QUARTA PARTE
Intermezzo
Primavera de Sangue
A vida, infelizmente, deve ser uma luta;
e quem não sabe lutar, não é homem.
(Marginália, p. 79)
O lançamento do Recordações do escrivão Isaías Caminha, em fins de novembro ou começos de dezembro de 1909, encontrara o país convulsionado pelo debate político. Já ia em meio a campanha presidencial, que teria epílogo melancólico com a derrota de Rui Barbosa nas eleições de 1º de março do ano seguinte. Desde o primeiro instante, Lima Barreto havia tomado posição contra o marechal Hermes da Fonseca, ministro da Guerra, embora discretamente, dada a sua condição de funcionário público subalterno e, ainda mais, servindo no próprio ministério de onde saíra o nome lembrado pelos políticos sob o comando de Pinheiro Machado, para suceder, no Palácio do Catete, ao presidente Afonso Pena.
De fato, dois dias após a proclamação de Rui Barbosa, na Convenção do Rio de Janeiro, o escritor manifesta a sua solidariedade ao candidato anti-hermista, “em nome da liberdade, da cultura e da tolerância”. É o que diz na carta que então escreveu a Rui. Assina-a, porém, não com o seu nome civil, mas com o do seu alter ego Isaías Caminha.
Teria receio de vir a ser perseguido na repartição?
Devia importar-se pouco com isso, pois semelhante disfarce não bastava para encobrir a identidade do missivista. O motivo era bem outro. Para dizer tudo o que sentia, colocou a máscara do seu personagem. Isaías Caminha, a sua própria consciência, ferida e humilhada, mas reagindo sempre contra o meio que a tentava sufocar, podia falar sem rebuços, sem censuras, nem convencionalismo, com liberdade de extravasar todos os seus recalques e ressentimentos. Com aquele mesmo acento patético, e pela voz do mesmo Isaías Caminha, o romancista continuava a destilar toda a sua revolta. Não – escreveu na carta a Rui Barbosa, que é, afinal de contas, mais de protesto que de adesão –, não desejava para o Brasil “o regímen do Haiti, governado sempre por manipansos de farda, cujo culto exige sangue e violência de toda a ordem”.1
Sim, era de protesto a posição de Lima Barreto. Protesto contra a candidatura militar, que nascera do entrechoque das ambições de políticos frustrados. Trabalhado por um forte sentimento antimilitarista desde a juventude, que o ambiente na Secretaria da Guerra só fizera alimentar e crescer ainda mais, via em Rui Barbosa apensas o candidato civil. Na verdade, nunca fora um “ruísta” exaltado. Tinha as suas restrições, tanto ao político, como ao intelectual.
Existe a respeito um documento interessante, e que é, por sinal, anterior à carta do escritor, apoiando a candidatura civilista.
Em maio de 1909, Anatole France esteve no Rio. Entre as homenagens que recebeu, destacou-se a recepção na Academia Brasileira de Letras, durante a qual Rui Barbosa havia de pronunciar o seu famoso discurso escrito e falado em francês, mas pensado em português.2 A impressão fora extraordinária. No dia seguinte, os jornais glosavam o episódio como mais uma façanha do baiano ilustre, cujos conhecimentos linguísticos teriam assombrado os embaixadores das maiores nações do mundo na Conferência de Haia, e agora, dois anos depois, deixaria boquiaberto um Anatole France. O terrível ironista curvara-se diante do orador, para felicitá-lo: “Je vous assure, c’est une merveille”.3
No auge do prestígio intelectual e político, o nome de Rui Barbosa começava a ser apontado como candidato à presidência da República. Era considerado um homem extraordinário, um semideus. No entanto, Lima Barreto não formava na legião dos admiradores incondicionais. O comentário que deixou sobre o discurso a Anatole France, numa carta a Antônio Noronha Santos, destoa do coro dos basbaques e dá bem uma ideia das reservas que mantinha:
“O Rui falou, falou com aquela pretensão e aquela falta de visão que lhe são peculiares, durante hora e tanto, tentando fazer crítica à obra do Jérôme Coignard ou Sylvestre Bonnard, como quiseres. Disse que era vice-presidente do Senado (sic) e se batia pela paz universal. Anatole respondeu sobriamente e sem relevo. Sentia-se emovido (gostaste?) e apreciava muito esta terra, bela, etc., em que não havia prejuízos de raça, como na Inglaterra. Quanto à paz universal, disse que devíamos guardar-nos das surpresas dos sentimentos e dos enganos do coração.”4
Antônio Noronha dos Santos ainda se encontrava na Europa. E Lima Barreto escrevia ao amigo, pondo-o a par de tudo o que se passava no Brasil. Sensível aos acontecimentos políticos, não esqueceu de falar nas candidaturas à presidência da República, na mesma carta em que descreve a recepção de Anatole France na Academia.
