Terceira Parte
Mocidade
A casa do louco
[...] meu grande e infeliz pai [...].
(Feiras e mafuás, p. 63)
Foi no ano de 1902, pela festa de Nossa Senhora da Glória, que João Henriques enlouqueceu. A doença chegou de repente, sem avisar, como os raios em céu de abril, perturbando a paz familiar que parecia tão firmemente consolidada. O almoxarife passara o dia em preparativos para atravessar a baía e vir até o continente na manhã seguinte cumprir a sua devoção, rezar aos pés da santa.
Todos os anos, desde menino, ele subia o outeiro no dia consagrado a Nossa Senhora da Glória, sob cuja invocação batizara o filho Afonso Henriques.
Naquele dia, tomara todas as providências para a viagem, aprontando, inclusive, uma das lanchas utilizadas no serviço das Colônias de Alienados, a qual o aguardava, já no cair da tarde, na ponta do Galeão, para a travessia marítima. Jantou com os filhos, conversando alegremente.
Nos últimos tempos tornara-se cada vez mais taciturno. E só se expandia em raros instantes de bom humor. A lembrança de Nossa Senhora da Glória tornara-o, com certeza, comunicativo, voltando por um momento a ser o mesmo homem dos primeiros anos da vida na ilha, quando assumira o posto de escriturário das Colônias.
Logo após o jantar, foi deitar-se. Tinha que dormir cedo, pois ia fazer madrugada. E assim despediu-se dos filhos, deu-lhes boa-noite. Tudo parecia normal, sem surpresas. Não passaria pela cabeça de ninguém que a desgraça estivesse tão próxima.
No meio da noite, porém, o silêncio da pequena casa do sítio do Carico foi cortado bruscamente por gritos lancinantes que vinham do quarto de João Henriques. O almoxarife delirava. Acudiu-o incontinenti o filho Carlindo (Afonso não estava em casa). Por entre as frases desconexas que proferia, percebia-se que o pobre homem, alucinado, estava possuído pelo pavor de ser preso. Era a loucura!
– Não deixem a polícia entrar! Não deixem! – gritava e chorava, ao mesmo tempo.
Então, acenderam-se todas as luzes da casa. Prisciliana trouxe um copo d’água com açúcar, a ver se acalmava o companheiro. Mas João Henriques continuava imerso no delírio e só via pela frente o delegado e os soldados de polícia, armados até os dentes, e todos queriam levá-lo de qualquer jeito para a cadeia.
Prolongou-se a crise por todo o resto da noite, e o doente só sossegou de manhãzinha, quando recomeçou a dormir, vencido pelo cansaço. Um sono pesado, entrecortado de soluços.
Na manhã seguinte, João Henriques não era o mesmo homem da véspera. Olhava desconfiado para todos, como envergonhado, sem dirigir palavra nem aos filhos, nem a Prisciliana. Esquecera-se completamente da azáfama do dia anterior, dos preparativos da viagem ao Rio. Nem se lembrava de Nossa Senhora da Glória. E da festa em louvor da santa. Trancou-se no quarto. Não queria ver ninguém.
Avisado da estranha doença do pai, Afonso viera ao seu encontro. Mas de nada adiantou a presença do filho bem-amado. João Henriques recebeu-o com os olhos esbugalhados. Tremendo de frio e de medo, explicou-lhe num fio de voz:
– É a polícia. Está aí fora. Cercando a nossa casa, para me prender.
A muito custo e com toda a paciência, os filhos conseguiram atinar com a causa da inopinada crise, que abatera aquele homem acostumado a lidar com insanos.
Na última prestação de contas, João Henriques havia notado uma pequena diferença no livro-caixa. Cheio de escrúpulos, deixara de remetê-lo à direção do Serviço. Os dias foram passando. O almoxarife fazia e refazia as contas, e a diferença continuava a aparecer. Ficou assim obsedado com a ideia de que o poderiam acusar de ter dado um desfalque. Acusação injusta, sem dúvida, mas que ele jamais, em hipótese alguma, diante da diferença verificada, seria capaz de refutar.
