Isaías Caminha

[...] envergonho-me por esta ou aquela passagem em que me acho, em que me dispo em frente de desconhecidos, como uma mulher pública [...].

(Isaías Caminha, p. 121)

Começa mal, para Lima Barreto, o ano de 1908. A Floreal agoniza. E morre no quarto número, aquele mesmo que estampa um agradecimento à animadora referência de José Veríssimo, a qual, escreve o redator, “dados o feitio e a inteligência de quem a disse, tem para nós um valor extraordinário”.1

Com o desaparecimento da revista, desfaz-se mais um sonho do jovem Lima Barreto. Daqui por diante, ficará sem ter onde publique a sua literatura, uma vez que não tivera “a rara felicidade de nascer de pai livreiro”, nem estava disposto às “vis curvaturas” e “iniciações humilhantes” a que se submetiam os novos diante dos mandarins das letras e da grande imprensa.2

Não. Isso não faria. Bastava-lhe a experiência, de há seis meses atrás, na redação do Fon-Fon.

Sem a Floreal, porém, sentia-se como um guerreiro que tivesse perdido a armadura, impotente ante os ataques do inimigo, que avançava sempre, ameaçando esmagá-lo. Nesse momento de desencanto, cansado da vida, tudo parecia conspirar contra ele. Perde a esperança. Falta-lhe a coragem. Até mesmo a confiança em si, no próprio talento e na sua inteligência, chega a esmorecer. Queixa-se da sorte, maldiz o destino:

“Estou com vinte e sete anos, tendo feito uma porção de bobagens, sem saber positivamente nada; ignorando se tenho qualidades naturais, escrevendo em explosões; sem dinheiro, sem família, carregado de dificuldades e responsabilidades.”

Julga-se só, abandonado dos amigos, que já não o procuram. Vê tudo negro. É tão grande a depressão que pensa no suicídio. Procura então a bebida como lenitivo, pois só o álcool tem poder para fazê-lo esquecer a imensa amargura.

“Vai me faltando a energia”, escreve no Diário íntimo, repositório das mágoas que o corroem. “Já não consigo ler um livro inteiro, já tenho náuseas de tudo, já escrevo com esforço. Só o álcool me dá prazer e me tenta... Oh! meu Deus! Onde irei parar?

“Tenho um livro (trezentas páginas manuscritas), de que falta escrever dois ou três capítulos. Não tenho ânimo de acabá-lo. Sinto-o besta, imbecil, fraco, hesito em publicá-lo, hesito em acabá-lo.

“É por isso que me dá gana de matar-me; mas a coragem me falta e me parece que é isso que me tem faltado sempre.”3

Que livro será esse? Claro que se refere ao Isaías Caminha, do qual a Floreal havia publicado os dois primeiros capítulos e metade do terceiro. Àquela altura, estaria por concluir também o Gonzaga de Sá.4 Os dois romances nasceram, aliás, do mesmo ressentimento, refletindo as alternativas do estado de espírito do autor, ora revoltado, ora conformado, em face das injustiças que vinha sofrendo. Isaías é violento, quase um panfleto. No Gonzaga, predomina o tom irônico. Mas a verdade é que ambos revelam a personalidade de Lima Barreto, ou melhor, o seu caso quase por inteiro.

Afinal de contas, os dois personagens – poderia dizer os três personagens: Isaías, Gonzaga e Augusto Machado, o narrador do segundo romance – se confundem com o seu criador. No Recordações do escrivão Isaías Caminha, conta-se a história de um rapaz inteligente, bom, honesto, ambicioso, possuindo todos os requisitos para vencer na vida, menos um – a cor. Era mulato e, além de mestiço, pobre. No Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, vemos um homem de inteligência superior, completamente esquecido na sua banca de funcionário público, como se de nada lhe valesse a cultura. Contudo, o comportamento de Gonzaga é bem diverso do de Isaías. É calmo e refletido, ao contrário do outro, nervoso, arrebatado, chegando às raias do desespero. No segundo romance, quem se descontrola por vezes é o narrador, isto é, o próprio biógrafo do imperturbável Manuel Joaquim Gonzaga de Sá; é que, bem pesadas as coisas, o biógrafo vem a ser a principal figura do romance. Através dele, e não do outro, é que reponta a angústia de Lima Barreto, na sua primeira mocidade.

