Esplendor dos amanuenses
[...] assim denominávamos as nossas reuniões, em vista da profissão da maioria dos convivas – amanuenses, que tinham as suas grandes horas de satisfação e jucundo prazer ali, em torno daquela mesa e com uma orgia regada a café, entre o enfado da repartição e as agruras de lares difíceis.
(Gonzaga de Sá, p. 106)
Decorreriam sem maiores novidades os primeiros tempos de Lima Barreto como amanuense da Secretaria da Guerra. O estudante crônico da Escola Politécnica, o irreverente Alfa Z., parecia talhado para a rotina burocrática. Era esta, pelo menos, a impressão que dava quem tão rapidamente se afeiçoara ao afã pouco sedutor de redigir e copiar avisos e portarias ministeriais.
“Logo no primeiro dia em que funcionei na secretaria”, escreveu o memorialista Augusto Machado, personagem que se confunde com o próprio romancista, “senti bem que todos nós nascemos para empregado público. Foi a reflexão que fiz, ao me julgar tão em mim, quando, após a posse e o compromisso ou juramento, sentei-me perfeitamente à vontade na mesa que me determinaram. Nada houve que fosse surpresa, nem tive o mínimo acanhamento. Eu tinha vinte e um para vinte e dois anos [a mesma idade de Lima Barreto, ao ingressar no funcionalismo]; e nela me abanquei como se de há muito já o fizesse. Tão depressa foi a minha adaptação que me julguei nascido para o ofício de auxiliar o Estado, com minha reduzida gramática e o meu péssimo cursivo, na sua missão de regular a marcha e a atividade da nação.”1
Foi exatamente o que aconteceu com Lima Barreto, segundo o depoimento de Mário Galvão, seu colega duas vezes: primeiro, nos bancos do Colégio Paula Freitas, e agora, na Diretoria do Expediente da Secretaria da Guerra. Em suma, o comportamento do escritor, como funcionário público, seria nos primeiros anos perfeitamente normal. Era pontual, ativo e cumpridor dos deveres. Tinha péssima letra, é verdade, mas isso não representava obstáculo irremovível ao exercício da carreira, que encetava sob tão bons auspícios. Como redigia com facilidade, davam-lhe para fazer minutas de avisos, portarias ou decretos.2
“Puseram-me também a copiar ofícios”, continua o mesmo Augusto Machado, recordando a sua iniciação burocrática, “e a minha letra tão má e o meu desleixo tão meu, muito papel fizeram-me gastar, sem que isso redundasse em grande perturbação no desenrolar das cousas governamentais”.
A vida na Secretaria da Guerra corria como em todas as repartições do mundo inteiro. Não acontecia nada.
“Os dias no emprego do Estado”, são ainda impressões do mesmíssimo Augusto Machado, “nada têm de imprevisto, não pedem qualquer espécie de esforço a mais, para viver o dia seguinte. Tudo corre calma e suavemente, sem colisões, nem sobressaltos, escrevendo-se os mesmos papéis e avisos, os mesmos decretos e portarias, da mesma maneira, durante todo o ano, exceto os dias feriados, santificados e os de ponto facultativo, invenção das melhores da nossa República”.
Tudo era igual e repetido sempre, de forma que o trabalho não apresentava outra dificuldade senão vencer a monotonia das longas horas a fio – das 10 da manhã às 3 da tarde – que passava debruçado à mesa da Secretaria. Como se fosse máquina a funcionar com uma ou outra interrupção, para o cafezinho, o lanche ou para atender a uma parte que desejasse alguma informação, o oficial pegava da pena e escrevia como que acionado por mola invisível: “Declaro-vos, para os fins convenientes...”. Ou então, mudando de chapa, rabiscava: “Tenho em vistas...” ou “Na forma do disposto...”.3
Fazia realmente um grande esforço de adaptação, a ponto de, vencendo todas as suas inibições, saudar o diretor da Secretaria da Guerra no dia de seu aniversário, num discurso de simples cortesia, em todo diferente dos derramamentos bajulatórios comuns a essas homenagens.4
Era diretor da repartição o velho Francisco Manuel das Chagas, Barão de Itaipu, tipo acabado do perfeito burocrata. Desde 1860, servia na Secretaria da Guerra, indiferente ao vaivém da política. Na Monarquia, fosse o gabinete liberal ou conservador, o barão continuava firme no seu lugar. Nem a República conseguiu derrubá-lo do posto de diretor, que havia conquistado juntamente com o título de nobreza, “graças ao seu nascimento e à sua antiguidade de funcionário”, tal como o Barão de Inhangá, cujo perfil foi feito por Lima Barreto, no Gonzaga de Sá, com traço de caricatura:
“Homem inteligente, mas vadio, nunca entendera daquilo, nem de coisa alguma. Entrara como chefe de secção e durante as horas de expediente o seu máximo trabalho era abrir e fechar a gaveta da sua secretária. Foi feito diretor e, logo que se repimpou no cargo, tratou de arranjar outra atividade. Em falta de qualquer mais útil aos interesses da pátria, o barão fazia a toda hora e a todo o instante a ponta no lápis. Em um gasto de lápis que nunca mais se acabava; mas o Brasil é rico e aprecia o serviço de seus filhos. Quando completou vinte e cinco anos de serviço, foi feito barão.”5
Nota-se que as impressões transmitidas, por Lima Barreto, ao seu amigo Antônio Noronha Santos, acerca do Barão de Itaipu, coincidem quase que totalmente com as de Augusto Machado sobre Inhangá.
