Bovarismo

A minha vida de família tem sido uma atroz desgraça. Entre eu e ela há tanta dessemelhança, tanta cisão, que eu não sei como adaptar-me. Será o meu ‘bovarismo’?

(Diário íntimo, p. 91)

o se pode saber com certeza – com a certeza necessária a uma afirmação categórica – se foi D. Garça o primeiro esboço de romance tentado por Lima Barreto. Um ano antes, A Lanterna havia publicado um trabalho do antigo estudante, com a indicação de que se tratava de “capítulo de romance inédito”. Intitulava-se Chez Madame da Costa.

Não só o título, como também o conteúdo, é o que pode haver de mais antilimabarretiano. Descreve, o tal capítulo, uma recepção nas Laranjeiras no estilo das crônicas elegantes do “Binóculo”, com as mesmas futilidades, entremeadas de palavras em francês, como que para acentuar o ridículo do que era considerado o chic da época.

Seria uma sátira à sociedade? Evidentemente, sim. Mas se era este o propósito, a julgar-se pela amostra apresentada, o romancista fez muito bem em não levar adiante o projeto.1

Em toda a vida, Lima Barreto jamais assistiria a uma recepção. Na verdade, viveu da sua casa suburbana para a repartição. Frequentava redações de jornal, cafés e livrarias.

Poucas eram as casas que visitava – e assim mesmo nos tempos da primeira mocidade –, como a dos Noronhas Santos, no Rio Comprido, onde, regularmente, durante um largo período, nas quartas-feiras, à noite, ficava a conversar horas a fio com os três irmãos João, Antônio e Carlos, em tertúlia literária, de raro em raro interrompida pela presença do chefe da família ou da filha deste, a quem Lima Barreto chamava respeitosamente D. Zinha, apesar de mais moça do que ele e da relativa intimidade que existia entre ambos.2

Ia também, algumas vezes, a Niterói, aos domingos, passar o dia com Otávio Carneiro, seu amigo de infância, que o recebia festivamente na sua casa de Santa Rosa, na Rua Paulo César, numa alegria de que compartilhava toda a família do jovem engenheiro.

“Lá”, é o próprio Lima Barreto quem o diz, “passava as tardes com ele [Otávio], o Levi3 e o resto da família, às vezes, mesmo, aparecia o Ribeiro de Almeida, e nas nossas discussões sempre intervinha sua mãe, uma doce senhora que se encantava com a nossa vivacidade, mais deles do que minha, por isso intervinha quando se acaloravam, para que não nos esgotássemos logo nos primeiros embates”.4

Outra gente que visitava assiduamente, pela mesma época, eram os irmãos Gomes Carneiros, em São Cristóvão, em cuja casa chegou a passar uma temporada.5

Nessas visitas,IX resumia-se a vida social de Lima Barreto, não só nos primeiros anos da mocidade, como um pouco mais tarde, após a publicação em livro do Isaías Caminha, ao tempo em que o escritor já se havia transformado no boêmio que todo o Rio de Janeiro conheceu, de 1910 em diante.

“Com uma fatiota domingueira e bem cuidada”, José Vieira o descreve almoçando em companhia de amigos, na Estação do Rocha. “Tenho presente”, relembra o escritor paraibano, “o modo delicado, sem embaraço, a jovialidade familiar com que tratou as senhoras, a discrição com que se referia a nós três, homens; como se privou de exceder-se no copo, com se fez o hóspede da primeira visita agradável pelas novas e notas pessoais da conversa”.6

Se era, como diz ainda José Vieira, “um homem de boas maneiras, mesmo fino”, o certo é que Lima Barreto estava muito longe de ser um dândi e muito dificilmente poderia tentar um gênero literário como o romance mundano – sátira, documentário ou o que fosse –, pois não era este o seu ambiente. Não seria em Laranjeiras ou em Botafogo que iria encontrar os seus personagens. Tinha que voltar as vistas para a gente dos subúrbios. E não demorou muito para compreender isso.

Mas Lima Barreto, por volta de 1904, ainda não se sentia integrado na vida suburbana. Aborrecia-o viajar de trem, que era o principal meio de transporte para a cidade. Mortifica-se não só pelo trem, mas principalmente pelos passageiros, a maioria dos quais funcionários públicos. Todos o olhavam com curiosidade, e Lima Barreto sentia-se vexado, ferido no seu amor-próprio pelos ocupantes da primeira classe.