“Longe de me confortar”, declara o narrador, em meio do livro, “a educação que recebi, só me exacerba, só fabrica desejos que me fazem desgraçado, dando-me ódios e, talvez despeitos! Por que ma deram? Para eu ficar na vida sem amor, sem parentes e, porventura, sem amigos?”.5

Aí está refletido o estado de espírito de Lima Barreto, logo após o insucesso da Floreal, nos primeiros meses de 1908. É a fase em que chega ao máximo a sua depressão. É impossível, contudo, acompanhá-la através do Diário íntimo, por falta de apontamentos, ou das cartas que escreve aos amigos. Sim, porque os há. E muitos! O temperamento exacerbado é que, de quando em quando, põe em dúvida a fidelidade de companheiros como Antônio Noronha Santos, João Luís Ferreira, Otávio Carneiro, Mário Tibúrcio Gomes Carneiro, Manuel Ribeiro de Almeida, Pausílipo da Fonseca e tantos outros.

De qualquer forma, o ano de 1908 seria todo consumido em tentativas inúteis à procura de um editor. Passam-se os meses, e nada! Parecia improvável encontrar quem o quisesse publicar no Brasil.

A grande editora do momento era incontestavelmente a Casa Garnier. Mas publicava apenas os autores consagrados. Novos, só os empistolados. Desde o desaparecimento de B. L. Garnier – o “Bom Ladrão” Garnier, como era conhecido nas rodas literárias, que aqui vivia e bem conhecia o meio –, a velha livraria passou a ser dirigida de Paris pelo seu irmão Hippolyte. Este nunca se lembrou de fazer uma visita ao Brasil, e pouco se importava com o lançamento dos autores novos, a não ser por algum motivo extraliterário.

“Velho rico, ignorante das nossas coisas, certamente já mentecapto, o seu critério nas publicações era o dos pistolões recebidos e do nome que o autor tinha no mundo.”

Assim era o velho Hippolyte Garnier, segundo o retrato que dele traçou o próprio Lima Barreto. Eis o grande editor da época, o único que poderia publicar o livro de estreia de um escritor! Mas como? Se o velho mentecapto só atendia à representação oficial do autor, desprezando o valor da obra!6

Desistindo de procurar quem quisesse publicar o seu romance no Brasil, foi então que lhe ocorreu apelar para um editor de Portugal. João Pereira Barreto, que pertencia ao grupo da Floreal, poeta sem mérito, embora fosse um sujeito estimável, conseguira editar o seu livro de versos na Livraria Clássica, de Lisboa. É bem verdade que o volumezito trazia um prefácio de Sílvio Romero, que o encaminhara ao editor. Mas Lima Barreto não queria saber de padrinhos. Mandaria os originais à apreciação do editor “sem escoras ou para-balas”. Sem prefácio, sem opiniões, sem nada.

Pereira Barreto, o simpático João, oferecera-se para escrever uma carta de apresentação ao Sr. A. M. Teixeira, o tal editor português. Era o máximo que poderia aceitar como favor, em se tratando de assunto estritamente literário, como lhe parecia a publicação de um livro. Antônio Noronha Santos, que embarcava para a Europa nessa ocasião, de passagem por Lisboa, seria o portador da carta e dos originais.7

Por que teria escolhido o Isaías Caminha e não o Gonzaga de para a sua estreia literária? O próprio Lima Barreto responde à pergunta, em carta endereçada a Gonzaga Duque:

“Viaja para a Europa na mala do meu amigo Noronha Santos o mesmo livro que comecei a publicar na Floreal.