Agravara-se o problema da sucessão com a recusa do nome de David Campista, então ministro da Fazenda, pelo grupo liderado por Pinheiro Machado. Quando a candidatura mineira parecia um fato consumado, eis que o chefe gaúcho coloca uma nova peça no tabuleiro da política: o ministro da Guerra. Estava declarada a crise. Hermes da Fonseca rompe com o presidente da República e deixa o ministério.
Lima Barreto faz, então, ao amigo distante com compte rendu do episódio:
“Sabias que o Campista era o candidato à presidência do Pena. Bem. A estupidez nacional e a cavação também começaram a agitar o nome do Hermes. Ele tomou a sério. O Laje5 e o Alcindo6 levantaram a candidatura dele no País e na Imprensa. A rã começou a encher-se. Há dias fizeram uma ovação ao Rio Branco e logo os ‘alferes’ lembraram-se de fazer uma a esse tolo, no dia do seu aniversário, como se os dois, Rio B. e H. fossem homens do mesmo quilate. O Pena pediu então à gralha [Hermes] que declarasse se era ou não candidato. Ele prometeu, mas não fez. Isto foi a 12 e a 14 o Pena, à vista da evasiva de 12, pediu-lhe que fizesse por escrito a declaração. Ele a fez, pedindo demissão e atacando a candidatura de David Campista. Sabes o que o Pena fez? Mandou chamá-lo, pediu-lhe desculpas, abandonou o Campista e a gralha ficou na pasta. Está aí a que está reduzido o Brasil.” E como um caricaturista que desejasse rematar a charge com um traço ainda mais cruel, Lima Barreto acentua a nota ferina do comentário: “Engraçado é que o Campista ficou também e só o Carlos Peixoto julgou-se obrigado a resignar a presidência da Câmara. Quando voltares, estará eleito o Hermes e o império dos alferes voltará e – quem sabe? – o [encouraçado] ‘Minas Gerais’ talvez ainda asseste os canhões para o Rio”.7
Evidentemente há alguma coisa que retificar no relato do romancista. Lima Barreto carregou nas tintas, ao descrever o jogo dos interesses regionalistas, a par de ambições e vaidades recalcadas, que resultou na candidatura do ministro da Guerra. A inexatidão de um ou outro pormenor não invalida, porém, o depoimento, apaixonado sem dúvida, mas que reflete, através da caricatura, a disputa dos blocos estaduais pela hegemonia da política nacional.
A luta começa no início do quadriênio presidencial, quando Pinheiro Machado compreendeu que estava ameaçada a sua posição de Condestável da República. Os mineiros eram, agora, os senhores da situação. Na Câmara dos Deputados, a bancada de Minas Gerais dominava, não só pela superioridade da inteligência, como pelo prestígio que lhe dava o presidente da República. Esse grupo de deputados, todos jovens, conquistou desde logo a estima da imprensa. E o “Jardim da Infância” – como passou a ser chamada a bancada pelos cronistas parlamentares – não tardou a tomar conta da Câmara, elegendo Carlos Peixoto seu presidente. A reação de Pinheiro Machado era mais do que natural. Acuado, o cacique procurou se defender. Tinha que enfrentar o inimigo, ou seja, impedir a todo custo que outro mineiro viesse a suceder a Afonso Pena no Palácio do Catete. Daí o veto que opôs ao nome de David Campista e a sua concordância, logo depois, à candidatura do ministro da Guerra. Com Hermes da Fonseca no governo, Pinheiro continuaria a ser o líder da política nacional.