“Lima Barreto”, conta Noronha Santos, “tinha sobre o funcionalismo ideias muito pessoais, armazenadas no decurso do seu longo estágio numa Secretaria de Estado. Vira ele, anos a fio, o venerando Barão de Itaipu (Chagas Dória) [sic], diretor daquela Secretaria, abrir e fechar gavetas. Sinal certo de desocupação, dizia-me. Sempre que você vir um sujeito qualquer abrindo e fechando gavetas, não tenha a menor dúvida, é que ele não tem nada o que fazer”.6
No entanto, Itaipu era o oráculo da Secretaria. Apontam-no ainda hoje como o modelo dos funcionários. E é bem possível que se tratasse de fato de um ótimo servidor do Estado. O romancista decerto exagerava ao retratar o venerando burocrata, que havia trabalhado com cinquenta e seis diferentes ministros da Guerra, que era o primeiro a chegar e o último a sair da repartição, solene e empertigado na sobrecasaca preta, que nunca deixou de usar, fizesse calor ou frio. Na sua indumentária, que evocava os bons tempos do Império, o diretor da Secretaria da Guerra não dispensava a cartola negra e reluzente, símbolo de toda uma classe, como se tal cobertura fosse a única digna de tão fidalga cabeça.7
Se tinha a chefiá-la um antigo titular da Monarquia, aquela repartição – que cuidava da defesa nacional e velava pela segurança do regime republicano – possuía no seu quadro de funcionários um dos mais ativos propagandistas do anarquismo, que àquele tempo começava a ganhar adeptos no Brasil. Chamava-se Domingos Ribeiro Filho e era um misto de boêmio e revolucionário, pregando as suas ideias e fazendo a sua literatura nos cafés das ruas do Ouvidor e Gonçalves Dias.
“Pequenino de estatura, muito feio, o narigão recurvo”, assim o descreve Astrojildo Pereira, que o conheceu pessoalmente e com ele privou, “Domingos Ribeiro Filho constituía-se logo, em qualquer grupo, a figura central, graças ao sortilégio de um espírito em fulguração permanente. Era na verdade um conversador admirável, e escrevia como falava, com a mesma abundância e o mesmo encanto. Os seus ditos, os seus epigramas, os seus sarcasmos demolidores se sucediam e multiplicavam com uma vivacidade absolutamente pasmosa”.8
Os primeiros jornais anarquistas apareceram no Rio de Janeiro no último quartel do século XIX. Citam-se, entre outros, O Despertar, de José Sarmento, O Protesto e O Golpe como pioneiros, estes últimos dirigidos por Mota Assunção.9
Não sabemos se Domingos Ribeiro Filho colaborou em algum desses pequenos jornais de vida efêmera e difícil, que apareciam e desapareciam como meteoros, causando pasmo e temor, apenas por alguns momentos, a pacatos leitores afeitos aos sonetos de Olavo Bilac e às graçolas de Emílio de Meneses. Na adolescência, Domingos fora florianista exaltado, a ponto de pegar em armas por ocasião da Revolta da Armada, em 1893, para defender o marechal. Ligara-se depois à corrente revolucionária, sem contudo cortar as amarras com a burguesia. Tanto assim que se fez funcionário público. Nunca, entretanto, escondeu suas ideias, fazendo mesmo questão de proclamá-las, dentro e fora da repartição. A atividade jornalística de Domingos Ribeiro Filho não se limitava, porém, às colaborações que publicava na imprensa revolucionária. Em 1903, vemo-lo secretário de uma revista, A Avenida, a princípio, sob a direção de Crispim do Amaral, e de Cardoso Júnior, depois.10
O Rio de Janeiro vivia a grande hora da sua remodelação. Osvaldo Cruz, um jovem médico desconhecido, com menos de 30 anos, enfrentava o problema da febre amarela e saneava a cidade. Ao mesmo tempo, sobre os escombros dos velhos sobradões coloniais, demolidos pela prefeitura, Pereira Passos construía uma nova metrópole, sem sacrificar a beleza da paisagem, tão gabada por nós, há quatro séculos celebrada por quanto viajante estrangeiro aportasse à Guanabara.
