Boêmia

O burguês bebe champanha; o herói bebe aguardente.

(Histórias e sonhos, p. 193)

A 11 de agosto de 1911, o Jornal do Commercio (edição da tarde) iniciava a publicação, em folhetins, do Triste fim de Policarpo Quaresma.1 Entregue à vida boêmia, já nessa ocasião, fora num instante de fuga ao burburinho dos cafés e ao tédio da repartição que Lima Barreto escreveu, em menos de três meses, pode-se dizer que de uma arrancada só, o mais bem composto e equilibrando de seus romances.2

Por seu próprio temperamento, seria incapaz de um esforço continuado, lento, meditado, em que pudesse medir com paciência altos e baixos, dosar fria e calculadamente palavras e emoções, o que não seria descabido num antigo estudante de Engenharia. Ao artista impaciente, jamais teria ocorrido aplicar, na elaboração de seus romances, os princípios de matemática de que, desde os bancos da Escola Politécnica, se gabava de bom conhecedor. De resto, o melhor da sua obra está no ímpeto criador, na força da descrição dos pequenos quadros que nos transmitem, a um só tempo, o visível e o apenas pressentido na realidade da vida, no seu prosaísmo e na sua poesia. É a nota da espontaneidade, o flagrante, permitindo, assim, maior perfeição na engenharia dos contos que dos romances.

Aos 30 anos, Lima Barreto atingira o ponto mais alto da sua carreira literária. E produz as suas obras-primas. “A nova Califórnia” é de novembro de 1910. “O homem que sabia javanês”, de abril de 1911. Foi exatamente no intervalo entre esses contos que escreveu o Triste fim de Policarpo Quaresma.3 Trabalhou-o com paixão, entregando-se por inteiro a sua composição, vertiginosamente, como se estivesse em estado de transe. É esta, sem nenhum exagero, a impressão que fica de um exame atento e demorado dos originais, impressão fortalecida pela informação do próprio autor de que escrevera o romance em apenas dois meses e meio. São trezentas e poucas laudas do melhor papel almaço – por sinal, o mesmo papel utilizado no serviço burocrático da Secretaria da Guerra. A estranha grafia de Lima Barreto, dificilmente decifrável, em linhas desiguais, correndo acima das pautas, cobre todo o papel com o desenho bizarro das letras, finas, pequeninas, nervosas. A pena como que tocava de leve o papel de primeira qualidade numa rapidez extraordinária. Quanto mais depressa a mão trêmula ia grafando os caracteres, melhor saía a composição. Parecia dominado por uma força misteriosa, que o impossibilitava de interromper por um dia sequer o mágico processo da elaboração mental, exigindo a comunicação instantânea do pensamento para o papel.4

A sugestão de escrever um romance para ser publicado em folhetins do Jornal do Commercio partira de João Melo, companheiro das rodas boêmias, jornalista que iniciara a sua vida profissional como aprendiz de tipógrafo nas oficinas da Tribuna Liberal, ao tempo em que era chefiada pelo pai de Lima Barreto, nos últimos anos da Monarquia.5

“[...] cheio de dívidas, sem saber como pagá-las, o J. M. aconselhou-me que escrevesse um livro e o levasse para ser publicado no Jornal do Commercio”, anotou o romancista numa página em que também fala da tristeza que ensombra permanentemente a sua vida doméstica – a loucura paterna. É nessa confissão que se pode puxar o fio da meada, que explica, de certo modo, o comportamento do escritor na fase que teria sido a mais fecunda da sua existência, do ponto de vista literário.

“Muitas causas”, dirá então, “influíram para que eu viesse a beber; mas, de todas elas, foi um sentimento ou pressentimento, um medo, sem razão nem explicação, de uma catástrofe doméstica sempre presente. Adivinhava a morte de meu pai e eu sem dinheiro para enterrá-lo; previa moléstias com tratamento caro e eu sem recursos; amedrontava-me com uma demissão e eu sem fortes conhecimentos que me arranjassem colocação condigna com a minha instrução; e eu me aborrecia e procurava distrair-me, ficar na cidade, avançar pela noite adentro; e assim conheci o chopp, o whisky, as noitadas, amanhecendo na casa deste ou daquele”.6

Esse estado de espírito vai agravar-se com a publicação do Isaías Caminha. Em lugar da glória literária, sentiu-se dominado por invencível sentimento de frustração. É que não houve o debate esperado. A crítica não se escandalizara. Uns silenciaram. Outros até elogiaram o volume. Os jornais, de um modo geral, não tomaram conhecimento da estreia do escritor, que criticava acremente por vezes pessoas e hábitos da imprensa. Era decepcionante.