Retificando o romancista, é bom recordar que, uma vez proclamado candidato, a 22 de maio, Hermes da Fonseca deixou a pasta da Guerra, sendo na mesma substituído pelo general Luís Mendes de Morais. Logo depois, a 14 de junho, morre Afonso Pena. O presidente da República sucumbe em meio à batalha, vítima de “traumatismo moral”, segundo se propalou na época.8 Assume o governo o vice-presidente Nilo Peçanha, que passou a prestigiar abertamente a política de Pinheiro Machado. Cresce a onda de descontentamento, que encontra o seu veio natural e lógico na candidatura de Rui Barbosa, consagrada afinal na Convenção de 22 de agosto. É um bacharel, um advogado, um jurista, contra um marechal do Exército. Ambos são figuras respeitáveis, com grandes serviços prestados à nação e, por conseguinte, dignos da presidência da República. Mas Hermes da Fonseca não era político. Era um militar. Sua candidatura trazia assim o vício da origem. Fora levantada pela solércia de um grupo e aceita pela pusilanimidade da maioria dos chefes políticos dos Estados. O ministro da Guerra – escreveu o mais autorizado dos biógrafos de Rui Barbosa – servia de “verdadeiro cavalo de Troia, destinado a aterrar os políticos aflitos”.9 E aterrou mesmo.
Com a morte de Afonso Pena, a situação mudaria por completo. É ainda o próprio Lima Barreto quem a descreve no seu romance Numa e a ninfa, sátira terrível dos bastidores da política, de que a carta a Antônio Noronha Santos fora simples antecipação. Ali todos aparecem.10
“O despeito dos políticos com a candidatura de Xisto [David Campista] foi ao encontro da apocalipse militar; e Bentes [Hermes da Fonseca] pesou na escolha do sucessor presidencial com uma revolução na retaguarda.”
Quanto à posição de Pinheiro Machado, o feiticeiro que mexeu e remexeu naquela “retorta de fantásticas transformações”, lá está fielmente configurada: “Bastos, apesar de toda a sua força aparente, admitiu-o, aceitou-o [Bentes], por uma consideração de defesa e conservações pessoais”. E Hermes da Fonseca: “Bentes oscilava doidamente como um espantalho sob o vendaval”.
De fato, tudo era confuso. Ninguém se entendia. Além disso, não se sabe inspirada por quem, surgiu uma campanha sistemática de desmoralização das instituições democráticas. “Os jornais e o povo”, depõe o romancista, “debochavam o Congresso, faziam-lhe as mais acerbas críticas e cobriam os deputados de epítetos os mais desprezíveis”.11
O ambiente tornara-se propício à agitação. Começa a campanha da sucessão presidencial sob mau agouro, atirando civis e militares uns contra os outros. Dentro em pouco, o Rio de Janeiro seria teatro de distúrbios populares, como o que ficou conhecido em nossa crônica política pela designação de “Primavera de Sangue”, e que terá, na vida de Lima Barreto, mais do funcionário que do escritor, profunda repercussão, como adiante se verá. A rigor, não existe relação direta entre o episódio e a campanha de Rui Barbosa, mas não há menor dúvida que foi o choque do chamado espírito civil com o militarismo hermista a causa principal do motim, no qual dois estudantes perderam a vida.
O caso se passou na entrada da primavera, a 22 de setembro precisamente. A candidatura Rui fora homologada havia pouco menos de um mês. Tudo aconteceu em consequência de um incidente entre estudantes e o comandante da Brigada Policial, o general Sousa Aguiar, a quem os rapazes tinham ido reclamar contra o procedimento de soldados, durante a realização de uma passeata comemorativa da primavera. O general não os quis atender. Em sinal de protesto, os estudantes decidiram promover o enterro simbólico do comandante da Brigada. Partiu o préstito da velha Escola de Medicina, na Rua de Santa Luzia, entrou por Misericórdia e Primeiro de Março, atingindo depois a Rua do Ouvidor e o Largo de São Francisco de Paula, ponto terminal da manifestação burlesca. À frente, ia um estudante “vestido” de padre, isto é, com um fraque preto e uma camisa branca de mulher, seguido por um sacristão. Ambos rezavam. Atrás vinha o caixão – um reles caixão de madeira, forrado de cetim negro –, várias cruzes e varapaus, sustentando velas de sebo. Sobre o caixão, uma coroa de palha com os dizeres: “Ao General Sousa Aguiar, os estudantes”. Nas partes laterais, em letras garrafais escritas a giz, anunciava-se: “Morreu o General Sousa Aguiar. Orai por ele”.
