Julgamentos
Aos olhos dos homens da imprensa, publicar um livro é uma ousadia sem limites, uma temeridade e uma pretensão inqualificáveis e dignas de castigo.
(Isaías Caminha, p. 237)
Não se confirmaria, de modo nenhum, o vaticínio de Antônio Noronha Santos, segundo o qual depois de publicado o primeiro livro tudo havia de mudar, para melhor, inclusive na Secretaria da Guerra. Às palavras carinhosas do amigo, o amanuense opunha fatos concretos. Fora preterido uma vez. Viera depois a reforma da repartição, na gestão Hermes da Fonseca. Continuaria esquecido.
“Projetam-se promoções”, dizia, em carta a Santos, “e eu serei de novo preterido”. Já se sentia então definitivamente incompatibilizado com a vida burocrática. “Ando imaginando o meio de sair daqui”, acrescentava, para concluir na mesma carta em tom de quem, neste particular, não esperava mais nada: “eu penso que o meu livro em nada servirá para evitar futuras preterições”.1
Sabia de antemão que o Isaías Caminha não poderia melhorar, para ele, o ambiente na repartição, nem lhe daria prestígio junto aos chefes. Era um livro áspero e amargo, com páginas fortemente agressivas contra as instituições, a sociedade, os preconceitos, o Exército. Um livro assim não agradaria jamais aos que põem e dispõem das situações e dos empregos públicos, os quais, em geral, desejam a vida dos protegidos pautada dentro de regrinhas convencionais. Só os bons-moços, medíocres e bem-comportados conseguem despertar-lhes simpatias. Os inquietos, os insatisfeitos, os rebelados do tipo de Lima Barreto não os atraem.
É claro que uma promoção a segundo oficial – a reforma Hermes transformara-o apenas de amanuense em terceiro oficial, sem aumentar-lhe os vencimentos – traria alguma compensação de ordem material, aliviando-lhe os encargos de família, e era isto, somente isto, o que interessava da sua carreira de burocrata inadaptado.
Sua ambição, a sua grande ambição, era bem outra: afirmar-se como escritor. Se tinha alguma ilusão, a respeito do Isaías Caminha, o que parece certo, era a do êxito literário. Desejaria a imediata consagração da crítica, da imprensa, do país inteiro. Até os que, por este ou aquele motivo, recebessem o livro com reservas – o que era compreensível, em se tratando de uma sátira à imprensa – haveriam de, pelo menos, reconhecer-lhe o valor como escritor. Seria, pois, discutido, mas não continuaria esquecido, como até agora, como se fosse um pária da literatura. “A única crítica que me aborrece”, escreverá alguns anos depois, “é a do silêncio”.2
No entanto, a recepção ao Isaías Caminha, quer da imprensa, quer da crítica, seria mais uma decepção a acrescentar às muitas outras que o escritor vinha sofrendo desde a adolescência. Sem amigos na direção dos jornais de prestígio, poucas foram as notas que apareceram, registrando o aparecimento do livro.
O Correio da Manhã era atingido duramente pela pena do romancista, que o descrevia qual um museu de mediocridades, tendo à frente um diretor violento, mestre de descomposturas, destruindo reputações em nome da moral, mas que não passava, na realidade, de um êmulo de Tartufo, corrupto e devasso.
Nada mais natural, portanto, que o grande jornal se fechasse em copas, olimpicamente, sem tomar conhecimento sequer da existência do Isaías Caminha e do seu criador. O espírito de coterie fez o resto. Os demais jornais também receberam de pé atrás o livro inconveniente e atrevido, onde tantas figuras ilustres e respeitáveis – algumas delas, diga-se de passagem, falsamente ilustres e falsamente respeitáveis – eram retratadas ao vivo, quase sem nenhum disfarce.
Efetivamente, como pouca gente letrada no Brasil hoje ignora, o romance de Lima Barreto é uma sátira ao Correio da Manhã, escolhido dentre os demais por ser o de maior sucesso, o mais representativo, o mais típico, o mais retratável dos órgãos de imprensa da época.