“Era um tanto cerebrino, o Gonzaga de Sá, muito calmo e solene, pouco acessível, portanto. Mandei as Recordações do Escrivão Isaías Caminha, um livro desigual, propositalmente malfeito, brutal por vezes, mas sincero sempre. Espero muito nele para escandalizar e desagradar, e temo, não que ele te escandalize, mas que te desagrade. Como contigo, eu terei grande desgosto que isso aconteça a outros amigos. Espero que esse primeiro movimento, muito natural, seja seguido de um outro de reflexão em que vocês considerem bem que não foi só o escândalo, o egotismo e a charge que pus ali. Peço-te que não te esqueças daqueles versos que pus no alto do primeiro capítulo, quando o comecei a publicar:

Mon coeur profond ressemble à ces voûtes d’église

Où le moindre bruit s’enfle en une immense voix,X

e então hás de ver que a tela que manchei tenciona dizer aquilo que os simples fatos não dizem, segundo o nosso Taine, de modo a esclarecê-los melhor, dar-lhes importância, em virtude do poder da forma literária, agitá-los, porque são importantes para o nosso destino. Querendo fazer isso e fazer compreender aos outros que há importância em questão que eles tratam com tanta ligeireza, eu não me afastei da literatura, conforme concebo e preceituam os nossos mestres Taine e Brunetière, mas temo que não tivesse conseguido bem o escopo e tu hás de me perdoar o desastre pela ousadia da tentativa.” E, logo a seguir, acrescenta: “Isso é para nós, amigos e artistas; para os outros, eu ficarei contente em desagradar, essa embriaguez dos vinte e cinco anos de Barrès, que é um pouco minha e como ele desejo dizer dentro de alguns anos: ‘J’ai scandalisé. Des gens se mettaient à cause de mes livres en fureur. Leur sottise me crevait de bonheur’”.8

A citação é indispensável como revelação do verdadeiro sentido do romance. Pelo menos do objetivo do autor, ao escrevê-lo.

“Não é meu propósito também”, está dito ainda no prefácio, publicado na Floreal e mais tarde reproduzido na segunda edição do Isaías Caminha, “fazer uma obra de ódio; de revolta enfim, mas uma defesa de acusações deduzidas superficialmente de aparências cuja essência explicadora, as mais das vezes, está na sociedade e não no indivíduo desprovido de tudo, de família, de afetos, de simpatia, de fortuna, isolado contra inimigos que o rodeiam, armados da velocidade da bala e da insídia do veneno”.

Esta, a finalidade do livro. É o que foi dito e redito por Lima Barreto, na carta a Gonzaga Duque e no prefácio publicado na Floreal, depois de uma citação de Taine (outra repetição): “a obra de arte tem por fim dizer aquilo que os simples fatos não dizem”.9

Em carta, que escreveu anos depois a Esmaragdo de Freitas, há de repetir mais uma vez a mesmíssima coisa, embora com outras palavras:

“O meu fim foi fazer ver que um rapaz nas condições do Isaías, com todas as disposições, pode falhar, não em virtude de suas qualidades intrínsecas, mas, batido, esmagado, prensado pelo preconceito com o seu cortejo, que é, creio, cousa fora dele... Se lá pus certas figuras e o jornal, foi para escandalizar e provocar atenção para a minha brochura.”10

Estrear com barulho, ser discutido, analisado, criticado, atacado, numa palavra ser notado, ser alguém! Era ao que visava com a publicação do manuscrito que Antônio Noronha Santos encaminharia ao editor português.

A 13 de março, escrevia-lhe o amigo, dando notícias da incumbência. “Volto do Teixeira amigo neste momento. ‘Seu T., vim saber a resposta?’ ‘Não tenho dúvida em publicar o livro, mas o Senhor Lima Barreto lhe falou em condições?’” Em suma, o editor estava inclinado a publicar o romance, desde que o autor abrisse mão dos direitos autorais.