Como se vê, tudo não passava de uma patuscada. Brincadeira de mau gosto, fadada, porém, a cair em rápido esquecimento, depois de algumas horas de galhofa. Mas o “enterro” acabou mal. Soldados à paisana, manejando cacetes e punhais, investiram contra os rapazes indefesos. A Brigada Policial veio em seguida, espaldeirando o povo, num assomo de selvageria. Tudo fora previamente combinado. Haveria entre os policiais desordeiros conhecidos nas rodas da malandragem. Capoeiras famosos, como Bexiga, Bacurau, Serrote, Moringa, Turquinho. Resultado de tudo isso: dois estudantes mortos e numerosos feridos. José de Araújo Guimarães, acadêmico de Medicina e que fazia as vezes de sacristão, tombou ali mesmo, com uma facada no ventre, nas escadarias da Escola Politécnica. Francisco Pedro Ribeiro Junqueira, chamava-se o segundo estudante morto na chacina.12
Todo o Rio se emocionou com o acontecimento, tal a brutalidade de que se revestiu a reação policial à manifestação estudantil. Da tribuna do Senado, Rui Barbosa verberaria a violência, puxando a brasa para a sua sardinha. “Sou dos tempos”, dizia o tribuno na sua grandiloquência, “em que nessas mesmas ruas, em festas carnavalescas, se viam os Ministros de Estado e Presidentes do Conselho representando papéis eminentes nos carros de crítica e nas representações jogralescas do entrudo. Bem me lembro de ter assistido a uma em que, com música de carnaval, se viam cinquenta ou sessenta cabeças de Martinho de Campos, com a sua mesma expressão, com as suas feições, com o seu mesmo modo de estar, sem que se sentisse ferido na sua honra ou melindre o Presidente do Conselho, um dos homens mais respeitáveis e venerados que a tribuna desta Casa já viu dirigem-se ao país”.
E ferindo em cheio o triste episódio da véspera, acusa o orador:
“O pau e a faca de ponta foram os instrumentos do atentado. Os seus perpetradores eram praças do corpo policial, que se diziam instruídos e mandados pelos seus superiores. O crime era um desforço da suposta ofensa feita à honra do comandante da Brigada Policial pela manifestação dos moços acadêmicos.” E Rui assim conclui o seu libelo: “A honra militar não difere da honra civil, senão em graduações convencionais. Em um país constitucional, onde não pode haver privilégio de classe, muito menos regalias de casta, aqueles que vestem a farda e cingem a espada não estão isentos da crítica e da responsabilidade que pesa sobre todos os cidadãos”.13
A esse tempo, Antônio Noronha Santos ainda se encontrava em Paris. É com espanto, mas sempre com um sorriso ao canto dos lábios, que recebe as novidades do Brasil, através de Lima Barreto.
“A tua penúltima carta”, comunica ao amigo, “com a notícia da candidatura Hermes e adjacências, como diz o idiota do Mata Borrão, assombrara-me”.
E continua:
“O Rio deve estar bom agora. Eu sempre fui uma criatura de azar; vivia nessa pasmaceira a bocejar; afasto-me uns meses, o Hermes lança candidatura, o Pena dá para morrer e há um grande trambolhão político.”14
Pouco tempo depois, Santos retornava à pátria, a bordo do Halle – o “cabuloso, econômico e modesto Halle”15 – ainda a tempo de participar da campanha política, entusiasta que era da causa do civilismo. Vinha cheio de planos, achando que não se podia permanecer de braços cruzados, na atitude acomodatícia dos indiferentes. Urgia fazer alguma coisa de prático para auxiliar a candidatura Rui Barbosa, que empolgava o país inteiro em meetings memoráveis, os quais constituíram, na verdade, as primeiras grandes concentrações de massas promovidas no Brasil. Santos queria desde logo lançar um panfleto, que combatesse de frente a candidatura Hermes da Fonseca. Nasceu assim a ideia de O Papão, anunciado em boletins, distribuídos nas ruas centrais da cidade, como “semanário dos bastidores da política, das artes e das... candidaturas”.16 Sim, porque tudo que fosse planejado por Antônio Noronha Santos, àquele tempo, mesmo que se tratasse de política, teria forçosamente que passar por entre o crivo da arte e da literatura.
Convocado para a aventura, Lima Barreto entregou-se de bom grado à preparação do panfleto. Já fizera tantos jornalecos. Por que recusar-se a colaborar com o seu grande amigo numa ideia que era sua também?