Rio Branco compara o prefeito Passos a Haussmann, o reformador de Paris, com certo exagero talvez – faltava à obra dinâmica de Pereira Passos um sistema, que lhe garantisse a continuidade –, mas a lembrança do chanceler, que passava por ser o homem supercivilizado da época, reflete um estado de espírito que um cronista sintetizaria mais tarde na frase que ficou famosa – “O Rio civiliza-se...” – para definir o período da vida carioca que se seguiu à abertura da Avenida Central.
O povo assistia espantado à revolução urbanística. Em meio à poeira levantada pelos quarteirões derribados, às dezenas, pelos alviões e picaretas da municipalidade – para abrir a avenida foram demolidas mais de 500 casas –, o povo não se lembrava de Paris, como o Barão do Rio Branco, nem da civilização, como o cronista, e dizia boquiaberto:
– É o bota-abaixo!
A Avenida Central – que depois se chamou Rio Branco – assinala com efeito o fim de uma época. Depois de sua construção, estava fadado a desaparecer rapidamente o velho Rio de Janeiro dos tílburis e dos bondes de burro. O título escolhido para a revista secretariada por Domingos Ribeiro Filho dá bem a ideia do que a avenida significava para o carioca, entontecido diante de tanta novidade.
Pelas ruas da cidade, apareciam os primeiros automóveis, um dos quais pertencia ao grande jornalista José do Patrocínio, diretor da Cidade do Rio, saltando por cima de pedras ou enterrando as rodas nas poças de lama.11
Os primeiros bondes elétricos, a que Lima Barreto chamava “os mastodontes da Light”, surgidos poucos anos antes, na zona sul, bairros da gente rica, começavam a estender as suas linhas na direção dos subúrbios. Era o progresso que chegava, impondo com a sua presença um ritmo diferente à vida da cidade, que conservava ainda o ressaibo provinciano da aldeona dos últimos anos do Império.
O Rio de 1903 ainda estava longe de ser uma grande cidade. Nem era possível que tão radical transformação se operasse da noite para o dia, como num passe de mágica do prefeito Pereira Passos.
“A remodelação da velha urbs”, observa um cronista, que foi testemunha do período do “Bota-Abaixo”, “foi demorada, e obedeceu ao ritmo caprichoso, ora presto, ora lento, que caracteriza as nossas atividades. Em suma, a avenida fez-se devagar.
“As primeiras casas que surgiram apresentavam o mesmo aspecto de utilidade imediata dos barracões improvisados depois de um terremoto. De uma, recordo-me ainda hoje: era um ingênuo armazém de secos e molhados ali pelas alturas do Soria e Boffoni [no quarteirão das ruas São José e Assembleia]. E faliram, como também faliu por essa época a primeira empresa de transportes em automóveis que acreditou, talvez por ouvir falar, na teoria das mutações rápidas aplicadas ao mundo social.
“O povo continuou a mover-se sem pressa, e só com o tempo foi adaptando hábitos ancestrais ao novo ambiente.
“Novo, sim, sobretudo à noite, com as luzes variegadas dos primeiros reclames luminosos que o Rio conheceu, e os seus terraços e mesas da Americana e do Jeremias – insolentemente espalhadas pelos passeios...”12
Podia-se dizer que o Rio de Janeiro era, por esse tempo, a cidade dos cafés. Nunca existiram tantos! Será impossível, nem isso interessa ao leitor, mencioná-los um por um. Café do Rio, Cascata, Paris, Papagaio, Jeremias, Americana, Java, o Criterium.