“Ele tinha-me dito”, continua Santos, dando contas do entendimento com Teixeira, “que ia fazer ler o teu romance por alguém, para dar opinião; não sei se o fez; o que garanto é que ele mesmo o leu e o leu bem lido. Frase da conversa: ‘ele tem talento, muito talento’. Se me é permitido dar-te um conselho, não sejas muito exigente na questão do pagamento. Não te adianta grande cousa e demora a impressão; e o livro precisa sair. Eu o autorizei friamente a mandar o livro para a tipografia: ele quer te fazer a remessa das provas em três vezes, para dar o livro pronto em junho, e posto no Brasil em julho. Está meio apavorado com a falta de notícias dos jornais daí, que fatalmente se vai dar: é um livro de escândalo, repetiu-me duas ou três vezes”.11

Santos sabia o que estava fazendo, autorizando a remessa dos originais para a tipografia. Lima Barreto não se importaria com o pagamento dos direitos autorais. O que queria era ver o livro publicado. Se pudesse, seria capaz de encurtar os dias e os meses para ter o mais depressa possível a brochura nas mãos.

“Até hoje”, escrevia, respondendo ao amigo, sem esconder a sua sofreguidão, “não recebi carta alguma do Senhor Teixeira e não lhe escrevi também... Fizeste bem em lhe autorizar a imprimir o livro. Não tenho pretensão alguma de lucro com o Caminha. Além de saber que um primeiro livro tem fortuna arriscada, saber muito bem o que penso sobre essa cousa de make money com livros. Decerto, se eu estivesse aí, em Paris, havia de guardar bem escondida a pretensão de ter um castelo com o produto das minhas obras; mas aqui, dentro do Brasil e da língua portuguesa, as minhas pretensões são mais razoáveis”.12

Esperou Lima Barreto mais alguns dias pela carta do editor e, como tardasse – como lhe parecia absurdamente interminável essa demora! –, resolveu dirigir-se ao Sr. A. M. Teixeira, aprovando o que fora pelo amigo combinado: “Sabendo eu de que modo a fortuna de um primeiro livro é arriscada, nada exijo pela publicação do meu, a não ser alguns exemplares, cinquenta, se o senhor achar razoável, para os oferecimentos de praxe. Julgo-me, meu caro Senhor Teixeira, muito feliz por encontrar quem queira publicar-me, e com a publicação fico satisfeito”.13

E Lima Barreto continua a esperar por novas notícias de Lisboa. O editor Teixeira dera o livro a Albino Forjaz de Sampaio para ler e o autor das Palavras cínicas aconselhara a publicação, encarregando-se ele próprio da revisão. Podou aqui e ali. Corrigiu alguns cochilos de português, que são aliás frequentes em Lima Barreto. Nem todas as emendas, entretanto, agradaram ao escritor brasileiro que, devolvendo os primeiros dezesseis do livro, reclamava ao editor, embora delicadamente:

“Na página 46, quando se fala em Francisco Otaviano, penso que ‘altruísmo’ não é próprio. Eu queria sobretudo aludir à sua graça, ao seu espírito ateniense; eram qualidades de inteligência e não morais o que aquela palavra [aticismo] supõe.

“Na página 58, eu teria deixado como está no original e muito menos teria trocado a frase – ‘de sensibilidade pronta a fatigar-se com o espetáculo familiar’ – pela que lá está. [O revisor substituíra-a por ‘pronto a fatigar-se com o espetáculo divino’.]

“Na página 92, eu teria continuado a dizer: ‘o rolar dos veículos mais redondo e mais dissonante o ranger’ etc. É uma impressão visual que se pode ter do fenômeno acústico – coisa legítima, como o senhor sabe.

“Na página 95, devia ser: ‘sempre possuída’ e não ‘sempre premidas’.

“Além destes, há dois insignificantes: ‘perna’ por ‘pena’ (página 93) e ‘ruína’ por ‘sina’ (página 95).

“No mais, só tenho que agradecer muito ao revisor, pois que os capítulos que recebi lhe saíram das mãos escoimados de muito desleixo de linguagem, além de ter recebido modificações felizes e inteligentes, que mostram o carinho e a simpatia com que foi tratado o meu despretensioso trabalho.”14

Devolvidas as provas dos primeiros dezesseis em meados de junho, passaram-se bem uns quatro meses sem que Lima Barreto tivesse qualquer outra notícia do romance. O silêncio de Teixeira parecia-lhe inexplicável, enchendo-o de angústia e ansiedade. Chegou mesmo a supor que o editor tivesse desistido de publicar o Isaías Caminha. Tão grande era a sua inquietação, a esse respeito, que em novembro se dirigiu novamente ao Sr. Teixeira, interpelando-o:

“Escrevo-lhe cheio de ansiedade. Há bem quatro meses que nada sei do livro meu que o senhor teve a bondade de editar. Como é fácil de imaginar, na situação pessoal em que estou e acrescendo ainda a posição que assumi, o fato tem-me causado cuidados e provocado as mais extravagantes ideias. Eu penso de mim para mim: não vá o Senhor Teixeira ter-se arrependido! Não vá acontecer que os meus inimigos tenham-no dissuadido de publicá-lo! Eu não sei bem se tenho inimigos, mas o meu livro deve ter. Não digo que sejam daí, porque ninguém conheço em Lisboa; mas estes grandes personagens brasileiros que passam por aí frequentemente podem ter-lhe dito qualquer coisa em meu desfavor.” Apoquentava-o, decerto, o que lhe fora revelado por Antônio Noronha Santos em carta de Lisboa, prevenindo que João do Rio, de passagem pela capital portuguesa, estivera com o Sr. A. M. Teixeira e, perguntado por este se conhecia Lima Barreto, havia respondido negativamente, o que sem dúvida lhe feriu a vaidade e aumentou ainda mais a desconfiança. “Compreenda o senhor perfeitamente como isso é angustioso”, continuava na carta ao editor. “Caso não lhe incomode, peço-lhe o favor de me mandar dizer como vai o Isaías.”15 Joao do Rio – é interessante deixar aqui registrado – figura entre os personagens de Isaías Caminha, romance que tem como pano de fundo a redação de um jornal. Da história do fracasso de um rapaz de cor, inteligente, bom e honesto, enfim, com todas as qualidades para vencer na vida, mas que sucumbe ao peso dos preconceitos sociais, o livro como que se transforma, do meio para o fim, num verdadeiro panfleto contra a imprensa da época, em contraste, até certo ponto chocante, com o desenvolvimento harmonioso dos primeiros capítulos.

O “desejo de escandalizar” – animado pelo exemplo de Maurice Barrès e pela sugestão de Alcides Maia – foi-lhe mais forte que o conselho de Taine: “a obra de arte tem por fim dizer aquilo que os simples fatos não dizem”. E Lima Barreto, intencionalmente talvez, sacrifica a obra de arte, que começara a construir com tanta segurança, para desfechar um ataque furioso aos donos da política, aos mandarins da literatura e do jornalismo, a todos os que, em suma, representavam, na sua visão de revoltado contra a vida, uma barreira intransponível.

Figurando entre os “inimigos” do Isaías Caminha, onde aparece tão cruelmente caricaturado (“mescla de suíno e de símio”), logo no terceiro capítulo, publicado na Floreal, é quase certo que João do Rio não devia ignorar nem o retrato, nem o seu autor. Ainda que o ignorasse, Lima Barreto não poderia admitir que tal coisa passasse despercebida a um homem como João do Rio. Embora não a tivesse lido na revista, alguém se lembraria de contar-lhe a novidade. É, pelo menos, o que sempre acontece na vida literária: mais depressa se toma conhecimento das diatribes que dos elogios.

Tudo isso, muito compreensivamente, contribuiria para aumentar a angústia da espera. A última notícia que tivera do livro fora por intermédio de Antônio Noronha Santos, que regressava de Paris, via Lisboa, nos últimos dias de julho. Estivera com o Teixeira, na Livraria Clássica, e o editor garantira dar o livro pronto “em começos de agosto”.16 Mas agosto se findara, e nada do Isaías Caminha. Como explicar a demora? Passara setembro. Outubro chegara ao fim. A mesma espera aflitiva, inútil e inexplicável.