O Correio da Manhã, alvo predileto, não publicou sequer uma linha sobre o livro. Olimpicamente, respondeu com o silêncio à ousadia da sátira. Completaram o cerco os intelectuais caricaturados no romance e que giravam como satélites em torno da figura de Edmundo Bittencourt. Para este, era como se o livro não existisse.

A luta era desigual. Sabia muito bem como se fabricavam as reputações literárias à força de empenhos, concessões, curvaturas.7 Tinha, a respeito, opinião definida: só os hábeis e os espertos conseguiam vencer. O prestígio intelectual não seria nunca conquistado pelo próprio valor, mas a golpes de astúcia e até de charlatanismo.

O caminho estava todo minado. A alegria do primeiro livro desaparecia, diante da grande decepção, que uns dois ou três artigos amáveis não conseguiram remover. Os comentários de café, a sensação que produzira nos meios literários, eram insuficientes. Desejara o debate, e este não veio por falta de combatentes. Os mandarins das letras não desceriam a lutar com ele.

Continuaria a ser o desprezado de sempre, com todas as portas fechadas: sem glória e sem dinheiro, sem posição e sem amor, impotente para vencer a resistência passiva dos donos da literatura, atormentado pela dor da tragédia doméstica.

Esse modo de ver as coisas – sempre pensando no seu próprio caso, com lentes um tanto deformadas da realidade – inspiraria a Lima Barreto – justamente na época do “fracasso” do Isaías Caminha e do “sucesso” de A esfinge – um de seus melhores contos, “O homem que sabia javanês”: história de um mistificador que se torna, por isso mesmo, glória nacional. Castelo, o professor de javanês, era de Canavieiras, e construíra toda a sua reputação como especialista em línguas malaio-polinésias, as quais conhecia apenas da leitura da Grande Encyclopédie. A sátira parece dirigida a Afrânio Peixoto, a quem Lima Barreto sempre considerou um falso erudito e um péssimo escritor. No entanto, Afrânio tinha prestígio. E ele, não. Afrânio subia. E ele não podia subir, porque não o deixavam subir.

Desde a Escola Politécnica, quando a sua revolta estava ainda latente, habituara-se a assistir ao espetáculo de ascensão dos companheiros de geração, dos brancos, dos ricos e bem-nascidos, embora medíocres, enquanto que ele, de origem humilde, pobre e mulato, descia sempre na escala da vida. O símbolo do sucesso fácil estaria, contudo, menos em Afrânio Peixoto que em Miguel Calmon du Pin e Almeida, o Bel-Ami, como lhe chamava quase com ódio, e que se fizera ministro de Estado, com apenas 27 anos de idade.8

Na literatura – na sua literatura militante – encontraria, pois, Lima Barreto certa maneira de tirar desforra, de vingar-se, em suma. Para isso, sem que se desse conta, ia armazenando o seu “stock de observações e de emoções”, tal como aconteceu a Isaías, às quais se juntariam, como veneno ingerido em doses infinitesimais, as mágoas e ressentimentos. “Vinham uma a uma”, escreveu o romancista, ao tratar do seu personagem quase autobiográfico, “invadindo-me a personalidade insidiosamente para saturar-me mais tarde até ao aborrecimento e ao desgosto de viver”.9

“Mais tarde...” Tendo feito esta confissão por volta de 1908, não será demais fixar o ano de 1911 como o início de uma nova fase na vida de Lima Barreto, a fronteira que delimita o período mais fecundo de sua atividade de romancista com os primeiros desregramentos boêmios, saturado desde então pelo “aborrecimento” e o “desgosto de viver”. O episódio, ainda recente, do júri da “Primavera de Sangue” atuara nele como um impacto, destruindo por completo as poucas ilusões que lhe restavam, A viagem precipitada que fez a Juiz de Fora, logo após o julgamento, oferece, nesse sentido, um subsídio valioso. Até então, com 30 anos incompletos, Lima Barreto só saíra do Rio uma única vez, quando fora, adolescente ainda, em companhia do pai, integrando a sua turma da Escola Politécnica, fazer exercícios práticos na cidade de Barbacena.10