“A presunção, o pedantismo, a arrogância e o desdém em que olhavam as minhas roupas desfiadas e verdoengas, sacudiam-me os nervos e davam-me ânimos de revolta”, chegou a confessar num artigo de jornal.7 Essa ojeriza se dirigia particularmente aos espécimes da aristocracia suburbana, que, segundo o escritor, começava no contínuo de gabinete ministerial e terminava no chefe de seção das repartições públicas.

“O brasileiro”, continuou noutro passo, mas tendo, como campo de observações, ainda o trem do subúrbio, “é vaidoso e guloso de títulos ocos e honrarias chocas. O seu ideal é ter distinções de anéis, de veneras, de condecorações, andar cheio de dourados, com o peito chamarré d’or, seja da Guarda Civil ou da atual segunda linha. Observem. Quanto mais modesta for a categoria do empregado – no subúrbio pelo menos – mais enfatuado ele se mostra. Um velho contínuo tem-se na conta de grande e imensa coisa, só pelo fato de ser funcionário do Estado, para carregar papéis de um lado para outro: e um simples terceiro oficial, que a isso chegou, por trapaças de transferências e artigos capciosos nas reformas, partindo de ‘servente adido à escrita’, impa que nem um diretor notável, quando compra, se o faz, a passagem no guichê da estação. Empurra brutalmente os outros, olha com desdém os malvestidos, bate nervosamente com os níqueis [...]”. Toda essa gente o irritava, não há dúvida, mas o escritor sempre terá um olhar de ternura, que não pôde omitir numa das suas crônicas mais sugestivas, ao descrever a estação suburbana, por entre a fauna de bacharéis e contínuos, metidos a gente importante, fixando-o numa menina que passa ao seu lado, “carregando uma caixa de violino, um rolo de músicas e um livro”, cujo título ele conseguiu ler na lombada: A toutinegra do moinho.8

A pessoas assim – simples, naturais, humanas – é que amava. Aos outros – enfatuados, pedantes, presunçosos – tinha ódio, pois não sabia olhar a ninguém com indiferença.

A verdade é que o rapaz cheio de sonhos não aceitou sem relutâncias a mediocridade da vida que passaria a viver. Antes da doença paterna, o seu tempo era dividido entre as bibliotecas e as conversas de café. Convivia com artistas, escritores, jornalistas, numa agradável disponibilidade. Agora, não. Fizera-se funcionário público. Era chefe de uma família numerosa. Tinha deveres e responsabilidades, que lhe impunham à vida uma rotina cruel.

O dinheiro era pouco. Além do trabalho da repartição, vira-se obrigado a aceitar alunos particulares, preparando-os para exames no Pedro II ou no Colégio Militar.9

Tudo isto, porém, estava muito longe do que havia sonhado: ser romancista, viver da inteligência e para a inteligência, sem outra preocupação que a de escrever os seus livros. Daí as fugas constantes, as longas visitas dominicais aos amigos, gente de condição superior à sua, social e financeiramente, que o recebia em casas confortáveis, e com quem conversava de igual para igual.

Dir-se-ia que ele estava indeciso entre a zona sul e a zona norte, que delimitam, por assim dizer, os nossos aristocratas – ou pseudoaristocratas – da parte mais humilde da população carioca.

Nem o subúrbio, nem a sua casa lhe agradavam. Foi talvez pensando um pouco no seu próprio caso que escreveu, em Clara dos Anjos: “O subúrbio é o refúgio dos infelizes”.10 Quanto ao desajustamento doméstico, agravado pela moléstia do pai, está patente em mais de uma página do Diário íntimo.

“Eu tenho”, dizia, “muita simpatia pela gente pobre do Brasil, especialmente pelos de cor, mas não me é possível transformar essa simpatia literária, artística, por assim dizer, em vida comum com eles, pelo menos com os que vivo, que, sem reconhecerem a minha superioridade, absolutamente não têm por mim nenhum respeito e nenhum amor que lhes fizesse obedecer cegamente”.

E, completando o desabafo, acrescenta mais adiante:

“A minha melancolia, a mobilidade do meu espírito, o cepticismo que me corrói – cepticismo que, atingindo as cousas e pessoas estranhas a mim, alcançam também a minha própria entidade – nasceu da minha adolescência feita nesse sentimento da minha vergonha doméstica, que também deu nascimento a minha única e grande falta.”11 Essa falta, já se sabe, foi o vício de beber.