Se havia razão para tê-los, eram, contudo, infundados os temores do romancista estreante. A edição do Isaías Caminha ia bastante adiantada e, já no mês seguinte à carta que havia endereçado ao editor Teixeira, Lima Barreto recebia os primeiros exemplares da brochura de pouco mais de 300 páginas, envolta numa capa cor de vinho.17

É de imaginar-se o que esse livro representava para o jovem amanuense da Secretaria da Guerra, que se sentia diariamente humilhado no seu mister burocrático, redigindo minutas de ofícios e avisos, quando não copiava portarias e decretos. Agora, sim! Tinha livro publicado! Poderia, se quisesse, exibir a prova aos que o olhavam com desdém e lhe ridicularizavam as pretensões literárias. Porque tudo em Lima Barreto girava em torno de suas “humilhações” e da vocação de escritor, em permanente conflito com o meio em que vivia.

Precisamente, em começos de 1909, fora preterido na lista de promoções. Ao que parece, pela primeira vez. O funcionário beneficiado tivera ingresso na repartição, sem concurso e dois anos depois dele. Lima Barreto chegara a redigir a minuta de um memorial ao presidente Afonso Pena, que não se sabe se de fato chegou a remeter. Pela importância do conteúdo, o documento merece, entretanto, a transcrição integral. É o seguinte:

MEMORIAL

Excelentíssimo Senhor Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil.

Afonso Henriques de Lima Barreto é amanuense da Secretaria de Estado da Guerra há cerca de cinco anos e meio, tendo entrado para a mesma Secretaria em virtude de concurso, em que foi classificado em segundo lugar com uma insignificante diferença de graus do classificado em primeiro; na lista de antiguidade ocupa segundo lugar, sendo o primeiro o Senhor Geraldo Horta, que, pela sua avançada idade, não tem sido até agora aproveitado nas promoções.

O promovido foi nomeado em 4 de setembro de 1905; é, portanto, dois anos mais moderno que ele, e não prestou o concurso que a lei manda para entrar para o quadro da Secretaria.

Não apelando para outros merecimentos que na sua pessoa seriam descabidos, julgando-se prejudicado na última promoção, ele vem recorrer para a alta justiça de Vossa Excelência, pois, desvalido de toda a sorte de ajuda e desprezando-as mesmo, só espera dela para que as altas autoridades da República respeitem os seus direitos e recompensem os humildes serviços que tem prestado à administração da República.

Rio de Janeiro, em 13 de fevereiro de 1909.

Afonso Henriques de Lima Barreto18

É bem possível que não tivesse enviado semelhante memorial ao presidente da República, mas não deixou de externar o seu pensamento, contra a injustiça que acabava de sofrer, em carta a Antônio Noronha Santos, que já e encontrava em Paris.

De lá, escreve-lhe. “Foste preterido?”, perguntava Santos e, como que procurando consolá-lo, respondia: “Depois do teu livro, não o serás mais. Creio que me compreendes, e talvez estejas de acordo. Eu tenho a coisa como certa”.19

Ah! o livro publicado! Para muitos, é uma espécie de “Abre-te, Sésamo!”, para o sucesso na vida, para a glória literária! Sê-lo-ia para Lima Barreto?

Notas

1 O quarto e último número da Floreal é de 31/12/1907.

2 Floreal, n. 1, 25/10/1907, p. 6. Ver Impressões de Leitura, p. 182-183.

3 Diário íntimo, p. 135 e 136. Essa mesma dúvida vem revelada numa das páginas do próprio romance: “[...] hesito de dia pra dia em continuar a escrevê-lo. Não é o seu valor literário que me preocupa; é a sua utilidade para o fim que almejo” (Isaías Caminha, p. 119).

4 Diário íntimo, p. 125. “O ano que passou foi bom para mim... Escrevi quase todo o Gonzaga de Sá.” De início, o romancista ficou indeciso na escolha do título e até mesmo no nome do personagem. Vacilava entre: “Opiniões e ideias de J. Sá. Bragança” ou “Manias, opiniões e ideias de J. Gonzaga de Sá”.