À proporção que se ia aproximando o término do prazo para entrega do relatório, aumentava-lhe a angústia. Como era homem de pouco abrir-se, mesmo com pessoas da família, a obsessão foi-lhe crescendo no íntimo, sem que os filhos e a companheira percebessem que alguma coisa de anormal se estava passando na mente de João Henriques, até que a crise se manifestou.1
Foi chamado do Rio o Dr. Braule Pinto, médico do Serviço de Assistência a Psicopatas e grande amigo da família. João Henriques mostrava-se agora indiferente a tudo. Ninguém o tirava da apatia que ameaçava dominar-lhe, por completo, o corpo e o espírito. Estava decidido a não sair mais de casa. A polícia que o viesse prender. Ele se entregaria, mas estava inocente. Protestaria inocência e pronto. Não poderia provar que não tirara dinheiro das Colônias. Mas de que servia a sua palavra de homem de bem? Seria preso. Não havia remédio. Estava conformado com a injustiça.
Depois de lamuriar-se, ficava quieto num canto da casa, coçando as mãos, sem falar nem ouvir ninguém, com os olhos perdidos num ponto qualquer.
Era assim o delírio do almoxarife, segundo o depoimento do seu próprio filho, Carlindo. Nas suas manifestações psíquicas é quase idêntico ao de Policarpo Quaresma. Mais de uma vez, o pai servirá de modelo ao filho escritor, que pensava em João Henriques ao traçar a página de delírio do Major Quaresma:
“Como fora doloroso aquilo! A primeira fase do seu delírio, aquela agitação desordenada, aquele falar sem nexo, sem acordo com que se realizava fora dele e com os atos passados, um falar que não se sabia donde vinha, donde saía, de que ponto do seu ser tomava nascimento! E o pavor do doce Quaresma? Um pavor de quem viu um cataclismo, que o fazia tremer todo, desde os pés à cabeça, e enchia-o de indiferença para tudo mais que não fosse o próprio delírio.”
A descrição se aplica como luva ao depoimento. A coincidência é quase absoluta. Mas ainda há mais, em outro pequeno trecho de Policarpo Quaresma:
“A casa, os livros e os seus interesses de dinheiro andavam à matroca. Para ele, nada disso valia, nada disso tinha existência e importância. Eram sombras, aparências; o real eram os inimigos, os inimigos terríveis cujos nomes o seu delírio não chegava a criar.”2
Assim também João Henriques falava em inimigos, que o perseguiam, sem contudo declinar nomes.
Depois de examinar o doente, o Dr. Braule Pinto aconselhou à família, como primeira providência, que o removessem da Ilha do Governador. Fora das Colônias, poderia vencer a crise. Precisava de repouso. Mudar de ambiente. Distrair-se. E o almoxarife requereu uma licença de três meses para tratamento de saúde, precisamente em outubro de 1902, época em que a família Lima Barreto passa a residir no Rio de Janeiro, na Rua Vinte e Quatro de Maio, nº 223, no Engenho Novo.3
Como filho mais velho, cabe a Afonso assumir a chefia da casa, arcando com a responsabilidade de cuidar do pai demente, de alimentar e vestir mais oiro pessoas: seus três irmãos, Prisciliana, os três filhos desta, além do preto velho Manuel de Oliveira, agregado dos Limas Barretos.
A Afonso preocupava não somente o estado de saúde de João Henriques, a quem fazia questão de que nada faltasse, como também os irmãos menores, principalmente Carlindo e Evangelina, já entrados na adolescência. Tratava-os, a ambos, com extrema severidade. Ao rapaz, que acabara de completar 18 anos, exigia que não passasse das 8 horas nos seus passeios, depois do jantar. “Nada de bater pernas na rua, como vagabundo”, dizia. À irmã, mais moça do que ele apenas um ano, não permitia sequer que chegasse à janela.4
Os meses foram passando, e João Henriques não apresentava melhoras. Contrariavam-se os prognósticos do Dr. Braule Pinto. O estado de saúde do almoxarife, ao fim da licença, impossibilitava-o de retornar ao serviço.