Para ele, era sempre um tormento voltar para casa, sentir de perto a triste realidade que era a sua vida.12 Recolhia-se imediatamente ao quarto, depois de comer o prato de feijão requentado, que a irmã nunca deixou de guardar. O quarto de dormir, que servia ao mesmo tempo de gabinete de trabalho, era o seu refúgio. Ficava na frente da casa, com amplas janelas dando para o jardim, modesto jardim que uma cerca de bambu isolava da rua suburbana, esburacada, cheia de pó, mas silenciosa.

Era nesse quarto que tinha os seus livros, e ali se trancava, esquecido do resto do mundo, para ler ou escrever. Passava dias inteiros no refúgio, que ele havia decorado a seu gosto, pregando às paredes retratos dos escritores da sua predileção, tirados das páginas de revistas francesas.13 Renan, Balzac, Dostoiévski, Anatole France, Maurice Barrès!

Por duas vezes, através de personagens, Lima Barreto enumera os autores da sua admiração. No Isaías Caminha, por exemplo, confessa que procurara, nos grandes autores, modelos e normas e, mais do que isso, o “segredo de fazer” romances.

“Procurei-os, confesso; e, agora mesmo, ao alcance das mãos, tenho os autores que mais amo. Estão ali O Crime e o Castigo de Dostoiévski, um volume dos Contos, de Voltaire, A Guerra e a Paz, de Tolstói, o Rouge et Noir de Stendhal, a Cousine Bette de Balzac, a Éducation Sentimentale, de Flaubert, o Antéchrist de Renan, o Eça; na estante, sob as minhas vistas, tenho o Taine, o Bouglé, o Ribot e outros autores da literatura propriamente, ou não.”14 Desta lista pouco difere a que figura no Gonzaga de Sá. Antes a completa. Taine, Renan, Barrès, France, Swift, Flaubert. “[...] alguns deles”, terminara por confessar, “me deram a sagrada sabedoria de me conhecer a mim mesmo, de poder assistir ao raro espetáculo das minhas emoções e dos meus pensamentos”.15

Não foram certamente só esses livros e autores que mais de perto influenciaram o jovem Lima Barreto. À relação é necessário acrescentar dois outros, pelo menos – M. Guyau e Jules de Gaultier. A marca das ideias estéticas do primeiro na obra do romancista, que deve ter lido, por esse tempo, L’Art au point de vue sociologique, não deixa margem a dúvidas. Foi decisiva. O mesmo acontece com Le Bovarysme, o livro em que Gaultier expõe a sua teoria psicológica, tendo como ponto de partida o Madame Bovary, de Flaubert, e no qual Lima Barreto declarou encontrar “vistas que já tinha sentido também”.16

O certo é que Lima Barreto leu Le Bovarysme com profundo interesse, como se verifica das notas que deixou no Diário íntimo, chegando mesmo a falar do seu “bovarismo” em mais de uma oportunidade. Nessa fase de transição, mal saído da adolescência, não é possível calar a influência que exercia sobre o seu espírito o livro de Jules de Gaultier. Influência tão forte quanto O crime e a loucura, de Maudsley, cuja leitura o Dr. Braule Pinto lhe havia proporcionado, dois ou três anos antes, logo após a doença paterna. Este livro servira, porém, como advertência (“não beber em excesso em coisa alguma [...]”). A teoria de Gaultier, não. Era uma explicação de todo um estado de espírito, a procura da sua própria personalidade, na tentativa de se adaptar ao meio, às convenções sociais, à mediocridade da repartição, à humildade da sua própria condição social.

Nas suas notas de leitura, Lima Barreto assinala:

“O bovarismo, livro, é um aparelho de ótica mental”, para concluir mais adiante: “O mal, o bovarismo nos personagens de Flaubert, pode ser apreciado com uma rigorosa observação: aumenta com o afastamento que se forma entre o fim que está voluntariamente assinalado e o fim para que os imantava naturalmente a sua vocação natural”.

Depois de tirar a conclusão, traça o esquema, como se desenhasse o gráfico demonstrativo do mecanismo visual da concepção “bovarista” do universo:

* A imagem que, sob o império do meio, circunstâncias exteriores, educação, sujeição, a pessoa forma de si mesma.