Conclui-se, portanto, sem maiores dificuldades, que a viagem de agora, a Juiz de Fora, só podia ser uma fuga. Sentia-se de tal forma oprimido que lhe acudira de súbito a resolução de deixar o Rio, por uns dias que fosse, à procura de refúgio. À notinha, em vez de tomar o seu trem de subúrbio, de regresso a casa, em Todos os Santos, embarcaria no noturno de Belo Horizonte, a caminho de Juiz de Fora, onde sabia vagamente encontrar-se o seu tio, o maestro Carlos Pereira de Carvalho, à frente de uma companhia teatral, um desses “mambembes” que vivem a perambular de cidade em cidade pelo interior do Brasil.

O júri da “Primavera de Sangue” terminara a 17 de setembro. Em 24 do mesmo mês já se encontrava em Juiz de Fora, “desde quarta-feira”, conforme se lê na carta que então escrevera a Antônio Noronha Santos.11 O tio de Lima Barreto dirigia a Companhia Dramática Nazareth, atuando como principais figuras ele próprio, a esposa e uma filha. “[...] passei cerca de dez dias”, escreveu sobre sua viagem a Juiz de Fora, “mergulhado e interessado pelo que se passava em um modesto ‘mambembe’, onde, como maestro, figurava um parente meu, muito de minha estima e consideração. Lá vi ensaiar, marcar, representar uma série de peças, peças que não vêm mais ao cartaz aqui, mas cujo preparo para serem levadas à cena mostrou-me o que a tal sabedoria teatral é e vale. Fui mesmo bilheteiro quando a companhia foi dar espetáculo numa pequena povoação dos arredores de Juiz de Fora”.12

De volta de Juiz de Fora, refeito dos estragos produzidos no seu sistema nervoso pelo impacto da “Primavera de Sangue”, é que escreverá “A nova Califórnia”, “O homem que sabia javanês”, além do Triste fim de Policarpo Quaresma. É bem de ver que, em 1911, já estão prontos os três livros mais importantes de toda a sua obra de ficção: Isaías Caminha, Gonzaga de Sá e Policarpo Quaresma. Destes, apenas o segundo ainda é inédito.

A falta de estímulo e a hostilidade do ambiente, aliados ao forte complexo e a uma série de outros fatores, dos quais não deve ser esquecido o da tragédia doméstica, transformariam o adolescente cheio de sonhos num pobre homem, viciado no álcool, que lhe consome não somente a saúde, como em grande parte lhe sacrifica a carreira de escritor.

A bebida, que era o seu lenitivo, há de matá-lo lentamente. Nos primeiros tempos, logo que entrou para a Secretaria da Guerra, servia-se do chope, da cerveja, do uísque. Agora, porém, o dinheiro rareava. Para atordoar-se e esquecer a amargura, recorria à cachaça. “[...] eu a bebia desbragadamente”, confessa, “a ponto de estar completamente bêbado às nove ou dez horas da noite.”13 De frequentador de cafés e confeitarias, tornar-se-á, com o tempo, um boêmio de botequins, embriagando-se todos os dias, esbodegado e sujo, quase um trapo humano.

Não há de duvidar, pois, que 1911 significa a fronteira de uma vida, a bem dizer normal, para a outra, a de boêmio, por consequência anormal.

Fotografias dessa época documentam um Lima Barreto bem trajado, numa atitude de quem, longe de ser um dândi, procura, pelo menos, apresentar-se com decência. Três são as fotografias conhecidas do período em que se opera a “transformação”.