Havia também as confeitarias, como a Colombo e a Pascoal. E os bares, como Stadt München e o do Jacob, o famoso “Braço de Ferro”, na Rua da Assembleia, que depois ficou conhecido por Bar Adolf, com a investidura do antigo garçom, Adolf Ruyaneck (ou Runyaneck), na propriedade do mesmo.13
Por todos esses cafés, confeitarias e bares, que se concentravam no centro urbano, isto é, na Rua do Ouvidor, e imediações, passava obrigatoriamente toda a população da cidade, que não ia além de 730 mil almas.14 O café era o ponto obrigatório de políticos, escritores, artistas, estudantes e cocottes. Não é possível esquecê-las, pois as francesas dão ao ambiente do começo do século uma nota característica.15
É o fim do período áureo da boêmia literária, das patuscadas e das bebedeiras, em que Emílio de Meneses pontificava na Confeitaria Colombo, como se fosse um deus expulso do Olimpo por mau comportamento. Em torno do poeta medíocre, mas cheio de verve, temido por sua veia satírica, uma porção de jovens escritores se acotovelava para ouvir “a última do Emílio”! E, assim, o tempo passava, por entre trocadilhos, sonetos humorísticos, copázios de cerveja alemã – a “Bock Ale” – e cálices de conhaque francês. “Bebia-se demais”, completa Luís Edmundo, ao escrever a crônica dos 1900, “bebia-se como talvez não havia ideia de se haver bebido no Brasil”.16
Essa vida de café faz pensar nos romances de Murger, conforme já foi observado. Muitos de seus frequentadores se não imitavam deliberadamente os personagens de Scènes de la vie de Bohème, bem que gostaria de ser comparados com eles. Com Rodolfo. Com Mimi Pinson.
Pois foi num desses cafés que Antônio Noronha Santos ficou conhecendo Lima Barreto. Já vimos, os dois amigos em companhia de Álvaro Osório de Almeida e Edmundo da Cunha Melo, conversando no Café Java, ponto predileto dos estudantes da Escola Politécnica, que ficava defronte, no Largo de São Francisco de Paula.
Outros encontros, que decidiram sobre a amizade de ambos, pelo resto da vida, se deram, por volta de 1903, nas mesas da Americana ou do Jeremias, espalhadas pelo passeio da avenida.
O futuro escritor já possuía a sua roda de admiradores, muito embora nenhum nome de relevo nas letras ou na sociedade formasse no seu “séquito humilde”.
“Essa roda de rapazes mais ou menos instruídos, mas sem a menor pretensão relevada a qualquer espécie de celebridade”, é ainda Noronha Santos quem o diz, “aplicava o preceito de Stendhal: ‘Ne jamais parler littérature’ [...]”.
Quem eram eles? Pausílipo da Fonseca, redator político do Correio da Manhã, e que depois vai dirigir um semanário anarquista, Novo Rumo; Gilberto de Morais, vivo e inteligente, entusiasta de Eça de Queirós; Antônio Noronha Santos, estudante de Direito, com um ligeiro sotaque francês, falando muito em Baudelaire e em Anatole France, ao mesmo tempo. A essa roda juntar-se-ia mais tarde o estudante de Engenharia Joaquim Vilarinho, que morreu muito cedo, e foi um dos maiores bebedores de parati que o Rio de Janeiro conheceu.
Recordando todos esses nomes de antigos companheiros da sua mocidade, hoje caídos no esquecimento, acrescenta Antônio Noronha Santos mais uma informação curiosa:
“[...] embora Lima Barreto frequentasse também outras rodas, como a do Café Papagaio, onde avultavam, pelo talento e pela verve, Bastos Tigre, Domingos Ribeiro Filho e o engenheiro Ribeiro de Almeida, e na qual se discutia ‘Arte’, era a primeira [a do Jeremias ou da Americana] a sua predileta, e, só com o correr dos anos, se afastou lentamente dela.”17
Seria difícil optar por uma ou outra roda. Se preferia a primeira à segunda, o certo é que Lima Barreto por duas vezes faz referências, em escritos seus, ao grupo que se reunia todas as tardes no Café Papagaio, sob a liderança de Domingos Ribeiro Filho: num artigo de jornal e depois num romance, o Gonzaga de Sá, onde se reproduz quase com as mesmas palavras o trabalho jornalístico.18
Vale a pena citá-lo aqui, pelas numerosas informações que nos proporciona.