A pessoa humana *

* Ser real, ideal, tendências hereditárias, etc.17

Mais tarde, aproveitaria as mesmas notas para escrever um excelente artigo, “Casos do bovarismo”, “aplicando el cuento” à vida real, esquecendo-se, porém, de citar como exemplo o seu próprio caso.18

É irrecusável que Lima Barreto, na primeira mocidade, padeceu do “mal do pensamento”, conforme ele definiu a teoria de Gaultier. Aplique-se-lhe o esquema “bovarista” – aquele mesmo que está no Diário íntimo e foi linhas acima reproduzido – e a personalidade do romancista, no período da sua iniciação literária, não terá mais segredos. É a chave da sua conduta, a explicação das suas atitudes, do seu inconformismo, da sua revolta.

Desde que deixara os bancos escolares do Cunditt e do Paula Freitas formara da própria inteligência um alto conceito. Possuía, de fato, grande orgulho de ser intelectual, orgulho que as sucessivas bombas na Escola Politécnica não conseguiram derruir, nem sequer abalar. Sentia-se, na verdade, muito acima da mediocridade do meio em que vivia, não somente em casa, como na repartição. “Visava o Kamtchatka, os países exóticos, as regiões defesas à inteligência”, dirá pela boca de Vicente Mascarenhas, o personagem principal do Cemitério dos vivos, numa explosão do bovarismo.19

Na repartição, debochavam da sua pretensão literária. Mas que sabiam dessas coisas de arte aqueles “filisteus” da Secretaria da Guerra?20

O complexo da cor como que exacerbava o seu bovarismo. Ele, que se considerava um ser superior – e o era de fato –, passava por humilhações, sendo tomado, mais de uma vez, por contínuo. A coisa o aborrecia. Nessas horas, dizia, era “preciso tomar-se de muito sangue-frio para que não desmentisse com azedume”.21

Caía por um momento no terra-a-terra. Logo depois, voltava a sonhar. E escrevia, no Diário:

“[...] que Deus me dê felicidade suficiente para pagar tudo que meu pai deve. E se eu isso fizer e se conseguir cercar-lhe o resto da sua vida da abundância que ele tem direito, eu só peço três coisas: um amor, um belo livro e uma viagem pela Europa e pela Ásia.”22

O complexo da cor agravaria sem dúvida o “bovarismo” de Lima Barreto. Mas não é tudo. Há também a considerar o preconceito racial, que impunha, como até hoje impõe, tantas restrições aos homens de cor, pretos ou mulatos, em nossa sociedade, desde que não sejam ricos.

“É triste não ser branco”, escreveu Lima Barreto no Diário íntimo, resumindo numa confidência amarga todas as limitações que sofria. Mais do que um complexo, a cor era uma barreira para a sua vocação de escritor. Tinha que transpô-la, mesmo que não conseguisse vencer o complexo. Isto, porém, é outra história.

No início da sua vida literária, vamos encontrar Lima Barreto numa verdadeira encruzilhada, indeciso na escolha do caminho a seguir. A hesitação é patente na variedade de obras que tentou. Além da narrativa pretensiosa (D. Garça) e do romance mundano (Chez Madame da Costa), exercitou-se no teatro, na história, no ensaio e no romance sociológico.

Qualquer gênero servia. Estava possuído da ânsia de produzir, de realizar alguma coisa de imediato. Tal era a sua sofreguidão que planejava duas ou três obras ao mesmo tempo, mas não se demorava em nenhuma delas. Escrevia os primeiros capítulos, para abandoná-los logo em seguida.

Essa incapacidade de fixação é típica dos temperamentos esquizoides, classificados por Kretschmer: “são os homens das variações e das surpresas”.23

Em 1903, Lima Barreto falava em escrever “a História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade”.24 Ficou no projeto. É da mesma época o esboço de uma peça em um ato, Os negros – inspirada em Maeterlinck, diz o autor –, e que até há pouco tempo se conservava inédita.25

Pensou também num romance, descrevendo “a vida e o trabalho dos negros numa fazenda... uma espécie de Germinal negro, com mais psicologia especial e maior sopro de epopeia”. E, falando desse mesmo projeto, diz que seria a sua “obra-prima”, com a qual introduziria em nossa literatura uma nova escola, o “negrismo”.26