A chave das Recordações do escrivão Isaías Caminha foi, durante largo tempo, um segredo de polichinelo, de que muito se falava nas rodas de escritores e jornalistas, mas que ninguém se animava a denunciar por escrito. Coisas da província do Brasil... Acabou relevada num artigo de B. Quadros, pseudônimo de Antônio Noronha Santos, na revista Vida Nova, e depois por Gondin da Fonseca, em capítulo da sua biografia de Santos Dumont, no qual descreve a vida carioca do começo do século. Muitos dos personagens ainda vivem. Quanto aos mortos – na maioria gente como João do Rio, Edmundo Bittencourt, Leão Veloso, Coelho Neto ou Afrânio Peixoto – estes já conquistaram de há muito seus lugares em nossa crônica jornalística e literária.
A sátira era cruel e atingia, em cheio, o quartel-general do mais poderoso jornal da época. Segundo B. Quadros, a chave do romance é a seguinte: Plínio de Andrade ou Plínio Gravatá – Lima Barreto; Ricardo Loberant – Edmundo Bittencourt; Aires d’Ávila – Leão Veloso (Gil Vidal); Leporace – Vicente Pirajibe; Lobo, o gramático – Cândido Lago; Floc – João Itiberê da Cunha (Jic); Veiga Filho – Coelho Neto; Raul Gusmão – João do Rio; Michaelowsky ou Gregorovitch Rostoloff – Mário Cataruzza; Pranzini, o gerente – o Fogliani, do Fon-Fon; Florêncio – Figueiredo Pimentel; senador Carvalho – marechal Pires Ferreira; Dr. Franco de Andrade – Afrânio Peixoto; Losque – Gastão Bousquet; Dedoro Ramalho – Floriano de Lemos; Rolim – Chico Souto; Agostinho Marques – Pedro Ferreira Serrado; Dr. Demóstenes Brandão – o juiz Cícero Seabra (irmão de J. J. Seabra); Laje da Silva – Pascoal Segreto; O Globo – Correio da Manhã; Casa da Valentina – a Valéry ou a Richard, duas das mais céleres “pensões” do tempo.3
E, agora, a chave divulgada por Gondin da Fonseca: Ricardo Loberant – Edmundo Bittencourt; Ivan Gregorovitch Rostoloff – Mário Cataruzza; Pacheco Rabelo (Aires d’Ávila) – Leão Veloso (Gil Vidal); Veiga Filho – Coelho Neto; Gramático Lobo – Cândido Lago; Floc – Jic, pseudônimo de João Itiberê da Cunha; Leporace – Vicente Pirajibe; Adelarmo Caxias – Viriato Correia; Oliveira – Costa Rego; Losque – Gastão Bousquet; Raul Gusmão – João do Rio; Laje da Silva – Pascoal Segreto; Casa da Valentina – pensão da Tina Tatti, célebre rendez-vous do Russel.4
O Recordações do Escrivão Isaías Caminha não era, na verdade, a grande obra que tinha em mente escrever um dia. O seu ideal seria mais ambicioso. “Se eu pudesse...”, confessou através de um dos seus personagens, “se me fosse dado ter o dom completo de escritor, eu havia de ser assim um Rousseau, ao meu jeito, pregando à massa um ideal de vigor, de violência, de força, de coragem calculada, que lhes corrigisse a bondade e a doçura deprimente”.5
Ainda era cedo para isso. E como que explicando a gênese do Isaías Caminha, cabe a outro personagem falar pelo escritor:
“A obra que meditava, assim que travei conhecimento mais íntimo com a cozinha literária, percebi logo que me seria difícil publicá-la, sem que, antes, eu adquirisse um certo nome, uma certa posição que me garantisse o bem-querer dos livreiros. Demais, eu precisava anos para realizá-la, tal qual eu a meditava. Pobre, não me seria possível custear a impressão, e mesmo era preciso que eu fosse criando um núcleo de leitores. Resolvi, portanto, publicar alguma coisa que atraísse atenção sobre mim, que me abrisse as portas, como se diz, que me fizesse conhecido, mas queria pôr nessa obra alguma cousa das minhas meditações, das minhas cogitações, atacar em síntese os inimigos das minhas ideias e ridicularizar as suas superstições e ideias feitas.”6
Concebera, destarte, um romance diferente dos cânones consagrados. Um romance que tivesse algo de agressivo. Que atraísse enfim “leitores, amigos e inimigos”. Não importava a ele os inimigos, alguns dos quais aparecem no Recordações sem nenhum disfarce. Na primeira edição, revela o nome verdadeiro de um dos personagens principais do romance – Frederico Lourenço do Couto – o Floc das crônicas literárias – que outro não era, na vida real, que João Itiberê da Cinha – o Jic, do Correio da Manhã. Numa das cenas mais intensas do livro, exatamente a que descreve o suicídio de Floc, quando o chefe da oficina volta à redação, é assim que se dirige ao famoso crítico:
– “Seu” Cunha!7
O primeiro crítico a tratar do Isaías Caminha foi Medeiros e Albuquerque. Reconhecendo, embora, as qualidades do romancista – “começa pelo fim, aparece como um escritor feito” –, lamenta “as alusões pessoais”, a “descrição de pessoas conhecidas, pintadas de um modo deprimente”, para condenar incisivamente o livro, que classifica como sendo “um mau romance e um mau panfleto”. “Mau romance”, explica, “porque é da arte inferior dos romans à clef. Mau panfleto, porque não tem a coragem do ataque direto, com os nomes claramente postos e vai até a insinuações a pessoas, que mesmo os panfletários mais virulentos deveriam respeitar”.8
A crítica de Medeiros e Albuquerque doeu, e Lima Barreto em carta que lhe remete, no mesmo dia em que saiu publicado o folhetim de A Notícia, apresenta a sua defesa: “Estou certo de que as pessoas que não me conhecem só poderão ter a impressão que o senhor teve. Há, entretanto, alguma coisa que a justifique, dentro mesmo dos motivos literários. Se a revolta foi além dos limites, ela tem contudo motivos sérios e poderosos. Na questão dos personagens há (ouso pensar) uma simples questão de momento. Caso o livro consiga viver, dentro de curto prazo ninguém mais se lembrará de apontar tal ou qual pessoa conhecida como sendo tal ou qual personagem. Concordo que há frases aqui e ali, e mesmo certas referências, que em muito o prejudicam. Ainda questão de momento... Não direi que estou arrependido de tê-las escrito, mas estou disposto a cortá-las em outras edições”.9
Uma nova decepção experimentaria Lima Barreto com o inteligente comentário que Alcides Maia dedicou ao Isaías Caminha. E logo quem! A Alcides Maia se atribui, com ou sem razão, a transformação do personagem principal do romance de garçom de um café, tal como a princípio o autor teria ideado, em trabalhador de jornal, primeiro contínuo e depois repórter.
Pois bem. Com palavras amáveis, sem dúvida sinceras, traduzindo a sua real estima pelo escritor, Alcides põe a nu o principal defeito do livro – a sua nota pessoal, que o reduz quase a um “álbum de fotografias”. Não era um romance, mas uma “verdadeira crônica íntima de vingança, diário atormentado de reminiscências más, de surpresas, de ódios”. E mais adiante: “O volume, vez por outra, dá a penosa impressão de um desabafo, mais próprio das seções livres que do prelo literário”.
Em suma, para Alcides Maia, Lima Barreto não atingira o ideal artístico colimado, justamente porque não tivera força para sopitar o ódio de que se achava possuído contra o meio onde havia formado a sua personalidade.10
Em todo o caso, Alcides Maia tratara-o com respeito, e isso significava muito, em meio ao boicote da grande imprensa. Os jornais continuavam mudos. Apesar da campanha de silêncio, o livro se vendia, o que transmite ao escritor desprezado uma sensação de euforia. Em maio de 1910, Lima Barreto escreve ao editor Teixeira, comunicando que, “no Rio, não há mais nenhum exemplar do Isaías”, e tal coisa acontecia – o detalhe não deixa de ser interessante – “há perto de três meses”. Sugere, então, uma segunda edição, o que entretanto não encontrou receptividade por parte do livreiro português, que possuía ainda boa quantidade de exemplares no depósito.11
De qualquer modo, o sucesso do livro de estreia não satisfez ao escritor, consciente do seu valor, e que só recebia, até mesmo nos elogios, restrições que o magoavam, por sentir-se ora incompreendido, ora frustrado nos seus objetivos.
Além de Alcides Maia, cuja opinião literária sempre teve no maior apreço, José Veríssimo apontou-lhe também o “grave defeito” do livro – “o seu excessivo personalismo” – numa carta que reflete a um só tempo a seriedade, a agudeza e a honestidade com que o crítico, afastado de qualquer atividade jornalística, encarava as obras literárias que mereciam atenção e respeito.