“Nós nos reuníamos, nesse tempo”, diz o artigo, “no Café Papagaio. Aí pelas três horas, lá estávamos a palestrar, a discutir coisas graves e insolúveis. Como havia entre nós bem uns quatro amanuenses, o grupo foi chamado ‘Esplendor dos Amanuenses’, na intenção de mais justamente destacar aquelas horas de felicidade, de liberdade, em oposição às de inércia nas secretarias e repartições, quando, acorrentados à galé dos protocolos e registros, remávamos sob o chicote da Vida. E falávamos a mais não poder ou então fundávamos jornalecos e escrevíamos coisas portentosas nas revistas, cujas aparições eram determinadas pelo estampar de solenes retratos de graves personagens da justiça, do comércio, da finança e da administração. Panteons ambulantes, a que não faltavam os panegíricos das nossas fórmulas ocultas. Já lá vão quase dez anos [o artigo citado é de 1911] e o Rio ainda era uma velha e feia cidade, de ruas estreitas e mal calçadas, mas, não sei por que, mais interessante, mais sincera, do que esse Rio binocular19 que temos agora, Rio trompe l’oeil, com avenidas e palácios de fachadas, só cascas de casa, espécie de portentos cenográficos”.
Depois desse desabafo, tão frequente nos seus artigos de jornal, como nos romances, contra tudo de que não gostava, Lima Barreto passa a falar dos que formavam a roda do “Esplendor dos Amanuenses”:
“O Rafael Pinheiro, um deles, andava sempre de sobrecasaca e cartola, e ainda não era bibliófilo, nem esteio e suporte das instituições.20 O Amorim Júnior ensaiava a reportagem tétrica e contava casos espantosos, coisas de Hoffmann, que nos causavam pesadelos e iniciavam em lados curiosos da natureza humana; o Tigre fazia trocadilhos e o Domingos Ribeiro escachoava saillies. Havia também o Raul, o Calixto, o João Rangel, cheio de talento, mas desalentado, o Gil – o Lenoir –, uma revelação, um quase assombro na caricatura... Oh! o triste Lenoir, o grande Lenoir, que lá se foi para longe, abraçado eternamente com a morte...21 Era este último o menos falador da roda: ouvia com muita atenção as nossas sempre transcendentes discussões e, ao notar que o seu silêncio pesava, tentava trocadilhar – o que, no tempo, era da moda. O Fagundes, o charuteiro, o alegre Fagundes, de quando em quando, emitia uma substanciosa opinião literária. E bebíamos café, só café, pois as finanças não permitiam o luxo da cerveja ou do whisky.”22
A citação foi longa, mas o seu final é importantíssimo, mesmo porque vem coincidir com a confissão de Isaías Caminha, lembrada no capítulo anterior, e com o artigo que Lima Barreto escreveu sobre Henrique Rocha,23 no qual recorda a sua iniciação na vida boêmia e no jornalismo, logo após a doença paterna, quando desiste de estudar Engenharia, decidindo-se a ingressar no funcionalismo público.
No seu Diário íntimo, que começa então a escrever, Lima Barreto garatuja os dois primeiros mandamentos de um decálogo, que não chegou a concluir e que havia de cumprir apenas pela metade: “1 – Não ser mais aluno da Escola Politécnica; 2 – Não beber em excesso coisa alguma [...]”.24
No artigo, evocando a figura bizarra de Henrique Rocha, o “Rocha Alazão”, escreveu Lima Barreto sobre essa mesma fase da sua vida: “Não tinha eu hábitos de boêmia de botequim, de confeitaria, apesar de desde pouco mais de quinze anos, quando me matriculei [na Escola Politécnica], até àquela data [1903], viver sobre mim, em casas de cômodos e comendo em pensões mais ou menos familiares”.
Como vimos, foi nos cafés que Lima Barreto veio a travar relações com o meio intelectual da época. Com “uma porção de artistas, de poetas, de filósofos, de cronistas, jornalistas e repórteres”, diz o escritor, e os enumera a todos, tal como já o fizera antes com a turma do Café Papagaio, incluindo novos nomes, como os de Emílio de Meneses, Guimarães Passos, Raul Braga, Luís Edmundo, Santos Maia, Heitor Malagutti, Evêncio Nunes, Maurício Jobim, Camerino Rocha, os dois irmãos Chambellands, os dois irmãos Timóteos, Helios Seelinger, Gonzaga Duque, Lima Campos.
