora, da pena, estas recordações de um longínquo passado! O servente Trajano, do Gabinete de Mineralogia, chamava este grupo: ‘O Terço’ e de ‘Adidos do Terço’ um outro grupo de rapazes que conosco convivia em absoluta comunhão de gosto e de ideias. Eram esses: Afonso d’E. Taunay, José Matoso de Sampaio Correia, Joaquim Pessoa Guerra, Telêmaco Sales, Luís Tavares Pereira e Everardo Augusto Backheuser. A atmosfera intelectual e espiritual da Politécnica era, nessa época, muito elevada e sã. Estudava-se pela satisfação e gosto de saber. Não se limitavam os moços aos programas da Escola; desejavam estender mais longe a sua cultura. Certa época mesmo, obtida a necessária licença, convidou-se o grande professor José Veríssimo pª em uma das salas da Politécnica nos fazer um curso de literatura nacional. Em nossas horas de folga, éramos assíduos frequentadores das livrarias Briguiet e Garnier, por meio das quais acompanhávamos a atividade intelectual da Europa. Então, a literatura barata, insidiosa, deletéria, que hoje transborda das “vitrinas” das, por demais, numerosas livrarias do Rio e de S. Paulo, nos era totalmente desconhecida. A atmosfera política era um pouco tensa. Acabávamos de sair de longa e cruenta guerra civil; mas a divergência de opinião nunca nos turbava o afeto entre colegas. Heitor Lira era florianista; eu maragato; até a sua morte nos conservamos os mais firmes e leais amigos. Com muitos de nossos lentes vivíamos em pé de amistosa e respeitosa camaradagem. Não sei que mais lhe possa dizer de interesse, satisfazendo a sua consulta. Esperando que essas reminiscências lhe sirvam pª o fim visado, sou s/ amo e criado (a.) Eduardo d’A. F. Jacobina. R. Cel. Teófilo Leme, 799. Bragança Paulista, S. P. R.”.

5 O pai de Noronha Santos, que era médico, trabalhou em Paris com J. A. Fort, professor de Anatomia e notável pelo seu saber. Na obra de Fort, Anatomie descriptive et dissection, edição de 1902, aparece citado o nome do médico brasileiro como autor de numerosas pesquisas e trabalhos de especialidade. Depoimento de Álvaro Osório de Almeida.

6 Depoimento de Álvaro Osório de Almeida, em conversa com o autor.

7 “O Lima Barreto que eu conheci”, artigo de José Vieira, em Revista do Brasil, ano VI, 3ª fase, n. 56, p. 43-47. “Quando seu colega na Escola Politécnica, Miguel Calmon, em conversa, porventura em disputa de estudantes, desconsiderou-o, ou Lima assim interpretou. Os anos correram. Calmon vem da Bahia para o Rio como ministro, ganha evidência: não teve maior opositor que o antigo colega do Largo de São Francisco. Nem se dirigia ao secretário de Estado, ao poderoso, que foi Calmon, de um quatriênio truncado pelas injunções políticas, a má vontade do cronista irônico, do comentador de cafés, senão ao acadêmico portador de grande nome e bem vestido que desgostara ao moço pobre da Ilha do Governador.” Ao autor, afirmou José Vieira ter ouvido do próprio Lima Barreto a confidência do incidente com Miguel Calmon, quando estudantes. Em conversa com o autor, Bastos Tigre também se referiu à ojeriza do romancista pelo antigo colega, a quem chamava sarcasticamente “Bel-Ami”, comparando-o ao célebre personagem de Maupassant. Estando Lima Barreto embriagado, aludia às vezes à sua intimidade com Calmon, dizendo: “Vou comprar uma espada para matar o Bel-Ami”. Ver artigo de Lima Barreto, no ABC, n. 90, ano II, de 25/11/1916. “O ideal de Bel-Ami”, terrível ataque a Miguel Calmon, in Feiras e mafuás, p. 178-181.

8 Diário íntimo, p. 130.

9 Nicolau Ciancio. Artigo publicado em Vamos Ler!, em 29/08/1940.

10 Isaías Caminha, p. 124.

11 Isaías Caminha, p. 110.

12 Isaías Caminha, p. 102.

13 Isaías Caminha, p. 102.

14 A Lanterna, Rio de Janeiro, 30/11/1902.

15 A Lanterna, Rio de Janeiro, 20/09/1903. O espírito dessas crônicas d’A Lanterna é o mesmo da sátira que Lima Barreto escreveria mais tarde: “Harakashy e as escolas de Java”. (Histórias e sonhos, p. 51-64).

16 Bagatelas, p. 39.

17 Gonzaga de Sá, p. 30. A 1ª edição deste livro saiu em 1919.

18 Depoimento de D. Evangelina de Lima Barreto.

19 Isaías Caminha, p. 100 e 101.

20 Depoimento de D. Evangelina de Lima Barreto.

21 Isaías Caminha, p. 101.

22 Diário íntimo, p. 34.

23 O arquivo do Visconde de Ouro Preto ficou completamente inutilizado, em consequência de uma ressaca, que inundou a Rua Machado de Assis, atingindo as águas o porão da residência do Conde de Afonso Celso, seu filho, onde se encontrava, seguindo informações prestadas ao autor por D. Maria Eugênia Celso. Na biblioteca do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, entre os livros doados por Ouro Preto, não há nenhum exemplar da obra referida.

24 Policarpo Quaresma, p. 58.

25 Gonzaga de Sá, p. 122 e 123.

26 Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional.

VII Sim: corre o rumor de que os Etíopes ousam / Nos desafiar de novo, e do Nilo o vale / E Tebas ameaçar (N.E.)