Numa delas, o escritor aparece sentado, de corpo inteiro. Conquanto a roupa não tenha sido talhada pelo Raunier ou por qualquer outro famoso alfaiate do tempo, o certo é que lá está ele, bem composto, envergando, talvez um pouquinho gauche, o seu terno completo. Completo sim, porque não lhe falta sequer o colete, por sinal indispensável à indumentária naquele tempo.14

Noutra fotografia – a que foi publicada na capa da revista A Estação Teatral –, a cabeça de Lima Barreto conserva um certo ar juvenil, a fronte erguida, os olhos vivos e brilhantes, o queixo arrogantemente levantado. O álcool não deixara ainda nenhum sinal da sua devastação na fisionomia do escritor.15

A terceira fotografia foi tirada entre as duas acimas citadas, por ocasião do júri da “Primavera de Sangue”. O romancista está entre os jurados, de perfil, com a mão direita apoiando o queixo. É de todas a menos nítida, o que a não impede de oferecer ao observador a mesma impressão de um homem que se veste com modéstia, mas asseada e decentemente. Dir-se-á que está no júri, tendo escolhido, para isso, a melhor roupa, o seu terno de missa. Pode ser. Mas a verdade é que, em confronto com a dos demais jurados, a indumentária não o duminui.16

Não quer isso dizer que Lima Barreto, na sua mocidade, tivesse qualquer preocupação de elegância. Será sempre o anti-Petrônio, por seu próprio feitio e temperamento. Muito menos teria preocupações com a indumentária em 1911, início da fase de sua “transformação”. A preocupação, àquele tempo, seria a de acentuar cada vez mais a própria miséria, vestir-se mal, numa espécie de dandismo às avessas, ao mesmo tempo que faz praça em negar a tudo e a todos, em franca disponibilidade política ou estética, assumindo posição que parece a de um aprendiz de filosofia do cinismo.

“[...] visto-me mal, lamentavelmente mal, quase mendicante [...] Não julgo que amo a piedade; não sofro miséria, não, e vivo bem. É um feitio de ser; é a minha pose [...]”17 – escreve num dos artigos d’A Estação Teatral, numa época em que, como vimos, não se apresentava assim tão malvestido. Em outros artigos, publicados na mesma revista e na mesma ocasião, fala da sua “aridez de coração”, declara que não ama “nem à Pátria nem à Família e muito menos à Humanidade”.

E mais:

“[...] não obedeço a teorias de higiene mental, social, moral, estética, de espécie alguma. O que tenho são implicâncias parvas; e é só isso. Implico com três ou quatro sujeitos das letras, com a Câmara, com os diplomatas, com Botafogo e Petrópolis; e não é em nome de teoria alguma, porque não sou republicano, não sou socialista, não sou anarquista, não sou nada; tenho implicâncias. É uma razão muito fraca e subalterna; mas como é a única, não fica bem à minha honestidade de escriba escondê-la.”18 Tudo porém não passa de pose. A atitude de cinismo jamais seria completada – na realidade ficaria só na intenção – porque esbarrava sempre na sua “honestidade de escriba”.

Alguns anos depois, Lima Barreto há de justificar a sua boêmia “por motivos que a própria arte explica nas exigências que faz a certos temperamentos, caracteres e inteligências, quando atraídos por elas”, na mesma oportunidade em que investe contra os “literatos lacaios, cavadores de propinas, gratificações, ajudas de custo, obtidas com lambidos artigos de um proxenetismo torpe, a grandes notabilidades munificentes, à custa do Estado”.19

O grande inadaptado, que vivia a sonhar com a glória literária, desde os bancos da Escola Politécnica, encontrava, afinal, uma forma de evasão. A desgraça doméstica, o complexo da cor, o tédio da repartição, a falta de dinheiro, a mediocridade da vida literária! A boêmia fazia esquecer tudo isso. “Oh! Algumas vezes por aí, uns pândegas e muito álcool! Narcótico!” É o seu heterônimo Augusto Machado quem o diz: “[...] revoltei-me contra a minha fraqueza, contra a minha alma bruxuleante e pulha, que me fazia deter diante das regras do decálogo, diante dos preceitos morais. Eu era um covarde, um escravo; eles, príncipes e reis. Não serei mais assim! [...] Era preciso brigar – briguemos! Escolheram a guerra – tê-la-ão!”.20

Mesmo se o quisesse, não poderia, na verdade, ser um cínico. Daí a transferência que fez dessa atitude, impossível de assumir ele próprio na vida real, para alguns personagens que criou, como o Dr. Bogóloff, tipo de charlatão prodigioso, que desprezava a humanidade e a si mesmo, “não se detendo diante de empecilho moral, senão daquele que fosse castigado pelo Código”.21 Falando de Bogóloff, um crítico observou que seu drama decorria “da consciência da sua incapacidade de adaptação a um mundo hostil e adverso: era impossível viver plenamente a ‘sua’ vida, a vida que ele desejava edificar com as ‘suas’ próprias mãos”.

