O abismo
O abismo abriu-se a meus pés e peço a Deus que ele jamais me trague, nem mesmo o veja diante aos meus olhos, como o vi por várias vezes [...].
(O cemitério dos vivos, p. 137)
O uso imoderado do álcool não tardaria a se manifestar de modo desastroso na saúde de Lima Barreto. Alimentando-se mal, passando dias inteiros sem comer, a perambular pelos bares e botequins da cidade, cumprindo a via-sacra dos bêbados, ia sucumbindo aos poucos no desregramento da vida boêmia.
As maçãs do rosto, antes rosadas, do adolescente acostumado aos exercícios de remo e natação da Ilha do Governador, tinham adquirido, no homem de trinta e poucos anos, a coloração baça comum aos alcoólatras. Desaparecera por completo o viço da juventude. Era ele, agora, um mulato gordo e vermelhão, tresandando a cachaça.
Apesar da compleição robusta, nunca fora das melhores a saúde do escritor. Em menino, tivera maleita, que se repetiria na idade adulta, por volta dos 30 anos, obrigando-o a licenciar-se por quatro meses da Secretaria da Guerra, para tratamento de saúde. Isso aconteceu em fins de 1910.1
No ano seguinte, está novamente doente, atacado desta vez de reumatismo poliarticular e hipercinese cardíaca, moléstias comuns dos viciados no álcool.2 Mas é claro que, mesmo doente, jamais suprimia a bebida dos seus hábitos, pois dela se servia como único meio capaz de fazê-lo fugir da realidade da vida, esquecendo os sofrimentos que o atormentavam: o pai demente e a repartição.
Curioso boêmio! Lima Barreto desnorteava quase sempre os companheiros de farra. Não raro, desaparecia do grupo e ia beber sozinho, longe de todos, o seu parati. É que sentia necessidade de andar, bebericando aqui, ali, acolá, mais adiante, vencendo enormes distâncias a pé, até mais não poder, tonto de álcool e morto de cansaço.
Caía nas sarjetas e assim se deixava ficar, dormindo a sono solto, como qualquer pobre-diabo das ruas.
De um almoço a Pedro Moacir, político sul-rio-grandense, amigo de Alcides Maia, por ocasião do lançamento do Diário de Notícias, o escritor sumiu, ninguém sabe como, para só reaparecer na manhã seguinte, sujo e com a roupa em frangalhos, na casa de Antônio Noronha Santos. Passara todo o dia e toda a noite andando e bebendo. Para atingir a residência do amigo, que morava, àquele tempo, na Rua Dois de Dezembro, não viera normalmente pela rua, mas por dentro dos quintais.
Em vez de tomar um bonde, como o faria qualquer pacato cidadão, achara mais interessante pular muros de quintais. Vendo-o naquele estado, Santos deu-lhe um terno verde, novo, que trouxera da sua última viagem a Paris. Lima Barreto vestiu-o. Mirou-se por todos os lados. E despediu-se com o seguinte comentário:
– Fica muito melhor em mim do que em você.3
Nem mesmo aos amigos mais chegados, procurava Lima Barreto justificar os súbitos desgarrões das rodas alegres. Durante um carnaval (teria sido em 1906 ou 1907), quando ainda não se entregara de todo à vida boêmia, pela primeira vez com certeza, abandonara os companheiros, no melhor da festa, deixando-os perplexos ante a sua atitude inesperada e sem explicação.
Por sinal que, nessa noite, Lima Barreto, naturalmente pouco expansivo, parecia alegre e comunicativo como nunca, o que não deixou de ser notado por todos. Em meio à folia carnavalesca, fizera-se de repente taciturno. A um deles, comunicou a decisão de ir para casa e logo desapareceu.
Como? Por quê? – perguntavam os amigos espantados, entreolhando-se, como a procurar o causador involuntário do aborrecimento.
Dias depois, Lima Barreto confessaria a Antônio Noronha Santos, que fazia parte do grupo, o motivo da sua retirada intempestiva. É que, acompanhando um rancho que passava, por entre guinchos estridentes de cornetim e ruídos surdos de bombos, todos os que compunham a roda, menos ele, começaram a cantar a música da moda:
Vem cá, mulata!