A carta do autor dos Estudos a Lima Barreto estreante é documento inédito, só agora trazido à publicidade. Ei-la na íntegra:
“Riachuelo (Vinte e Quatro de Maio 227), 5 de março de 1910.
Senhor Lima Barreto.
Não me foi de todo possível agradecer-lhe há mais tempo a remessa do seu livro Recordações do escrivão Isaías Caminha e as generosas expressões de que o acompanhou. Eu não queria lhe agradecer sem ter lido o livro, e só agora pude acabar de lê-lo, tão absorventes têm sido nestes últimos tempos as minhas ocupações.
A sua benevolência me desculpará a falta inteiramente involuntária, e que a mim mesmo começava a pesar.
Sincera e cordialmente o felicito pelo seu livro. Há nele o elemento principal para os fazer superiores, talento. Tem muitas imperfeições de composição, de linguagem, de etilo, e outras que o senhor mesmo, estou certo, será o primeiro a reconhecer-lhe, mas com todos os seus senões é um livro distinto, revelador, sem engano possível, de talento real.
Não lhe estou fazendo a crítica, da qual estou quase por completo afastado, e nem poderia fazê-la numa breve carta. Digo-lhe apenas chã e amistosamente a minha impressão geral do seu livro que é, e muito obrigado por ela, excelente.
Há nele, porém, um defeito grave, julgo-o menos, e para o qual chamo a sua atenção, o seu excessivo personalismo. É pessoalíssimo, e, o que é pior, sente-se demais que o é. Perdoe-me o pedantismo, mas a arte, a arte que o senhor tem capacidade para fazer, é representação, é síntese, e, mesmo realista, idealização. Não há um só fato literário que me desminta. A cópia, a reprodução, mais ou menos exata, mais ou menos caricatural, mas que se não chega a fazer a síntese de tipos, situações, estados d’alma, a fotografia literária da vida, pode agradar à malícia dos contemporâneos que põem um nome sobre cada pseudônimo, mas, escapando à posteridade, não a interessando, fazem efêmero e ocasional o valor das obras.
Eu que isto lhe digo, eu mesmo me deliciei, com a sua exata e justa pintura da nossa vida jornalística e literária, mas não dou por boa a emoção que ela me causou.
A sua amargura, legítima, sincera, respeitável, como todo nobre sentimento, ressumbra de mais no seu livro, tendo-lhe faltado a arte de a esconder quanto talvez a arte o exija. E seria mais ativo não a mostrar tanto.
Demais, e é o pior, ela se exprime frequentemente numa forma muito direta, sem as atenuações e os matizes, que porventura lhe dariam mais relevo, mais sainete à expressão.
Vê que nem a estima real que tenho pelo seu talento revelado neste livro me faz perder os maus vezos de velho crítico, e que lhe digo, com a sinceridade que devo à sua estima, os senões que me parece há nele.
Esse o senhor, estou certo, os reconhecerá espontaneamente – e é ainda a melhor crítica – e deles se corrigirá em torno obras mais perfeitas que as nossas letras lhe hão de dever.
Não receasse eu ser acoimado de impertinente lhe diria que fuja ao vulgar preconceito da honra ou vaidade literária, e ofereceria à sua meditação este belo pensamento de Joaquim Nabuco: ‘O escritor juvenil que não se resignar ao sacrifício da sua honra literária, não fará progressos em literatura.’
Há no senhor, digo-lhe sem ânimo de cumprimentá-lo, tudo o que é preciso para fazê-los e completos.
Felicito-o pelo seu livro, ao qual desejo o bom sucesso que merece, e rogo-lhe creia nos sentimentos cordiais com que sou
seu
confrade e obrigado
José Veríssimo”12
Veríssimo batia na mesma tecla de Medeiros e Albuquerque e Alcides Maia. Isaías Caminha pecava pelo excesso de personalismo. Decerto, as restrições da crítica – principalmente as de José Veríssimo e Alcides Maia – tocariam, de modo profundo, a sensibilidade exaltada de Lima Barreto.
Ele mesmo havia provocado a luta, escrevendo um livro de combate, “propositalmente malfeito”, como dissera a Gonzaga Duque, para desagradar ao literato convencional e escandalizar o burguês. Com um romance “brutal” (o adjetivo é do próprio Lima Barreto), queria mostrar que a sociedade estava errada, cheia de mazelas e preconceitos.