Em fins de 1909 e começos de 1910 – justamente o período em que coincide a campanha civilista com o lançamento do Isaías Caminha –, não há sinal da presença de Lima Barreto na imprensa local. Poderia, portanto, ter-se dedicado à feitura de O Papão de corpo e alma, se a tanto fosse preciso. E, de fato, segundo o depoimento de Antônio Noronha Santos, o primeiro e único número do jornalzinho anti-hermista foi escrito quase inteiro pelo romancista. De O Papão, entretanto, não existe nenhum vestígio, a não ser o papelucho cor de vinho do boletim, que alardeava de modo tão petulante o seu fugaz aparecimento sobre a face da terra.
Vieram por fim as eleições, com a derrota de Rui Barbosa e o reconhecimento de Hermes da Fonseca. Sob ambiente ainda bastante carregado (o novo presidente só tomaria posse em novembro), reúne-se em setembro de 1910 o Tribunal do Júri para condenar ou absolver os responsáveis pela chacina do Largo de São Francisco de Paula. Os réus são em número de catorze, todos militares. O principal acusado é um oficial do Exército, tenente João Aurélio Lins Wanderley, um moço de 35 anos, casado com uma sobrinha do general Sousa Aguiar, o pivot do conflito com os estudantes. “Vinha a causa ao júri sob atmosfera de terror”, escreveu Evaristo de Morais, advogado dos estudantes; “dizia-se que o Tribunal seria assaltado, que colegas do oficial do Exército (Wanderley) e os companheiros das praças de polícia se haviam ajustado, com o intuito de desfeitear os acusadores, e, caso fosse desfavorável, para os réus, o resultado, perigavam as vidas dos jurados”.17
Para julgar o tenente Wanderley e seus companheiros (ironia do destino!), figurava entre os jurados o terceiro escriturário da Secretaria da Guerra, Afonso Henriques de Lima Barreto.
Que se saiba, nos anais forenses do Rio de Janeiro, jamais um júri produzira mais sensação. Cinco advogados de defesa, dois de acusação, além do promotor público, suceder-se-iam na tribuna, durante quatro dias e três noites a fio, sob enorme tensão popular. O júri demorou a instalar-se, e a escolha dos jurados não foi nada fácil. Por fim, começaram os trabalhos. A leitura do processo – dois grossos volumes – só terminaria às três e meia da madrugada – informa um jornal da época, a Folha do Dia. Cansados, os jurados “apertavam os olhos com os dedos e os arregalavam em seguida. Destes, mostravam-se muito atentos os Srs. Lima Barreto e Bruno Lobo”.18
A observação coincide com a de outro repórter, o d’A Notícia. “Muita gente dormia”, diz ele, “muita gente estava acordada, no entretanto, dois jurados se sobressaíam. Um era o poeta [sic] Lima Barreto e o outro o professor Bruno Lobo. Aquele com os olhos muito arregalados, muito inteligentes, como que procurando ver tudo, até a verdade [...]”.19
O Tribunal de Justiça funcionava numa velha casa da Rua da Relação. Assim o descreve o Correio da Manhã às primeiras horas do dia em que será conhecido o veredicto: “Seis horas da manhã. Dia claro. Na sala do juiz todos dormem. Nos bancos, nas tribunas, nas cadeiras dos jurados, populares ressonam. Tinha o aspecto de um grande dormitório o Tribunal. De quando em quando, o cantar de um galo ou a pilhéria de um estudante faziam um ou outro estudante entreabrir os olhos. O cansaço dominava a todos. Os oficiais de justiça, a sono solto, roncavam deitados no soalho de uma das salas”. Pedaços de comida, espalhados pelo chão, misturavam-se ao cheiro acre, que vinha dos mictórios. O conselho de sentença ainda estava reunido na sala secreta. E o repórter, espiando pela fresta da janela, consegue divisar um sinal de vida: “apenas um braço moreno e musculoso, liberto das mangas do casaco, corria velozmente sobre laudas de almaço, respondendo a quesitos”.20