Não vou lá não.
“Aquilo”, segredou então ao amigo querido, “penetrou-me nos ouvidos como um insulto. Lembrei-me de minha mãe. O convite canalha parecia dirigido a ela [...]”.4
Não era menos estranho o comportamento de Lima Barreto em relação às mulheres. Grande tímido, dominado pelo complexo da cor, jamais conheceu o amor na sua plenitude. Como o Augusto Machado, biógrafo de Gonzaga de Sá, poderia dizer que só havia namorado uma única vez, aos 16 anos.5
Lembram-se da moça de bandós do soneto da adolescência? De lá para cá, pouco se sabe da vida amorosa do escritor, a bem dizer nula, e que então se resume em encontros furtivos de bordéis, dos quais sairia sempre insatisfeito, quando não enojado.6
Houve quem procurasse explicar a boêmia de Lima Barreto com um suposto caso de amor. A moça era branca e a família – “família rica residente em subúrbio distante” – não permitiu que ela se casasse com um mulato.7
A versão carece de fundamento. Não existe, pelo menos, nenhuma prova desse frustrado noivado.
Teve o escritor, na juventude, anseios de amor, o que é humano e natural. Mas sempre os evitou, ou não quis concretizá-los, conforme deixou subentendido em mais de uma confidência, no Diário íntimo.
De resto, ser-lhe-ia difícil, talvez mesmo impossível, encontrar alguém da sua casta que o pudesse compreender. As mulatinhas suburbanas, como a Clara dos Anjos, do romance que escreveria no fim da vida, criaturas de “natureza amorfa”, além de analfabetas, não bastariam para a sensibilidade do mestiço exigente, consciente do seu valor e orgulhoso da sua inteligência.8
Além do mais, sempre foi penoso para Lima Barreto o convívio com as mulheres. A cerimônia com que as tratava revela o constrangimento que sentia, ao contato feminino.
“Sempre fui assim diante das senhoras”, dirá Isaías Caminha, explicando a sua timidez, que era também própria do romancista, “qualquer que seja a sua condição; desde que as veja num ambiente de sala, são todas para mim marquesas e grandes damas”.9
O mesmo acontecia a Lima Barreto. É curioso observar que ele dispensava respeitoso acolhimento, não somente às senhoras honestas, como também às desonestas, nas pândegas em que se metia. Se não chegava ao cúmulo de chama-las de V. Ex.ª, tal como o fizera Isaías Caminha, a elas jamais dirigia por “tu” ou “você”. E ai de quem faltasse com a devida consideração a essa espécie de mulheres, às quais o escritor trataria sempre de “minha senhora”.10
Outra coisa: na roda em que estivesse, Lima Barreto não permitiria jamais que a conversa descambasse para a pornografia. Da sua boca, mesmo nas horas de bebedeira, nunca ninguém ouviu uma palavra de baixo calão.11
De uma crônica de José Nava, retiramos o mais verdadeiro dos flagrantes de Lima Barreto, no auge da sua vida boêmia, através do depoimento de Aldo Borgatti, amigo e camarada do romancista.
“Quando conheci o Lima”, diz Borgatti, “ele já estava branquejando. Não me lembro de pessoa mais descuidada e só o vejo com os sapatos cambotas, palheta suja, roupa azul-marinho muito manchada e duas placas de suor e poeira nas costas. Vinha do Ministério da Guerra à tarde e parava em nossa roda, formada num bar vizinho da Casa Heim, na Rua da Assembleia. Bebericávamos e palestrávamos [...]”.
“Nunca o vi bêbado, mas sempre tomado. Não perdia o propósito. Voltava e continuávamos a bebericar. Depois íamos à Estrada de Ferro, numa verdadeira procissão de Passos pelas tascas do caminho. Na estação ainda emborcávamos uma cervejota e ele nos largava para tomar o trem. Conhecia todo o mundo e aquela gente toda que ia passando o cumprimentava. Às vezes ia embora em companhia de uns tipos parecidíssimos com os da trinca do Cassi [personagem de Clara dos Anjos], malandros e capadócios; outras, com gente humilde, mas correta e boa – guardas, carteiros, mata-mosquitos, pequenos funcionários. Este pessoal está todo de personagem nos seus livros.”