Não podia, pois, recuar, e não recuaria. A literatura, na sua concepção, tinha que ser militante, visando a objetivo certo e definido, e não uma “literatura contemplativa... cheia de ênfase e arrebiques...” falsa e sem finalidade.13
De todas as restrições da crítica ao seu livro de estreia, a que mais o magoou foi precisamente a de considerar o Isaías Caminha só e unicamente um romance à clef, pertencente, por isso mesmo, a um gênero inferior da literatura.
Revoltava-se contra semelhante juízo, que reputava injusto. Um romance à clef pode, afinal de contas, ser um bom romance. Além do mais, o Isaías Caminha não seria, para ele, um simples “álbum de fotografias”, mas a história de um adolescente pobre em conflito com a sociedade que o esmagava ao peso das suas limitações. O mais era puramente circunstancial.
Durante muito tempo, pelo resto mesmo da vida, hão de repugnar-lhe as opiniões dos que insistiam em tocar na ferida, apontando o “ponto fraco” do Isaías Caminha, quer para elogiá-lo, quer para denegri-lo. A preocupação que sempre teve em explicar e apresentar justificativas chega a dar a impressão de uma ideia fixa a lhe martelar insistente e continuamente o cérebro.
O Isaías Caminha marcará a obra de Lima Barreto como um gilvaz a testa de um esgrimista do século XVII. Há de ser sempre o autor de um romance de escândalo. Os senhores da literatura, os que vestem casaca e frequentam a Livraria Garnier, jamais lhe perdoarão a ousadia da violenta arremetida, as diatribes ferinas que dirigira a certos príncipes do jornalismo e das letras, as caricaturas cruéis que ainda hoje cobrem de ridículo medalhões cheios de empáfia, os mais importantes medalhões da época.
Num movimento de autodefesa, mais do que natural, os mandarins enfurecidos se congregaram para repelir a audácia do mestiço. À porta da Cidade das Letras, como na da Escola Politécnica ou na da Secretaria da Guerra, haveria de encontrar sempre que o advertisse: é proibida a entrada aos homens de cor, especialmente aos malcomportados. Era o seu pecado original. E por ele pagava.
À condição de mulato, Lima Barreto atribuiria sem dúvida a má vontade para com o seu livro de estreia. No seu entendimento, a restrição ao romance à clef não passava de simples pretexto, encobrindo o verdadeiro objetivo do revide. Tendo o complexo da cor como ponto de partida, o escritor começava a traçar paralelos entre o “seu” caso e o caso dos “outros”. A esfinge, de Afrânio Peixoto, por exemplo, era também um romance à clef, retratando a vida mundana do Rio de Janeiro e de Petrópolis.
Publicado em 1911, dois anos após o aparecimento do Isaías Caminha, a crítica foi unânime em elogiá-lo. Ninguém se lembrou de falar nos romances à clef como um gênero inferior da literatura. E por quê? – indagaria consigo mesmo. Simplesmente porque Afrânio Peixoto pertencia ao grupo dos donos da inteligência e da cultura. E ele, Lima Barreto, não passava de um “roto”.
Dentro da lógica do desprezado, a comparação é perfeita. O autor vitorioso era de fato a antítese do confrade humilde, que morava nos subúrbios e exercia modestíssima função na Secretaria da Guerra. Afrânio Peixoto, ao contrário, muito moço ainda, participava das grandes instituições do país, das academias e das faculdades, como um pequeno sábio. E, além do mais, era branco.
Lima Barreto leu A esfinge e achou-o, como romance, detestável. Oferecendo o exemplar por ele lido e anotado ao seu mais constante e fiel amigo, Antônio Noronha Santos, deixa escapar, na dedicatória, toda a sua amargura. “Ao Sr. Dr. Antônio Noronha Santos, desejando que tenha na sua estante uma eloquente prova da importância do senso literário nacional e também do critério que, por este século XX, ainda se tem, entre nós, do romance, ofereço este livro, cujas virtudes opiáticas, não são de desprezar. – Rio de Janeiro, 25. VIII. 11. (a). Lima Barreto.”