Nesse meio-tempo, novo acontecimento veio agravar ainda mais a situação. Iniciava-se o quatriênio Rodrigues Alves. Assumindo a pasta da Justiça e Negócios Interiores do novo governo, empossado em 15 de novembro, o ministro J. J. Seabra ordenara a abertura de um inquérito para apurar irregularidades no Hospício Nacional, faro que teve, desde logo, grande repercussão na imprensa.
O ato do ministro data dos primeiros dias de sua administração, e foi recebido como um sinal de que se pretendia iniciar reforma completa no serviço público, sob o signo da moralidade, de acordo com a chapa empregada invariavelmente em tais ocasiões.
Para a vida de João Henriques, a reforma Seabra significaria um segundo choque emocional, tão grave e profundo em suas consequências como o primeiro, isto é, a queda da Monarquia. Em 1889, perdera o lugar de mestre de composição da Imprensa Nacional. Em 1903, perderá o lugar de administrador das Colônias de Alienados na Ilha do Governador.
Mas voltemos ao caso. A 13 de janeiro de 1903, publica o Jornal do Brasil uma local, pedindo que o inquérito no Hospício Nacional se torne extensivo às Colônias. A licença de João Henriques havia terminado e o seu caso é, ali, nas colunas de um jornal, diretamente apontado, numa denúncia anônima, que revela entretanto o dedo de alguém interessado em ocupar o lugar de administrador, que, embora modesto, oferecia certas vantagens nada desprezíveis: boa casa, o sítio com fruteiras e o ameno clima da Ilha do Governador.5
O último exame médico – em dezembro de 1902 – declarara João Henriques incapaz de continuar no serviço público. Ademais, todos esses contratempos só fizeram piorar o doente, dominado pela mania de perseguição.
Repetiam-se as visões. Era sempre a polícia que lhe vinha ao encalço, para prendê-lo ou matar. Eram os inimigos invisíveis que não se cansavam de persegui-lo. Deixava-se ficar, depois, em profunda prostração, tal o Major Quaresma, completamente indiferente a tudo que o cercava, vivendo no estranho mundo criado pela sua imaginação.
Por conseguinte, não era possível contemporizar. Tinha que ser aposentado quanto antes.
Atendendo à local do Jornal do Brasil, o ministro Seabra estendera mais que depressa o inquérito às Colônias, e para lá seguiu uma comissão composta dos Drs. Antônio Maria Teixeira, Egídio de Sales Guerra, Carlos Fernandes Eiras e do farmacêutico F. M. da Silva Araújo.
Da devassa a que então procedeu a comissão, nada foi encontrado que pudesse desabonar a conduta exemplar do administrador. Pelo contrário, conforme se verifica do relatório da comissão, o serviço só poderia merecer louvores. “Os livros de carga e descarga”, diz o documento oficial, “acham-se em perfeita ordem. As despesas são registradas com todos os detalhes, bem assim a receita proveniente da venda de produtos da pequena lavoura e até de trapos vendidos a peso”.6
Pobre João Henriques! A diferença no livro-caixa, a possibilidade de ser acusado de peculatário, tudo isso não passava de alucinação, de delírio de insano.7
João Henriques teve de requerer a sua aposentadoria, que só lhe foi concedida por decreto de 2 de março de 1903. E aqui começa nova odisseia, tais são as dificuldades e complicações da burocracia: a longa e enervante caminhada dos papéis nas repartições, os requerimentos, os pedidos, os empenhos junto aos funcionários do Ministério da Justiça e do Tesouro.