Tinha de fato grandes ambições. Aspirava à glória literária, “enorme, extraordinária, e – quem sabe? – uma fama europeia”.27 Isso, no entanto, não impediu que deixasse de lado a ideia do “negrismo” e tratasse imediatamente de um novo plano – um romance em grande estilo, Marco Aurélio e seus irmãos, em vinte capítulos, mas do qual escreveu apenas quatro laudas.28

Outro projeto da mesma época era um romance que também não chegou a escrever, mas que foi com certeza o germe de Policarpo Quaresma. O plano é bem mais modesto que o do Germinal negro. E nele não há nada que denuncie o bovarismo de que se achava possuído o jovem escritor.

É ainda do Diário íntimo que transcrevo o seguinte trecho, de 16 de janeiro de 1905:

“Um livro que pensei. Tibau, filho de uma rapariga que fugira da casa de seu pai em companhia de um valdevinos, que pouco depois a abandona, educa com grande dificuldade esse filho, que chega a estudar medicina; mas, no terceiro ano, sem o adubo que era sua mãe, a planta fenece sem arrimo e, por fim, por recomendação de um colega, vai ser professor de História do Brasil num colégio de Botafogo; o diretor, notando que era um desar para seu estabelecimento ter um professor sem título algum, arranja-lhe o de major da Guarda Nacional. Eis senão quando o Major Tibau, que do seu avô pouca notícia tivera, vem a saber que ele acabava de morrer no Porto, deixando-lhe (e reconhecendo-o como neto) toda a sua fortuna: dois mil contos. No curso das suas lições de história, Tibau tinha adquirido um grande amor do Brasil e acariciaria o sonho de uma Sociedade de Folclore, que se destinava a recolher os contos, as tradições e a poesia popular da nossa terra. Cultivar e festejar as datas familiares com o sainete nacional e os respectivos manjares. Possuidor dessa fortuna, funda a sociedade com a qual é explorado por jornalistas, poetas, estudantes, debicado pelos ministros e funcionários, a quem se dirigiu para pedir uma subvenção. Morre numa estalagem às sete horas da noite, estalagem a que se recolhera com um preto velho, o Nicolau, que, fazendo ‘gancho’, ia-o fazendo viver; morre, mandando que se lhe abram a porta e a janela, para ouvir melhor a cantilena da criançada ao luar.”29

De todos esses primeiros ensaios, que não chegaram a se concretizar em nenhuma obra, o mais interessante é sem dúvida o de um romance que começara a escrever possivelmente em 1904: Clara dos Anjos. Conquanto o tema o aproxime da novela inacabada, que veio a ser publicada depois da morte do escritor, sob o mesmo título, a concepção inicial visava a um romance de maior envergadura. Para executá-lo – e Lima Barreto chegou a escrever dois capítulos inteiros e a esboçar mais dois ou três –, traçou, desde logo, um roteiro, pelo qual a narrativa abrangeria um largo período.

A ação começaria antes da Abolição, para terminar em pleno regime republicano, por volta de 1904 ou 1905. A história de Clara dos Anjos seria, contudo, a mesma do conto e depois novela: a mulatinha que se deixa perder por um rapaz de condição superior à sua, o qual se recusava ao casamento, para consertar o malfeito. No romance, porém, Clara não sucumbe ao primeiro malogro. Reage contra a vida. Novos amantes aparecem, inclusive um português, futuro visconde, que lhe dá uma filha de 50 contos de réis, desaparecendo depois.

A vida continua. E Clara dos Anjos acaba se casando, por amor, com um jogador. Vão-se os 50 contos. O marido morre. A viúva, de novo pobre, junta-se a um pedreiro. É quando a filha repete o mau passo da mãe, fugindo de casa com um cabo de polícia, prostituindo-se em seguida, para morrer na Santa Casa de Misericórdia, como indigente. O pedreiro já velho não pode mais trabalhar. Clara dos Anjos – diz por fim o roteiro – “lava e engoma para sustentá-lo, e no terreiro da estalagem em que moram ela canta uma trova qualquer em um belo dia de sol”.

Vale a pena transcrever, a título de curiosidade, a cronologia da heroína, tal como planejara Lima Barreto:

“Clara.