A impressão era de que Lima Barreto servira como secretário do conselho de sentença. É, pelo menos, o que se lê no noticiário dos jornais da época. Mas, não.21 O escritor apenas levou a fama, sem dela tirar proveito. Ao contrário, a condenação do tenente Wanderley ia custar-lhe muito caro. Ele bem o sabia. No entanto, não se preocupou em desmentir a notícia, que adquiriu assim foros de verdadeira. Manteve, depois do julgamento, a mesma atitude de firmeza, desde que o seu nome figurou pela primeira vez na lista dos jurados. Todo o Exército se movimentara em auxílio do camarada de armas. O Clube Militar, através do seu presidente, o coronel Rego Barros, tomara a si os encargos da defesa e a coleta de recursos pecuniários.22
Lima Barreto fora cabalado, mas os rogos e as solicitações de nada valeram.23 “O júri... não é negócio de inteligência”, escrevia, pensando talvez no da “Primavera de Sangue”. “O que exige lá é independência, coragem moral, força de sentimento da vida e firmeza de caráter.”24
É impossível verificar, pela ausência de qualquer outro elemento elucidativo, a não ser a confissão do próprio escritor, até que ponto essa atitude de independência teria prejudicado a ascensão de Lima Barreto na sua carreira de funcionário do Ministério da Guerra. É, porém, indubitável que ele emprestava ao fato uma importância decisiva, conforme deixou escrito no Diário íntimo: “Eu fiz parte do júri de um Wanderley, alferes, e condenei-o. Fui posto no índex”.25
Exagerado, injusto ou errado, esse foi o sentimento que lhe ficou impresso na alma, como mais um motivo de revolta contra a vida.26
Notas
1 A carta em apreço não consta dos arquivos da Casa Rui Barbosa. Traz a data de 25/08/1909. A sua minuta pode ser consultada na Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Ver Correspondência, I, p. 194.
2 A saudação em francês fizera época. No ano seguinte, Georges Clemenceau era recebido no Senado e saudado em francês por Francisco Glicério e Jorge de Morais. Anais do Senado Federal, sessões de 1º a 30 de setembro de 1910, v. II, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1911, p. 164-167.
3 Luís Viana Filho, A vida de Rui Barbosa. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1949, p. 362.
4 Carta a Antônio Noronha Santos, de 18/05/1909. “Duas cartas inéditas de Lima Barreto”, em O Globo, Rio de Janeiro, 04/09/1933. Ver Correspondência, I, p. 75. Ainda a respeito de Anatole France no Rio, Santos conservou a seguinte reminiscência de Lima Barreto: “Certa noite, estava France, em companhia de [José] Veríssimo e outros paredros da Academia, fazendo um passeio pela Avenida, quando teve a atenção atraída pelo cinema que o Pascoal Segreto instalara ao lado do seu cabaret, em frente à Americana. Dirigia-se para lá, quando do grupo escandalizado partiu a advertência de que se tratava de um cinema livre. Anatole deu a ombros, e entrou. Os filmes – diga-o quem uma vez assistiu a essas exibições – eram tão horrendos na sua abjeção canalha, que mais pareciam cartazes de propaganda contra o perigo das moléstias venéreas. France, que aceitava tudo por princípio de ética, sorria. E Lima Barreto, ao me contar o episódio, ria, ria muito, não de Anatole, mas do Veríssimo e do cortejo que, transido de vergonha, se via forçado a participar da incontinência do Mestre [...]”.
5 João Laje, diretor d’O País.
6 Alcindo Guanabara, diretor d’A Imprensa.
7 Carta a Antônio Noronha Santos, de 18/05/1909, acima citada. Ver Correspondência, I, p. 76.
8 “Rui, em 18 de junho de 1909, escreveu a Miguel Calmon e David Campista, ambos ministros de Afonso Pena, pedindo declararem se era ou não verdade haverem os médicos atribuído o falecimento do presidente da República a ‘traumatismo moral’, conforma afirmara, ao fazer no Senado o necrológio de Afonso Pena. Ambos responderam afirmativamente.” Ver Luís Viana Filho. Ob. cit., p. 378.