A criatura se confunde com o criador. Menos que “uma deformação ridícula da sua própria fisionomia”, essa caricatura seria portanto uma “máscara afivelada” ao rosto do autor. “Por baixo da máscara”, conclui o crítico, “percebe-se facilmente que há uma cara de traços regulares, marcados apenas pelo sofrimento e pelo desengano precoces”.22

De fato, existe em Bogóloff muita coisa de Lima Barreto, embora o personagem caricato fosse louro e estrangeiro, pois só assim conseguiria vencer.23 Aprofundando um pouco, porém, na descrição da figura, o romancista se deixa trair pelo memorialista, na contemplação do próprio eu, como acontece frequentemente através da sua obra de ficção:

“Os cruéis acontecimentos que o envolviam não despertavam nele os ardores generosos de sua primeira mocidade, que tanta amargura havia sofrido. Nascera em Cazã, na Rússia, onde seu pai tinha um ‘sebo’, que lhe dava os parcos recursos necessários à subsistência de ambos.

“Aquele contacto com os livros, desde quando o seu nascimento, dera-lhe ‘fumaças’ e a inaptidão do intelectual de origem obscura para o esforço seguido, quando se choca com o meio naturalmente hostil.”24

O aprendizado de cinismo há de se prolongar por algum tempo. Por um momento, Lima Barreto abandona os projetos de romance e resolve dedicar-se à pequena literatura dos folhetins de aventuras e das novelas picarescas. Visaria, com isso, a ganhar dinheiro? É bem possível que semelhante ideia lhe tivesse vindo à cabeça, mas de modo passageiro.25

Comercializando-se, talvez procurasse uma libertação mais de ordem espiritual que material, numa hora de profundo desalento, em face das reações que provocara, ao tentar a grande literatura. Já vimos o que acontecera ao seu livro de estreia. A publicação do Policarpo Quaresma em folhetins, na edição da tarde do Jornal do Commercio, só despertara a atenção de Alcindo Guanabara, e de mais ninguém. E fora justamente para ferir o ponto crucial da dúvida que atormentava a Lima Barreto: a impossibilidade de um escritor viver exclusivamente da pena no Brasil e poder realizar, livre de outras preocupações, uma grande obra literária.26

Assim se explica, ainda que com alguma ligeireza, a incursão do seu escritor nos domínios da literatura folhetinesca. “O Nick Carter dera ao seu editor brasileiro 100 contos em dois anos!”, dissera Lima Barreto a um amigo,27 como quem espera compensação parecida com o herói que concebera a sua inventiva de romancista, desviando-se intencionalmente da rota que havia traçado no início da sua carreira, quando sonhava, entre outras coisas, em introduzir o “negrismo” na literatura nacional.

De acordo com o plano previamente traçado, as Aventuras do Doutor Bogóloff seriam uma série de narrativas humorísticas em torno da vida de um pseudorrevolucionário russo, um espertalhão, que conquista no Brasil uma situação invejável, em parte devido aos golpes de audácia, mas principalmente pela ignorância ou irresponsabilidade dos dirigentes da política. Esses folhetins – sátira aos nossos costumes, mais tarde ampliada no romance Numa e a ninfa – deveriam aparecer semanalmente, com um desenho escandaloso na capa em cores, e oferecido ao público ao preço de 200 réis nas bancas de jornais. Poderia (quem diria o contrário?) ganhar muito dinheiro! Mas os folhetins, ao que se sabe, tiveram a publicação interrompida logo no segundo número.28 O Dr. Bogóloff, apesar da sua simpatia, não tivera forças para conquistar o favor dos leitores, tal como acontecera com Nick Carter ou Sherlock Holmes.