“É um trabalho árduo, esse de liquidar uma aposentadoria”, escreveu Lima Barreto, no Policarpo Quaresma, baseando-se na experiência tão amargamente vivida, “como se diz na gíria burocrática. Aposentado o sujeito, solenemente por um decreto, a cousa corre uma dezena de repartições e funcionários para ser ultimada. Nada há mais grave do que a gravidade com que o empregado nos diz: ainda estou fazendo o cálculo; e a cousa demora um mês, mais até, como se se tratasse de mecânica celeste”.8
Foi o que aconteceu com a aposentadoria de João Henriques. Custou a ser liquidada. O decreto fora assinado pelo presidente da República em março, como ficou dito antes, mas somente quatro meses depois, isto é, a 12 de julho, foi-lhe expedido o título de aposentado.9
A coisa não estava todavia ultimada. Restava ainda a contagem do tempo de serviço, que ia demorar muito mais, com os papéis rolando do Ministério da Justiça ao Tribunal de Contas e deste à Contabilidade do Tesouro Nacional.
A máquina burocrática rodava com lentidão, emperrando por qualquer pequeno defeito na engrenagem, pouco se incomodando os manejadores com os prejuízos e atribulações que ocasionasse a sua lerdeza de movimentos. Sucediam-se os requerimentos, os memoriais, os pedidos, os rogos. Tudo inútil.
Pelino Guedes era o diretor-geral da Diretoria da Justiça, com quem Lima Barreto teve que se entender muitas vezes para “liquidar” a aposentadoria paterna. Como o irritava aquele homenzinho meticuloso, que estava sempre a exigir-lhe mais um documento, mais uma certidão!
Por trás da sua secretária, o alto funcionário representava-lhe um inimigo feroz, protegido por uma cidadela inexpugnável de convenções, a inventar toda sorte de dificuldades, a criar os maiores obstáculos, num sadismo de burocrata, indiferente ao problema humano que tinha diante de si.
Eram tais as exigências de Pelino Guedes que Lima Barreto passou a atribuir ao diretor-geral o propósito deliberado de retardar o mais que fosse possível o processo da aposentadoria.
E, assim, Lima Barreto fez-se inimigo de Pelino Guedes, que figurará, mais tarde, na obra do romancista, ora na pele de Xisto Beldroegas, ora na do secretário do ministro J. F. Brochado (que outro é senão o próprio ministro J. J. Seabra), como o tipo clássico de funcionário público que vive a bajular os poderosos e a oprimir os fracos.
A primeira dessas personagens aparece no Gonzaga de Sá, livro que teria sido escrito sob inspiração das biografias de Dr. Pelino Guedes, conforme se lê na “Explicação Necessária” – obra-prima de ironia, que o memorialista Augusto Machado publica à guisa do prefácio do volume. O Dr. Pelino Guedes dedicava-se a escrever biografias de ministros. Ele, Machado, menos pretensioso, decidira escrever a dos escribas ministeriais. Não é preciso dizer mais.
Xisto Beldroegas, funcionário da Secretaria dos Cultos, “vivia obsedado com os avisos, portarias, leis, decretos e acórdãos. Certa vez, foi atacado de uma pequena crise de nervos, porque, por mais papéis que consultasse no arquivo, não havia meio de encontrar uma disposição que fixasse o número exato das setas que atravessam a imagem de São Sebastião”.