É ainda de Aldo Borgatti o relato de um episódio, ocorrido na Casa Heim, que vale a pena ser citado.
Trata-se de um incidente entre Lima Barreto e um almofadinha que se juntara à roda sem ser chamado. Diante da prosápia do desconhecido, que parecia sentir-se mal, sentado à mesa de um mulato malvestido e enxovalhado, o escritor resolveu castigá-lo, crivando-o de indiretas. Os boêmios riam, gozando o intruso. Este se enfureceu – continua Borgatti – “e atirou um copo na cara do Lima, abrindo um talho na sobrancelha direita, bem em cima do olho. O melado escorreu e houve um rebuliço entre nós, estarrecidos com tanta estupidez. Tudo foi inesperado e rápido. Com o sururu em perspectiva, não faltou um tira para prender o agressor. Mas Lima Barreto deixou-nos mais espantados ainda, explicando ao investigador que escorregara e caíra com o copo, ferindo-se daquele modo. E se retirou, limpando o rosto com um guardanapo, seguido por uns, enquanto outros liquidavam a conta”.12
Apesar de todo o seu desregramento, o romancista não ficava ausente da vida intelectual. Em junho de 1914, vemo-lo participando do movimento que resultou na fundação da Sociedade dos Homens de Letras. Chegou mesmo a redigir um projeto de estatutos, mas na hora da escolha da diretoria ficaria do lado de fora. Durante a assembleia, bem que se batera pela criação do cargo de bibliotecário, na esperança talvez de vir a ser contemplado pelos seus companheiros de letras, mas em vão. Seria mais uma vez esquecido.13
Já o fora antes, em 1911, quando se cogitara de uma Academia dos Novos. Tratava-se de um concurso, promovido pelo A Imprensa, o jornal de Alcindo Guanabara. Lima Barreto fora relacionado entre os trezentos nomes dignos de figurarem na associação, destinada a incentivar os que se iniciavam na literatura. Estes elegeriam os dez membros efetivos da Academia. Cada candidato tinha direito a votar três vezes.
Pois bem. Lima Barreto não conseguiria mais do que cinco votos.
Que se interessou pelo pleito, não há a menor dúvida. No dia da apuração, lá estava ele, atento, como se vê na fotografia publicada na primeira página d’A Imprensa.14
Lima Barreto não bebia pelo simples prazer de beber. O álcool era, para ele, uma forma de evasão, como já foi dito e redito neste livro. Também o romancista repetiria a mesma coisa dezena de vezes, em mais de um passo da sua obra, como um refrão melancólico: o álcool atuava na sua psique como um narcótico. Dele abusara demais.
“[...] sem dinheiro, malvestido, sentindo a catástrofe próxima da minha vida, fui levado às bebidas fortes e, aparentemente baratas, as que embriagam mais depressa. Desci do whisky à genebra, ao gin e, daí, até à cachaça.”15
“Resvalava para a embriaguez inveterada, faltava à repartição semanas e meses. Se não ia ao centro da cidade, bebia pelos arredores da minha casa, desbragadamente. Embriagava-me antes do almoço, depois do almoço, até ao jantar, e deste até a hora de dormir.”16
Pagaria caro não ter cumprido o decálogo da sua primeira mocidade, feito após a leitura da obra de Maudsley, principalmente o mandamento: “Não beber excesso de coisa alguma [...]”.
Estava já à porta da loucura. Bem compreendeu isso, quando escreveu no Diário íntimo, a 13 de agosto de 1914: “Noto que estou mudando de gênio. Hoje tive um pavor burro. Estarei indo para a loucura?”.