Nasceu 1868

Morte do pai 1887

Deflorada 1888 (12 ou 13 de maio)

Dá à luz 1889

Deixada 1892

Casada 1894

Viúva 1899

Amigada de novo 1900”30

Observa-se que Clara dos Anjos só é deflorada no ano seguinte à morte do pai, e no dia 12 ou 13 de maio, a própria data da Abolição, como a marcar com ironia o destino das mulatinhas pobres. Esse objetivo, aliás, seria o mesmo da novela, para a qual Lima Barreto escolheu uma frase de João Ribeiro por epígrafe, comparando a situação atual das mestiças à das índias, as quais o colonizador português, depois de abusar da inocência delas, transformava em concubinas e escravas.31

Da primitiva versão de Clara dos Anjos, só se salvou, em parte, a página de abertura, descrevendo o Rio de Janeiro, e que seria mais tarde aproveitada num dos capítulos do Gonzaga de Sá.32 O mais foi abandonado. Dezesseis anos depois, ao retomar o tema para escrever a novela, o romancista não se utilizaria do velho manuscrito. As laudas amarelecidas foram largadas a um canto, num “amarrado”, ao lado de originais também esquecidos, na sua estante. Mas em 1904, no momento da criação, aquele romance representava para ele uma obra realmente notável, dessas que bastariam para consagração de um escritor.

A glória literária, exatamente como desejara, “enorme, extraordinária”!

Serviria, ao mesmo tempo, como desforra aos que o desprezavam, por ser mulato e pobre. Com ele, poderia vingar-se dos “filisteus” da Secretaria da Guerra, dos que mais de uma vez o tomaram por um contínuo, exibindo-lhes a obra-prima.

“[...] seja em que terreno for”, desabafaria no Isaías Caminha, como se estivesse escrevendo no próprio Diário íntimo, reportando-se à primitiva versão de Clara dos Anjos, “com obras sentidas e pensadas, que imagino ter força para realizá-las, não pelo talento, que julgo não ser muito grande em mim, mas pela sinceridade de minha revolta que vem bem do Amor e não do Ódio, como podem supor.

“Cindo capítulos da minha Clara estão na gaveta: o livro há de sair.”33

Já não era mais bovarismo. O escritor começava a encontrar o seu destino.

Notas

1 A Lanterna, Rio de Janeiro, nº de 15/29 de fevereiro de 1904. Há um esboceto de romance, datado de 1900, que consta da 2ª edição do Diário íntimo, p. 27-32.

2 Depoimento de Antônio Noronha Santos.

3 Levi Carneiro, irmão de Otávio Carneiro.

4 “Otávio Carneiro”, artigo de Lima Barreto, publicado n’O Estado, Niterói, de 09/03/1920. Otávio Carneiro nasceu a 24/05/1881. Faleceu a 01/03/1920. Foi prefeito de Niterói, no governo Nilo Peçanha, de 1914 a 1918. Formou-se pela Escola Politécnica (Feiras e mafuás, p. 259-263).

5 Depoimento do ministro Mário Tibúrcio Gomes Carneiro. Quando o seu irmão mais velho Tibúrcio Marciano foi comandar a divisão naval do Norte, Mário ficou tomando conta da casa em que moravam, na antiga Travessa das Flores, depois Rua Freire, nº 17, em São Cristóvão, juntamente com outro irmão, Antônio Tibúrcio, o Cearense, excluído de pouco da Escola Militar, por ter participado do levante de 14 de novembro de 1904 (vacina obrigatória). Lima Barreto frequentava assiduamente a casa, chegando mesmo a passar uma temporada em companhia dos irmãos Gomes Carneiros. Nessa ocasião, estaria escrevendo o Isaías Caminha. Era muito amigo do Cearense, com que gostava de discutir matemática.

6 “O Lima Barreto que eu conheci”, artigo de José Vieira em Revista do Brasil, ano VI, terceira fase, n. 56, Rio de Janeiro, dezembro de 1943, p. 43-47.

7 “O trem de subúrbios”, artigo na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21/12/1921. Ver Feiras e mafuás, p. 242.

8 “A Estação”, duas crônicas publicadas postumamente na Revista Sousa Cruz, Rio de Janeiro, número de dezembro de 1926 e janeiro de 1927. Ver Feiras e mafuás, p. 145-155.