9 Luís Viana Filho, A vida de Rui Barbosa. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1949, p. 361.
10 Segundo Antônio Noronha Santos, em carta que escreveu ao livreiro Carlos Ribeiro, e que pertence hoje ao arquivo do escritor Gondin da Fonseca, a chave de Numa e a ninfa é a seguinte: “Dr. Bastos, Pinheiro Machado; General Bentes, Hermes; Xisto, David Campista (?); Fuas Bandeira, João Laje; o Deputado Pieterzoon, ‘um gordo descendente de holandês, mas cuja malícia não tinha nem o peso do seu corpo, nem da sua raça’, Germano Hasslocher; ‘o velho’, Afonso Pena; Senador Carlos Gerpes, parece o Azeredo, mas há traços do mesmo Azeredo no Senador Macieira; Senador Martinho, Joaquim Murtinho; J. F. Brochado, deve ser o J. J. Seabra; o seu secretário, ‘múmia peruana untada de pinturas’ é, fora de qualquer dúvida, o Pelino Guedes; Sarmento Heltz, ‘raposa polar’, o Lauro Müller; D. Florinda Seixas é a professora Daltro, D. Deolinda Daltro, que teve a sua época de notoriedade e ridículo; Benevenuto, sou eu (Benevenuto não fazia versos nem coisa alguma. A sua preocupação era mesmo não fazer nada... e tudo o que se segue); a Sociedade Comemorativa do Falecimento do Almirante Constâncio é em cima da grei florianista”.
11 Numa e a ninfa, p. 172; p. 116; p. 172; p. 180. “Quando o Congresso está aberto, os governos têm medo de agir tão limpamente à moda dos paxás turcos. Como que lhe têm medo; é a sua consciência. Quando, porém, ele está fechado, a fera carniceira não tem mais o chicote do domador à vista e faz o que quer.” “O encerramento do Congresso”, artigo de Lima Barreto, em Careta, Rio de Janeiro, 14/01/1922. Ver Feiras e mafuás, p. 274.
12 Correio da Manhã, Rio de Janeiro, nos de 22 a 30 de setembro de 1909.
13 Discurso pronunciado a 23/09/1909. Anais do Senado Federal, sessões de 1º a 30 de setembro de 1909, v. V, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1910, p. 154-155.
14 Carta a Lima Barreto (inédita, datada de Paris, 05/07/1909). Nessa mesma carta, Santos informa que tomara conhecimento do conflito da “Primavera de Sangue” pelo Courrier du Brésil. Ver Correspondência, I, p. 87.
15 Idem, idem, de 19/07/1909. Ver Correspondência, I, p. 88-89.
16 Um exemplar desse boletim consta hoje do arquivo particular do autor, graças a uma gentileza de Antônio Noronha Santos. O Papão circulou apenas uma vez, trazendo na capa um desenho de Chambelland.
17 Evaristo de Morais, Reminiscências de um rábula criminalista. Rio de Janeiro, Leite Ribeiro, 1922, p. 206.
18 Folha do Dia, Rio de Janeiro, 14/09/1910.
19 Notícia, Rio de Janeiro, 14/09/1910.
20 Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 16/09/1910.
21 O secretário do conselho de sentença foi o Sr. José Borges Ribeiro da Costa Júnior. Os autos encontram-se no arquivo do Tribunal do Júri, primeira vara criminal, maço 287.
22 Evaristo de Morais, Reminiscências de um rábula criminalista. Rio de Janeiro, Leite Ribeiro, 1922, p. 207. Registre-se que o tenente Wanderley, indo novamente a júri, em janeiro de 1911, acabou sendo absolvido.
23 Depoimentos de Antônio Noronha Santos e Mário Galvão.
24 Bagatelas, p. 170. Além do artigo citado, “Os uxoricidas e a sociedade brasileira”, inserto no volume Bagatelas, Lima Barreto publicou outros artigos sobre o assunto, como: “Um jantar no júri”, com o pseudônimo de J. Caminha, na Careta, Rio de Janeiro, 21/08/1915; “O repórter e o júri”, ainda na Careta, de 18/10/1919; “Casos do júri”, publicado em O Estado, Niterói, 25/10/1919, sem falar de outros. Os três artigos citados acham-se, respectivamente, em Coisas do Reino do Jambon, p. 127-129; Vida urbana, p. 105-106 e 190-195.
25 Diário íntimo, p. 172.
26 Numa pequena crônica sobre Bruno Lobo, Lima Barreto deixou escapar mais esta confidência, poucos meses antes de morrer: “Eu mesmo tive ocasião de verificar isso [alusão à inteligência de B. Lobo], quando passei em tua companhia cerca de oito dias no júri, naquele famoso júri e que tu foste presidente e eu fui perseguido por causa dele e tu homenageado”. Refere-se ainda ao júri da “Primavera de Sangue”. “Bilhete”, em Careta, Rio de Janeiro, 17/06/1922 (ver Marginália, p. 81).