Tudo, para ele, tinha que ser fixado em leis, decretos, portarias ou avisos: a chuva, o movimento dos astros, o crescimento das plantas. E o romancista assim termina o retrato do incrível Beldroegas:
“Apesar de enfronhado na legislação, não tinha uma ideia das suas origens e dos seus fins, não a ligava à vida total da sociedade. Era uma coisa à parte; e a comunhão humana, um imenso rebanho, cujos pastores se davam ao luxo de marcar, por escrito, o modo de aguilhoar as suas ovelhas. Para o doutor Xisto Beldroegas, a lei era ofensiva, inimiga da parte. Ninguém tinha direito em presença dela; e todo pedido devia ser indeferido, não logo, mas depois de mil vezes informado por vinte e tantas repartições, para que a máquina governamental mais completamente esmagasse o atrevido.”10
Quanto à segunda personagem, trata-se de uma grotesca caricatura que transita por um instante, fugazmente, em Numa e a ninfa. Aparece como uma sombra do ministro Brochado, seguindo-o sempre, numa recepção da residência de um figurão político, e logo desaparece das páginas do romance. “[...] múmia peruana, untada de pinturas e a enxergar por uns óculos negros”, assim a descreve o escritor, num retrato cruel, contudo bem próximo da realidade, segundo testemunho dos que conheceram pessoalmente Pelino Guedes.11
Teria ou não razão Lima Barreto no ódio que votou a esse homem, medíocre funcionário público, escritor fracassado, que se chamou Pelino Joaquim da Costa Guedes?
Atormentado pelo drama íntimo, o jovem estudante da Politécnica arcava sozinho com todo o peso da responsabilidade de cuidar de uma numerosa família, e encarava com revolta as dificuldades que se lhe iam antepondo no caminho da vida. A demora na solução da aposentadoria paterna criara-lhe, de fato, sérios embaraços de ordem financeira. Atrasara-se no pagamento dos aluguéis, e o senhorio reclamava o dinheiro.12
A sua vida como que estava em suspenso. Abandonara a Escola Politécnica. Deixara de frequentar a Federação de Estudantes.13
Toda a sua preocupação, agora, era conseguir um emprego que o libertasse da angústia em que vivia, premido pelas necessidades. Isolado, sem “pistolões”, sem amigos influentes que o pudessem encaminhar na caça de um lugar nalguma repartição pública, a angústia transformou-se em desespero, tal como no caso de Isaías Caminha, vindo do interior, a lutar sem esperanças na grande cidade desconhecida. Também ele, o seu criador, sofreria tormentos e humilhações, num drama que é comum aos deserdados.
Foi talvez nessa hora de profunda infelicidade que Lima Barreto sentiu, pela primeira vez, o desejo de recorrer ao álcool, como se recorre a um narcótico para suavizar a dor insuportável:
“O álcool não entrava nos meus hábitos”, diz o romancista, através de Isaías Caminha. “Em minha casa, raramente o bebia. Naquela ocasião, porém, deu-me uma vontade de beber, de me embriagar, estava cansado de sentir, queria um narcótico que fizesse descansar os nervos tendidos pelos constantes abalos daqueles últimos dias. Entrei no café, mas tive nojo. Limitei-me a beber uma xícara de café e caminhei tristemente em direção ao mar, olhando com inveja um carregador que bebia um grande cálice de parati.”