Bastos Tigre, que está sempre na roda, convida o antigo colega da Politécnica para fazerem juntos revistas, como A Quinzena Alegre e O Diabo, ambas de duração efêmera. Naquela, a fiar no depoimento de Bastos Tigre, Lima Barreto publicou a primeira versão do seu conto “Agaricus auditae”.25
N’O Diabo, semanário que se intitulava “revista infernal de troça e filosofia”, que circulou apenas quatro vezes, o cronista aparece sob o pseudônimo de Rui de Pina,26 o mesmo que usou nas poucas vezes que colaborou no Tagarela, o jornal humorístico mais interessante da época, com caricaturas de Raul, Falstaff e Calixto Cordeiro.27
Em O Pau, de Crispim do Amaral, é bem possível que Lima Barreto tivesse colaborado,28 mas n’Avenida, de Domingo Ribeiro Filho, não se encontra nenhum sinal que possa indicar a sua presença.
Preocupado com os encargos da família, Lima Barreto talvez desejasse fazer do jornalismo mais do que um simples passatempo, um meio de ganhar a vida, já que o dinheiro mal chegava para as despesas, conforme se verifica do “orçamento definitivo”, registrado no Diário íntimo. Com o que recebia o pai, já então aposentado, e mais o irmão, Carlindo, somados aos vencimentos de amanuense da Secretaria da Guerra, a receita não ia além de 360$000. A despesa forçada era de 220$000: 120$000 para o aluguel da casa, 100$000 para o armazém.29 Sem falar em médico, farmácia, roupa, livros e tantas outras coisas que não foram previstas na contabilidade doméstica do jovem escritor.
Por esse tempo, Carlos Viana, que, também, conhecera nos bancos da Politécnica, confia a Lima Barreto a secretaria da Revista da Época, uma revista como tantas outras, vivendo de cavações, e que, fundada em 1902, não conseguiria ainda sair com regularidade. Pensava agora o diretor – estamos em fins de 1903 – restabelecer a periodicidade. Contava com bons empenhos na política. Podia fazer jornalismo e ganhar algum dinheiro.
Mas Lima Barreto há de ficar muito pouco tempo à frente da secretaria da publicação, muito embora não se desligasse de todo nem da Revista da Época, nem do seu diretor.
É que não se conformaria jamais em escrever louvores, mesmo sem a sua assinatura, aos mandarins da política. Por isso demitiu-se meses depois, enviando a Carlos Viana uma carta em que confessa ter rompido, cheio de vergonha, “numa crise de desespero”, um artigo encomendado pelo diretor. “Oito tiras” de papel, elogiando um senador do Paraná, figura influente na política.
Lima Barreto não tinha ordenado fixo na Revista da Época. Recebia pro labore. A sua atitude poderia desgostar o amigo. Por outro lado, ia pesar no “orçamento definitivo”, o que pouca importância teria, para ele, quando se tratava de escolher entre ganhar dinheiro ou ficar em paz com a sua consciência.30
Um ano mais tarde, Lima Barreto faz nova tentativa para ingressar no jornalismo profissional, escrevendo reportagens no Correio da Manhã.
Quem o teria levado para o jornal de Edmundo Bittencourt? Pausílipo da Fonseca? Bastos Tigre? Ambos eram amigos seus. Ambos trabalhavam no Correio, o mais desabusado órgão da imprensa carioca, que firmara o seu prestígio, por assim dizer, instantaneamente, no primeiro número talvez. Apareceu a denunciar negociatas, atacando de rijo os figurões da política, os comendadores das Ordens Terceiras, quebrando enfim todos os tabus da época. Aquele panache a princípio chocou, estabelecendo um contraste vivo com a timidez e a covardia dos jornais que até então “orientavam” o que se convencionou chamar a “opinião pública”, submissos aos interesses políticos e comerciais deste ou daquele grupo.31
São, contudo, imprecisos os dados acerca da passagem de Lima Barreto pelo Correio da Manhã. Simples colaborador ou redator efetivo, são inquestionavelmente da sua autoria a série de reportagens (vinte e duas, ao todo) em torno das escavações dos subterrâneos do Morro do Castelo, ao tempo em que eram concluídos os trabalhos de abertura da Avenida Central, na altura da Praia de Santa Luzia.VIII
As reportagens começaram a ser publicadas em 28 de abril de 1905 e só terminaram a 3 de junho do mesmo ano. O repórter soube tirar partido do tema, no seu dizer, “farta messe de assunto para os amadores da literatura fantástica e para os megalômanos, candidatos a um aposento na praia das Saudades”.32
Na Praia das Saudades – será lícito esclarecer o leitor – ficava o hospício. Falava-se muito nos fabulosos tesouros dos jesuítas, enterrados nas galerias subterrâneas do Morro do Castelo. Imagens de Santo Inácio de Loiola, São Sebastião, São José e a Virgem, todos de tamanho natural, e em ouro maciço!