O exemplar de A esfinge serviria assim como uma prova documental da injustiça que sofrera. Há mais a registrar. Entre as muitas anotações existentes no volume, feitas pelo próprio Lima Barreto, uma é preciosa para se tirar a conclusão definitiva do travo que ainda amargava a alma do escritor desprezado: “É à clef, e eles elogiaram”.14
Anos mais tarde, Lima Barreto volta ao assunto, para fazer a defesa dos romances à clef. Para ele, o gênero não implicaria em nenhuma inferioridade literária, mas numa forma de literatura militante.15 Praticando-o, o autor devia “retratar o personagem, dar-lhe a sua fisionomia própria, fotografá-lo, por assim dizer”.
Assim comentava em 1921 O homem sem máscara, romance aliás medíocre, da autoria de Vinício da Veiga. Um ano antes de morrer, Lima Barreto parecia estar respondendo ao artigo em que Medeiros e Albuquerque enumerou os defeitos do Recordações do escrivão Isaías Caminha.
“A força dos romances dessa natureza”, dirá, nessa oportunidade, a propósito dos romances à clef, “reside em que as relações do personagem com o modelo não devem ser encontradas no nome, mas na descrição do tipo, feita pelo romancista de um golpe só, numa frase. Dessa forma, para os que conhecem o modelo, a charge é artística, fica clara, é expressiva e fornece-lhes um maldoso regalo; para os que não o conhecem, recebem o personagem como uma ficção qualquer de um romance qualquer e a obra, em si, nada sofre. Como o recurso, porém, de simples pseudônimos, transparentes, o trabalho perde o seu quid artístico, passa a ser um panfleto comum e os personagens, sem vida autônoma e sem alma, simples títeres ou fantoches”.
Depois dessa dissertação, Lima Barreto aconselhava ao jovem romancista a tomar o caminho da literatura militante, “criticando semelhante ‘pessoal’ [a gente da sociedade], não tem relação ao plano anormal da sexualidade humana, mas em relação aos interesses sociais que, na vida comum, ele lesa mais do que quando se entrega às suas mórbidas abjeções sociais”.16
Doze anos depois do aparecimento do Isaías Caminha, ainda doía a ferida malcicatrizada.
Notas
1 Carta a Antônio Noronha Santos, Rio de Janeiro, 18/05/1909. “Duas cartas inéditas de Lima Barreto”, O Globo, Rio de Janeiro, 04/09/1933. Ver Correspondência, I, p. 76.
2 Histórias e sonhos, p. 29.
3 “Primeiro contacto com Lima Barreto”, artigo de B. Quadros, na revista Vida Nova, Rio de Janeiro, 25/01/1936, n. 279, p. 23-24, reproduzido como prefácio ao volume Correspondência, II.
4 Santos Dumont, por Gondin da Fonseca. Rio de Janeiro, Vecchi Editor, 1940, p. 133-134. A inclusão do nome de Costa Rego não nos parece corresponder à verdade, já que a sua entrada no Correio da Manhã, como simples revisor, data de 1906. A estes nomes, acrescenta Modesto de Abreu o de Cândico Jucá, representado no personagem Plínio Gravatá.
5 Gonzaga de Sá, p. 134.
6 O cemitério dos vivos, p. 168-169.
7 Isaías Caminha, 1ª edição, p. 285. A observação pertence a Modesto de Abreu. “A chave do Isaías”, artigo publicado no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16/02/1936.
8 “Crônica literária”, por J. dos Santos (pseudônimo de Medeiros e Albuquerque), em A Notícia, Rio de Janeiro, 15-12-1909.
9 Carta a Medeiros e Albuquerque. Rio de Janeiro, 15/12/1909. Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Ver Correspondência, I, p. 198.
10 “Crônica literária”, assinada com a inicial A, em Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 16/12/1909.
11 Carta a A. M. Teixeira, de 28/05/1910, e resposta deste, a 18/06/1910. Ver Correspondência, I, p. 177-179.
12 A carta de José Veríssimo poderá ser consultada na Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Ver Correspondência, I, p. 203-206.
13 Histórias e sonhos, p. 34 e 30, respectivamente.
14 “Lima Barreto e Afrânio Peixoto (Em torno de dois romances à clef)”, artigo de Antônio Noronha Santos, em Pan Estadual, Rio de Janeiro, novembro e dezembro de 1942, p. 5-7.
15 “Como sempre falei em literatura militante...”. Ver “Literatura militante”, artigo de Lima Barreto (Impressões de leitura, p. 72).
16 “Um livro desabusado”, artigo de Lima Barreto, em A.B.C., Rio de Janeiro, 24/12/1921. Ver Impressões de leitura, p. 202-203.