Lima Barreto, porém, não desiste ante o malogro dessa primeira tentativa como escritor de folhetins populares. Pelo contrário. O que parece desejar, agora, é descer ainda mais, mergulhar-se no cinismo e no deboche, acanalhar-se por completo. Trabalhando n’O Riso, revista que explorava o gênero brejeiro, cujo editor lançara as Aventuras do Doutor Bogóloff, publica, concomitantemente com os folhetins humorísticos, dois romances fesceninos: O chamisco e Entra, Senhórr!... Ambos são anunciados por O Riso como o nec plus ultra da literatura realista. O chamisco ou O querido das mulheres seria a história de um conquistador irresistível. Entra, Senhórr!... teria como motivo principal “episódios interessantes, passados na alcova de uma horizontal”.29

São estas; aliás, as únicas indicações que possuímos a respeito desses pobres romances, verdadeiras preciosidades bibliográficas, que jamais tivemos em mãos, além das impressões de leitura de Antônio Noronha Santos, a quem Lima Barreto oferecera, creio que um exemplar do Entra, Senhórr!...30

“É curioso observar”, são impressões que nos foram confiadas por Antônio Noronha Santos, “que os dois romances nada tinham propriamente de imorais. Logo ao primeiro contato, revelam, isso sim, a gaucherie de quem parecia desconhecer qualquer requinte da chamada arte de amar”.31

Notas

1 Publicado em folhetins do Jornal do Commercio (edição da tarde), de 11 de agosto a 19 de outubro de 1911.

2 “O Policarpo Quaresma foi escrito em dois meses e pouco, depois publicado em folhetins do Jornal do Commercio da tarde [...]” (Diário íntimo, p. 181).

3 “A nova Califórnia” traz a data de 10/11/1910. “O homem que sabia javanês” foi publicado pela primeira vez na Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, em 20/04/1911. Triste fim de Policarpo Quaresma foi escrito nos meses de janeiro a março de 1911.

4 Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Examinando os originais, a pedido do autor, o grafólogo Geraldo Cavalcanti notou que a letra de Lima Barreto revelava um escritor de pouca imaginação, mas de grande poder de observação, em constante féerie mental.

5 Ao completar 80 anos, na homenagem que recebeu de toda a imprensa carioca, João Melo conta a história da sua iniciação no jornalismo, num discurso original, falando de si mesmo, mas na terceira pessoa. Começou por aprender os primeiros rudimentos da arte tipográfica na Imprensa Nacional. “No fim da aprendizagem”, continua o patriarca, “ainda sem a agilidade manual necessária, trabalhou umas noites na oficina da Tribuna Liberal, sob a direção do mais letrado dos artistas daquele ofício – o Lima Barreto de que era filho o menino do mesmo nome, mais tarde do grande romancista do Isaías Caminha e Policarpo Quaresma. Às vezes, muito depois, em não raras tertúlias, o escritor elogiava-o, dizendo a outros amigos: ‘Este foi aluno de meu pai’” (Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 25/09/1949).

6 O cemitério dos vivos, p. 47-48.

7 “Os livros nas redações têm a mais desgraçada sorte se não são recomendados e apadrinhados convenientemente. Ao receber-se um, lê-se-lhe o título e o nome do autor. Se é de autor consagrado e da facção do jornal, o crítico apressa-se em repetir aquelas frases vagas, muito bordadas, aqueles elogios em cliché que nada dizem da obra e dos seus intuitos; se é de outro consagrado mas com antipatias da redação, o cliché é outro, elogioso sempre mas não afetuoso nem entusiástico. Há casos em que absolutamente não se diz uma palavra do livro. Acontecia isso com três ou quatro autores”, escreveu Lima Barreto num dos capítulos do Isaías Caminha, quase todo dedicado a esse mecanismo da publicidade dos livros, onde há também a seguinte observação: “Os mais hábeis daqueles que estão de fora... quando premeditam a infame ousadia de publicar, arranjam preliminarmente relações de amizade nos jornais, de modo a obter um bom acolhimento para o seu trabalho. Isso acontece com os de pequeno nascimento, com os que vêm dos estados; mas o autor, que nasceu no Rio, de certa camada, que tenha títulos e empregos, pode estar seguro de que a crítica anônima dos jornais lhe será unânime em elogios e animação” (Isaías Caminha, p. 237-238).

8 Ao assumir a pasta da Agricultura, no governo do presidente Afonso Pena, Miguel Calmon anunciou o seu programa, cujas linhas mestras se resumiam no povoamento do solo, na ligação ferroviária dos grandes centros do país, no problema dos portos, na organização dos serviços contra as secas, conforme observação de Carvalho de Brito, no folheto O civilismo em Minas, Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa, 1949, p. 13.