O desespero do estudante seria idêntico ao de Isaías, e está todo descrito no resto da página do romance, que tão bem reproduz esse momento de desesperança na vida de Lima Barreto:
“Eu tinha uma imensa lassidão e uma grande fraqueza de energia mental. Quis descansar, debrucei-me na muralha do cais e olhei o mar. Estava calmo; a limpidez do céu e a luz macia da manhã faziam-no aveludado. Os últimos sinais da tempestade da véspera tinham desaparecido. Havia satisfação e felicidade no ar, uma grande meiguice, em tudo respirava; e isso pareceu-me hostil. Continuei a olhar o mar fixamente, de costas para os bondes que passavam. Aos poucos ele hipnotizou-me, atraiu-me, parecia que me convidava a ir viver nele, a dissolver-me nas suas águas infinitas, sem vontade nem pensamentos; a ir nas suas ondas experimentar todos os climas da terra, a gozar todas as paisagens, fora do domínio dos homens, completamente livre, completamente a coberto de suas regras e dos seus caprichos... tive ímpetos de descer a escada, de entrar corajosamente pelas águas adentro, seguro de que ia passar a uma outra vida melhor, afagado e beijado constantemente por aquele monstro que era triste como eu.”14
Por ocasião da doença paterna, o Dr. Braule Pinto dera-lhe a ler o livro de Maudsley, O crime e a loucura, numa tradução francesa. Impressionara-se com a leitura, tanto assim que mais de uma vez, no decorrer de sua obra, cita o pequeno volume do alienista britânico. Preocupava-o certamente o exemplo de João Henriques, atribuindo talvez ao alcoolismo a insânia em que vivia imerso. Daí o propósito de não beber coisa alguma, que firmara, na primeira mocidade, conforme está registrado no Diário íntimo.15
Reagindo contra a própria natureza, dispôs-se Lima Barreto a fazer um concurso de amanuense para a Secretaria da Guerra. Havia apenas uma vaga. E ainda que não fossem poucos os pretendentes, resolveu tentar a carreira de funcionário. Àquele tempo, eram as seguintes as provas do concurso de amanuense: Português, Francês, Inglês, Aritmética, Álgebra, Geometria, Geografia, História, Direito, Redação Oficial e Caligrafia.16
Durante oito dias, enfrentou a banca examinadora, presidida pelo diretor da Secretaria, o venerando Barão de Itaipu. As provas se realizaram no edifício do velho Quartel-General, e atraíram, segundo dizem, a atenção de militares e funcionários civis.17
E, se Lima Barreto não conseguiu a primeira classificação, por culpa exclusiva de sua péssima letra, distanciou-se apenas seis décimos da nota do vencedor do concurso. Nas provas de Redação Oficial e Caligrafia alcançara, na verdade, apenas grau 3, ao passo que seu competidor obtivera em ambas grau 9.18
O insucesso teria contribuído para aumentar ainda mais o seu desânimo, não fosse a oportunidade que logo depois se lhe abriu com o falecimento de um funcionário da Secretaria. A vaga pertencia-lhe. Um amigo, Mário Tibúrcio Gomes Carneiro, procurou-o para que pleiteasse a nomeação. A princípio, Lima Barreto deu de ombros, como não querendo acreditar que valesse a pena qualquer esforço nesse sentido.
– Você pensa – teria perguntado ao amigo – que a administração pública está tão moralizada neste país, a ponto de respeitar os concursos?
Mas Gomes Carneiro insistia:
– Você vai tratar disso quanto antes. Procure o coronel Morais Rego, chefe do gabinete de Argolo,19 e me dirá depois se tenho ou não razão.
Vencido, mas não convencido, pelo otimismo do amigo, Lima Barreto acabou procurando o coronel Morais Rego, que por sinal o recebeu muito bem, garantindo-lhe a nomeação. Mais tarde, na cidade, o futuro amanuense comentava com Gomes Carneiro:
– Veja você, começo a acreditar que a única coisa moralizada nesta terra ainda é o Exército, que respeita os concursos.20
De fato, Afonso Henriques de Lima Barreto era feito, poucos dias depois, amanuense da Secretaria da Guerra, por concurso, como costumava dizer com certo orgulho. Nomeado a 27 de outubro de 1903, no dia seguinte mesmo tomou posse do cargo.21
Foi por esse tempo que se mudou com a família para Todos os Santos, indo morar em casa alugada, na Rua Boa Vista, no alto de um morro. No silêncio da habitação suburbana, João Henriques passaria a curtir, desde então, a sua neurastenia, longe dos olhos e ouvidos indiscretos. Permaneceria sentado numa cadeira dias inteiros, sem falar e sem comer. Mas, de quando em quando, o delírio se apossava dele, e o pobre homem clamava pelo filho, aos gritos, como se Lima Barreto fosse a única pessoa capaz de protegê-lo, em meio ao pavor que tinha de ser preso:
– Afonso! Afonso Barreto! Querem-me matar! Querem-me matar!