Não será difícil identificar o autor da reportagem, publicada sem assinatura no Correio da Manhã. De uma grande parte dela ficaram as laudas escritas a mão naquela letra inconfundível que pertencia a Lima Barreto.
Esse manuscrito é uma narrativa romanceada, que o repórter diz ter encontrado nas escavações, com um título quilométrico: D. Garça ou o que se passou em começos do Século XVIII, nos subterrâneos dos Padres da Companhia de Jesus na cidade de S. Sebastian do Rio de Janeiro, a mui heroica, por ocasião da primeira invasão francesa ao mando de Clerc.33
Mas isto não passa, é claro, de simples truque de reportagem. D. Garça já é, fora de dúvida, um arremedo de romance. Muito fraco, muito tênue, que nem de longe dá para revelar o futuro escritor do Triste fim de Policarpo Quaresma. Lima Barreto apenas ensaiava o voo.
Notas
1 “Três gênios de Secretaria”. Gonzaga de Sá, p. 171-172.
2 Depoimento de Mário Galvão, jornalista e funcionário aposentado da Secretaria da Guerra.
3 Gonzaga de Sá, p. 172-173.
4 O original desse discurso encontra-se na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, Col. Lima Barreto. Ver Diário íntimo, p. 62-63.
5 Gonzaga de Sá, p. 79.
6 “Uma paradinha só”, artigo de Antônio Noronha Santos, publicado no jornal A Palavra. Recorte cedido ao autor, sem indicação de data.
7 Depoimento de Laurêncio Lago, funcionário aposentado da Secretaria da Guerra.
8 “Domingos Ribeiro Filho”, artigo de Astrojildo Pereira, em Diretrizes (fase do semanário), Rio de Janeiro, n. 107, 16/07/1942.
9 Notas cedidas ao autor por Edgard Leuenroth.
10 O primeiro número d’Avenida é de 01/08/1903.
11 Segundo Gastão Cruls, Aparência do Rio de Janeiro, 1949, p. 455.
12 “Primeiro contacto com Lima Barreto”, artigo de B. Quadros (pseudônimo de Antônio Noronha Santos), publicado na revista Vida Nova, Rio de Janeiro, 25/01/1936, ano XI, n. 279, p. 23-24, reproduzido, como prefácio, no volume Correspondências, II, p. 9-14.
13 Vide O Rio de Janeiro do meu tempo, 1938, 3 volumes, de Luís Edmundo, que apresenta um grande quadro da vida boêmia do começo do século.
14 O dado foi retirado da obra de Gondin da Fonseca, Santos Dumont, 1940, onde há informações muito curiosas sobre o Rio de Janeiro de 1903, p. 101 e seguintes.
15 A propósito das francesas, dizia Gonzaga de Sá que elas se davam “ao trabalho de nos polir”. E o ironista assim prossegue: “A sua missão era afinar a nossa sociedade, tirar as asperezas que tinham ficado da gente dada à chatinagem e à veniaga dos escravos soturnos que nos formaram; era trazer aos intelectuais as emoções dos traços corretos apesar de tudo, das fisionomias regulares e clássicas daquela Grécia de receita com que eles sonham” (Gonzaga de Sá, p. 105).