9 Isaías Caminha, p. 244-245.

10 “Quando a primeira vez, em menino, viajei com meu pai em trem de ferro, para Barbacena...” “Até Mirassol”, artigo de Lima Barreto, na Careta, Rio de Janeiro, 30/04/1921. Ver Marginália, p. 50. Dessa viagem a Barbacena, feita presumivelmente em 1900 ou 1901, o autor possui no seu arquivo o recorte de uma revista não identificada, onde aparece Lima Barreto com um chapelão de palha entre os seus colegas, numa fotografia sob a seguinte legenda: “Passagem da turma de alunos da Escola Politécnica, encarregada da parte planimétrica, pela frente do Hotel Aliança, em Barbacena”.

11 Autores e livros, suplemento d’A Manhã, Rio de Janeiro, ano IV, n. 14, 25/04/1943. Ver Correspondência, I, p. 90.

12 “Uma coisa puxa a outra”, artigo de Lima Barreto, n’A Estação Teatral, Rio de Janeiro, 08/04/1911. Ver Impressões de leitura, p. 264. O maestro Carlos Pereira de Carvalho chegou mesmo a compor partituras de operetas que fizeram sucesso, como O Garganta e Os Huguenotes.

13 O cemitério dos vivos, p. 48.

14 Publicado em “Os arquivos implacáveis”, de João Condé, Letras e artes, suplemento d’A Manhã, Rio de Janeiro, 15/08/1949, p. 9.

15 Publicado em 24/06/1951. “[...] Viram o meu retrato, não foi?”, escreveu Lima Barreto no número seguinte. “Tirei-o de surpresa, senão teria cortado o cabelo e pedido emprestado uma outra pigmentação para que a cousa saísse mais decente.” Ver “Alguns reparos”, artigo de Lima Barreto, em A Estação Teatral, Rio de Janeiro, 15/07/1911. Ver Impressões de leitura, p. 277.

16 Publicado na Careta, Rio de Janeiro, n. 120, 17/09/1910.

17 Ver “Uma coisa puxa a outra”, artigo de Lima Barreto, em A Estação Teatral, Rio de Janeiro, 08/04/1911. Ver Impressões de leitura, p. 263.

18 Ver “Alguns reparos”, artigo de Lima Barreto citado na nota 15. Ver também Impressões de leitura, p. 277-278.

19 “Uma simples nota”, ver Bagatelas, p. 248.

20 Gonzaga de , p. 158.

21 Numa e a ninfa, p. 188.

22 Astrojildo Pereira, Interpretações. Rio de Janeiro, Casa do Estudante do Brasil, 1944, p. 141-142.

23 “Louro, doutor e estrangeiro, ias longe!”, ver Os Bruzundangas, p. 212.

24 Numa e a ninfa, p. 187.

25 É patente o desprendimento do escritor em matéria de dinheiro. Certa vez, discutira com Bastos Tigre, que o acusava de escrever sem remuneração para pequenas revistas. Antônio Noronha Santos assistira ao bate-boca, no qual se teria extremado Lima Barreto, a ponto de considerar absurdo qualquer pagamento a uma página de literatura.

26 “O Dia”, por Pangloss (pseudônimo de Alcindo Guanabara), em A Imprensa, Rio de Janeiro, 20/09/1911.

27 Carta a Antônio Noronha Santos, de 19/09/1912. Ver Correspondência, I, p. 99.

28 Foram publicados dois folhetins: “Fiz-me, então, diretor de Pecuária Nacional” e “Como escapei de ‘salvar’ o Estado dos Carapicus”. Dois outros capítulos inéditos das Aventuras foram incorporados à edição definitiva de Numa e a ninfa: “Dei alguns planos e pintei a batalha de Salamina” e “Fui um momento Sherlock Holmes”. Os quatro capítulos, na coleção das obras de Lima Barreto lançada pela Editora Brasiliense, estão no volume Os Bruzundangas, p. 197-284.

29 O chamisco foi anunciado n’O Riso em 27/06/1912. Entra, Senhórr!... em setembro do mesmo ano, simultaneamente com as Aventuras do Doutor Bogóloff.

30 Ver “Anedotário de Lima Barreto”, artigo de Antônio Noronha Santos, em Diário da Manhã, Niterói, 09/10/1942.

31 Depoimento de Antônio Noronha Santos.