Os gritos reboavam morro abaixo, sacudindo a quietude suburbana. E por isso o povo da redondeza deu de chamar “a casa do louco” à pequena morada no alto da Rua Boa Vista, em Todos os Santos.22
Notas
1 Depoimento de Carlindo de Lima Barreto.
2 Policarpo Quaresma, p. 97.
3 Em ofício ao diretor do Serviço de Assistência a Psicopatas, datado de 01/12/1902, o administrador das Colônias de Alienados informa que João Henriques de Lima Barreto “retirou-se da ilha indo residir na Rua Vinte e Quatro de Maio nº 223 ou 225”, conforme se lê no livro de cópias dos ofícios expedidos, referentes àquele ano, no Arquivo da Colônia Juliano Moreira.
4 Depoimento de Carlindo e Evangelina de Lima Barreto.
5 A local do Jornal do Brasil, sob o título “Colônias de Alienados. Apurar”, está assim redigida. “O Jornal do Brasil, em sucessivas locais, tem profligado a má administração da Colônia de Alienados, na Ilha do Governador. A propósito vem o caso de que o respectivo almoxarife, que fora submetido à inspeção, a pedido de um filho, e julgado inválido, desde o mês passado até hoje, não solicitou a sua aposentadoria, concorrendo para que seja substituído interinamente por outro funcionário sem fiança. Segundo nos informaram, aquele almoxarife tem sido aconselhado a assim proceder, a fim de ser evitada a sua substituição efetiva, o que dará lugar a serem apuradas graves irregularidades. O Sr. ministro do Interior, que tem sido tão solícito em atender as reclamações do Jornal do Brasil, conseguindo apurar a sua veracidade, confiamos estenderá o inquérito a que se está procedendo no Hospício Nacional a essa dependência do mesmo Hospício. Como no caso da Detenção, verá também que neste ponto o Jornal do Brasil tem razão” (Transcrito de um livro de recortes de jornais, existente na Colônia Juliano Moreira).
6 Ver documento anexo, p. 260 e segs. Do Relatório apresentado ao presidente da República pelo Dr. J. J. Seabra, ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores, em abril de 1903, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1903. Nesse relatório, está escrito pela mão do ministro Seabra: “Tive o prazer de ver destruída a malévola acusação feita por aquele diário [refere-se ao Jornal do Brasil] no relatório que a mesma comissão apresentou, e vem publicado, como anexo, no relatório do ministro”.
7 Note-se ainda que, ao passar o cargo ao escriturário Amerino Raposo, que o substituiu interinamente, como administrador, as contas foram rigorosamente verificadas, achando-se todas elas em perfeita ordem. Depoimento do próprio Amerino Raposo, através de sua filha, Srta. Dulce Raposo.
8 Policarpo Quaresma, p. 105.
9 Arquivo do Ministério da Fazenda.
10 Gonzaga de Sá, p. 143 e 144.
11 Numa e a ninfa, p. 121.
12 Ver troca de cartas entre João Paulo da Rocha e Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Ver Correspondência, I, p. 41-44.
13 Antes disso, todavia, Lima Barreto decidira abandonar a Federação de Estudantes, pelo fato de a entidade se haver solidarizado com o projeto do serviço militar obrigatório.
14 Isaías Caminha, p. 128-129.
15 Diário íntimo, p. 33.
16 Ver Lata “A”, maço 18, do Arquivo do Exército. Pasta referente a Afonso Henriques de Lima Barreto.
17 Assim depõe, pelo menos, Mário Galvão.
18 Ver Arquivo do Exército. Referência citada na nota 16.
19 Francisco de Paula Argolo, ministro da Guerra no quatriênio 1902-1906 (governo Rodrigues Alves).
20 Depoimento do ministro Mário Tibúrcio Gomes Carneiro.
21 Ver Arquivo do Exército.
22 Rua Boa Vista, hoje Elisa de Albuquerque. A casa conserva o mesmo número, 76.