9 Na correspondência de Lima Barreto, encontramos a seguinte carta, dirigida a um aluno. Trata-se do Sr. Jaime de Sousa, filho do Dr. Artur de Sousa, médico do Exército, residente à Rua Major Mascarenhas. Diz a carta: “Em 3 de outubro de 1906./ Caro Jaime./ Saúde./ É com grande desgosto que te comunico a minha resolução de te deixar de explicar. O trabalho exaustivo e enfadonho da minha secretaria tem reagido fortemente sobre o meu espírito. Acho-me cansado, fatigado, cheio de uma inércia que não é minha. De tarde, quando saio, fico animado de um desejo de nada fazer; qualquer encargo me é pesado. É uma sensação que dificilmente explicarás e admitirás; mas é verdadeira, perfeitamente verdadeira. Admito que a não expliques, pois mesmo eu custo explicar. Talvez seja devido a fatalidades obscuras do meu temperamento! Não sei!/ Far-me-ás o favor de levar essa minha resolução ao respeitável Sr. teu Pai, a quem agradeço a confiança que em mim depositou e a distinção que isso revela – coisas que não se esquecem e que eu não me esquecerei. Recomendações a tua Família e, sempre ao teu dispor/ sou teu amigo agradecido/ a) Afonso”. Ver Correspondência, I, p. 151-152.

10 Clara dos Anjos, p. 118.

11 Diário íntimo, p. 76-77.

12 “Tinha a mania de não entrar cedo em casa, com a luz do sol porque me aborrecia aquele dever de cumprimentar os vizinhos; porque, em casa, em face de toda a sua tristeza, logo me vinha a imagem cruel da catástrofe doméstica, da subversão da minha vida, da sua impotência, do seu não valor” (Cemitério dos vivos, p. 215).

13 Diário íntimo, p. 71. “Hoje, dia de ano bom (1º de janeiro de 1905) levantei-me como habitualmente às sete e meia para as oito horas. Fiz a única ablução do meu asseio, tomei café, fumei um cigarro e li os jornais. Acabando de lê-los, arrumei as paredes do meu quarto. Preguei aqui, ali, alguns retratos e figuras, e ele tomou um aspecto mais garrido. Há, de mistura com caricaturas do Rire e do Simplicissimus, retratos de artistas e generais.” Nos papéis do romancista, o autor encontrou, apenas, retratos de alguns dos escritores citados.

14 Isaías Caminha, p. 120.

15 Gonzaga de , p. 41.

16 Diário íntimo, p. 92.

17 Diário íntimo, p. 93-94.

18 Bagatelas, p. 54-58. O artigo é datado de 1904.

19 O Cemitério dos vivos, p. 126.

20 Diário íntimo, p. 97.

21 Diário íntimo, p. 51-52.

22 Diário íntimo, p. 96.

23 Apud Tristão de Ataíde: Estudos, segunda série, 2ª edição. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1934, p. 257.

24 Diário íntimo, p. 33.

25 Publicado pela primeira vez no jornal Quilombo, Rio de Janeiro, ano I, n. 4, julho de 1949, p. 6-7. É também da mesma época o sketch: A apólice, assinado Estrela. Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Ver Marginália, p. 306-312.

26 Diário íntimo, p. 84.

27 Diário íntimo, p. 84.

28 Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Ver, já agora, Diário íntimo, p. 65-67.

29 Diário íntimo, p. 85-86.

30 Esses manuscritos se encontram na Biblioteca Nacional. Arrolando os seus originais, por volta de 1917, o escritor mencionava em primeiro lugar Clara dos Anjos, com a indicação “inédito e incompleto” e a data, 1904. Ver, já agora, Diário íntimo, p. 57-61.

31 Clara dos Anjos, p. 29.

32 “O passador”, Gonzaga de , p. 63 e segs. A primeira versão incompleta de Clara dos Anjos faz parte do volume Diário íntimo das Obras de Lima Barreto, na Col. Brasiliense, p. 217 e segs.

33 Isaías Caminha, p. 274.

IX São os comentários a duas destas visitas, registradas no Diário íntimo, que provocam o ensaio de Antonio Candido: “Os olhos, a barca e o espelho” (In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987, p. 39-50). É neste texto que Antonio Candido legitima o que denomina “literatura íntima: diários, correspondência, até os desabafos frequentes dos escritos de circunstância”. (N.R.)