5 Gonzaga de , p. 110.

6 Completando o retrato, escreveu Lima Barreto: “Para verificar que não exagero basta ver a quantidade de diplomatas que ela tem editado; e dos autores novos que o não sejam, não há nenhum obscuro de nascimento e baldo de relações de prestígio nos jornais. Ora, convenhamos que é aborrecido isso de estar a pedir empenhos para tudo. Se a gente quer ser guarda noturno, precisa empenho, se quer se professor de direito, empenho. É de desesperar. Um livreiro experimentado e conhecedor do meio, deve até não aceitá-los. Não faltam meninos bonitos, cheios de relações, que colecionem mediocridades e queiram publicá-las sem despesa; e uma casa que se preza, deve contar em cada edição um sucesso literário e monetário. Mas a Garnier não queria saber disso. Era a casa rica, não tinha concorrentes de valor e editava por editar”. “O Garnier morreu”, artigo de Lima Barreto, em Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 07/08/1911. Ver Impressões de leitura, p. 281 e 282.

7 Isaías Caminha, p. 39. João Pereira Barreto, autor de Selvas e céu, era cunhado de Sílvio Romero. Vencido pela dipsomania, adquiriria mais tarde triste notoriedade, por ter assassinado a esposa. Ficou então conhecido como o “poeta uxoricida”.

8 Carta a Gonzaga Duque, 07/02/1909. Ver Correspondência, I, p. 169-170.

9 Isaías Caminha, p. 42. “Com elas”, escreveu ainda no corpo do romance (p. 120), referindo-se às Recordações, “queria modificar a opinião dos meus concidadãos, obrigá-los a pensar de outro modo, a não se encherem de hostilidade e má vontade quando encontrarem na vida um rapaz como eu e com os desejos que tinha há fez anos passados. Tento mostrar que são legítimos e, se não merecedores de apoio, pelo menos dignos de indiferença”.

10 “Lima Barreto”. Revista da Academia Piauiense de Letras, ano VIII, n. 8, Teresina, dezembro de 1924, p. 79-81. Ver Correspondência, I, p. 238. Na carta que escreveu a Corinto da Fonseca, em 14/07/1909, expressa Lima Barreto o mesmo sentimento: “Aí vão as páginas do Isaías, que recebi de Lisboa. Peço-te que não mas percas, pois só recebi estas. Mando-te também o prefácio, que lhe pus à testa quando o comecei a publicar. Tirei-o no livro. Tenho ojeriza pelos prefácios, mas ele te pode servir para bem compreender o livro. Estou certo que a tua inteligência há de ver nele mais do que um ataque ao jornal. Há de ver nele um caso de ‘desmoralização’, de enfraquecimento do indivíduo pela sociedade, de apavoramento diante dos seus prejulgamentos”. Ver Correspondência, I, p. 190.

11 Carta a Lima Barreto, Lisboa, 13/03/1909. A nota escandalosa não desagradaria de todo o editor, que há de anunciar o Isaías Caminha, no seu aparecimento, como “livro de intriga jornalística fluminense”. Ver Correspondência, I, p. 67-68.

12 Carta de Antônio Noronha Santos, Rio de Janeiro, 03/04/1909. Ver Correspondência, I, p. 69.

13 Carta a A. M. Teixeira, Rio de Janeiro, 24/04/1909. Ver Correspondência, I, p. 174.

14 Carta a A. M. Teixeira, Rio de Janeiro, 11/07/1909. Será bom observar que as emendas contidas nessa carta não foram respeitadas pelo editor. Ver Correspondências, I, p. 175.

15 Carta a A. M. Teixeira, Rio de Janeiro, 11/11/1909. Ver Correspondência, I, p. 176. A referência ao episódio do encontro de João do Rio com o editor consta duma carta de Antônio Noronha Santos, de 13/03/1909, acima citada. Ver Correspondência, I, p. 68.

16 Carta de Antônio Noronha Santos, Lisboa, 27/07/1909. Ver Correspondência, I, p. 89.

17 Lima Barreto/ Recordações/ do escrivão/ Isaías Caminha/ Lisboa/ Livraria Clássica Editora/ de A. M. Teixeira & Cia./ Praça dos Restauradores, 20/ 1909. 316 p. 19 x 12 cm.

18 Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Ver Correspondência, I, p. 171-172.

19 Carta de Antônio Noronha Santos, Paris, 20/04/1909. Ver Correspondência, I, p. 72.

X Meu coração profundo parece essas abóbodas de igreja / Onde o menor ruído se avoluma numa imensa voz, (N.E.)