16 Luís Edmundo, O Rio de Janeiro do meu tempo, 1938, 3 volumes.
17 B. Quadros, artigo citado na nota 12. Em outro artigo, no qual aliás se identifica como sendo o B. Quadros da crônica da “Vida nova”, Antônio Noronha Santos dá outra versão ao primeiro encontro com Lima Barreto, recuando-o ao tempo da publicação d’O Diabo (1903). “Quando o Otávio Fonseca fez a apresentação de estilo, fomos ao Café Cascata, onde Lima nos leu os Cogumelos auditivos, uma sátira à Swift, bem entendido – dos frequentadores do Teatro Lírico.” “Lima Barreto e Afrânio Peixoto (em torno de dois romances à clef)”, Pan-Estadual, Rio de Janeiro, novembro-dezembro de 1942, p. 5-7. Há aqui, talvez, um dado a retificar. Disse-nos Bastos Tigre que o conto Cogumelos auditivos fora publicado pela primeira vez n’A Quinzena Alegre (1902), jornalzinho de que não existe hoje sequer um exemplar. N’O Diabo é que não foi, conforme pude verificar, valendo-me, aliás, da própria coleção pertencente a Lima Barreto.
18 Intitula-se o artigo, “Os galeões do México”. É dedicado a Domingos Ribeiro Filho, e foi publicado na Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, em 20/05/1911. O capítulo do Gonzaga de Sá, no qual se faz referência ao “Esplendor dos Amanuenses”, intitula-se “O padrinho”, com a citação dos que frequentavam o Café Papagaio: “o Amorim, o Domingos, o Rangel e eu [...]” (p. 106).
19 Expressão alusiva à seção de elegâncias da Gazeta de Notícias, “O binóculo”, redigida por Figueiredo Pimentel.
20 Jornalista e orador de comícios populares.
21 Carlos Lenoir, caricaturista que se assinava Gil, foi colaborador d’A Avenida. Era notável no desenho de cabeças.
22 “Os Galeões do México”, em Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 20/05/1911.
23 Bagatelas, p. 195-204.
24 Diário íntimo, p. 33.
25 Não conseguimos obter nenhum exemplar desta publicação. O conto está em Histórias e sonhos, p. 101-114.
26 “Sobre a Universidade”, crônica de Rui de Pina. N’O Diabo, n. 2, 19/08/1903. Coleção do autor.
27 O Tagarela publica dois artigos de Rui de Pina: “Vendo a brigada Stegomia”, a 09/07/1903, “Ópera ou circo?”, a 23/07/1903. Coleção da Biblioteca Nacional.
28 Presumimos ser de Lima Barreto a crônica “O morticíno dos não-euclidianos”, assinada Alfaz, quase o mesmo pseudônimo usado n’A Lanterna – Alfa Z. O Pau, Rio de Janeiro, ano I, n. 1, de 12/08/1905. Coleção da Associação Brasileira de Imprensa.
29 Diário íntimo, p. 41-42.
30 Carta a Carlos Viana, datada de 28/02/1904. Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Ver Correspondências, I, p. 49-54.
31 Assim qualificou Luís Edmundo, escritor conservador, a imprensa da época: “aparelho modelar de subserviência e ternura, que os homens da politicagem enfeitiçaram”. A esse propósito, cabe lembrar aqui o comentário de uma das personagens de Lima Barreto: “[...] antigamente, entre nós, o jornal era de Ferreira de Araújo, de José do Patrocínio, de Fulano, de Beltrano... Hoje de quem são? A Gazeta é do Gaffrée, o País é do Visconde de Morais ou do Sampaio e assim por diante. E por detrás dela [a imprensa] estão os estrangeiros, se não inimigos nossos, mas quase sempre indiferentes às nossas aspirações [...]” (Isaías Caminha, p. 147).
32 Correio da Manhã, 28/04/1905.
33 Correio da Manhã, 08/05/1905 a 26/05/1905.
VIII Esta série de reportagens foi editada, como livro, em 1997: O subterrâneo do morro do Castelo: um folhetim de Lima Barreto (organização, introdução e notas de Beatriz Resende). Rio de Janeiro: Dantes, 1997.
À reportagem sobre escavações que a Prefeitura do Rio de Janeiro realizava no morro do Castelo, Lima Barreto incorporou a narrativa folhetinesca. D. Garça ou O que se passou em começos do século XVIII, nos subterrâneos dos padres da Companhia de Jesus na cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, a mui heroica, por ocasião da primeira invasão francesa a mando de Clerc. São os manuscritos de D. Garça, inclusive com desenho feito por Lima Barreto nas mesmas folhas, guardados na Biblioteca Nacional, que autenticam a autoria de O subterrâneo do morro do Castelo, já que as reportagens foram publicadas no jornal sem indicação do autor. (N.R.)