Meses antes, ele se queixava da vida numa página lancinante do mesmo diário, da qual citarei os trechos que mais interessam (20/04/1914):
“Hoje, pus-me a ler velhos números do Mercure de France. Lembro-me bem que os lia antes de escrever o meu primeiro livro. Publiquei-o em 1909. Até hoje, nada adiantei. Não tenho editor, não tenho jornais, não tenho nada. O maior desalento me invade. Tenho sinistros pensamentos. Ponho-me a beber; paro. Voltam eles e também o tédio da minha vida doméstica, do meu viver quotidiano, e bebo. Uma bebedeira puxa outra e lá vem a melancolia. Que círculo vicioso! Despeço-me de um por um dos meus sonhos [...].”
“A minha casa me aborrece. O meu pai delira constantemente e o seu delírio tem a ironia dos loucos de Shakespeare [...].”
“O que me aborrece mais na vida é esta secretaria [da Guerra, a repartição em que trabalhava]. Não é pelos companheiros, não é pelos diretores. É pela sua ambiência militar, onde me sinto deslocado e em contradição com a minha consciência.”
“Não posso suportá-la [...].”
“Desgraçado nascimento tive eu! Cheio de aptidões, de boas qualidades, de grandes e poderosos defeitos, vou morrer sem nada ter feito.”
“Seria uma grande vida, se tivesse feito grandes obras; mas nem isso fiz [...].”17
No entanto, será ainda à sua obra de ficção que vamos tirar a confissão do delírio que o levou ao hospício pela primeira vez.
Em O cemitério dos vivos, o romancista não procura dissimular, na figura do protagonista principal, os seus próprios traços pessoais, e, mais do que isso, nem sequer se dá ao trabalho de esconder as circunstâncias que determinariam a ambos, ao criador e à criatura, o mesmo destino. Como Lima Barreto, Vicente Mascarenhas contava então “trinta e poucos anos”, tinha a mesma “fama de bêbado” e era, exatamente como ele, “tolerado na repartição”, que o aborrecia.
A autoconfissão, através de Mascarenhas, coincide perfeitamente com o depoimento do irmão do escritor, que participou do episódio.
O que está dito, na boca de Vicente Mascarenhas, é o seguinte: “Depois de beber consecutivamente durante uma semana, certa noite, amanheci de tal forma gritando e o dia seguinte passei de tal forma cheio de terrores, que o meu sobrinho André, que já era empregado e muito me auxiliava, não teve outro remédio senão pedir à polícia que me levasse para o hospício”.18
Foi o que realmente se passou. Apenas André, o sobrinho, deve ser substituído por Carlindo: irmão do escritor, que já era por sinal funcionário. E funcionário da polícia.19
Feito isso, o trecho acima transcrito de O cemitério dos vivos bem que poderia ser incorporado no Diário íntimo.
Segundo o depoimento de Carlindo, eis o que aconteceu na vida real: após uma semana de esbórnia, o romancista decidira ficar em casa alguns dias, descansando. E, de fato, ficou. Certa noite, porém, estavam sentados à mesa da sala de jantar, quando Lima Barreto teve a primeira alucinação.
– Enxote esse gato daqui – dissera ao irmão, em tom ríspido.
Carlindo procurou acalmá-lo, explicando que não havia gato algum em casa.
– Está debaixo da mesa. É um gato enorme e repelente. Enxote esse bicho daqui, que eu não gosto de gato – insistia, cada vez mais nervoso.
Demonstrando grande irritação, recolheu-se aos aposentos, que utilizava simultaneamente como quarto de dormir, biblioteca e gabinete de trabalho. Apagou depois a luz, e a casa caiu no silêncio. Todos foram dormir. Mas Lima Barreto, deitado na cama, continuava de olhos abertos para a escuridão.
Dentro em pouco, recomeçariam as visões. Não era mais o gato, enorme e repelente. Uma turma de vagabundos preparava-se para invadir o quarto, arrombando a parede que dava para a rua.
Pôs-se a gritar, como um desesperado. Acudiram-no os irmãos. O escritor estava de pé, na cama, com os olhos fora das órbitas, gritando sempre.
– Que há, Afonso?
– Você não está vendo? – respondia ele, na alucinação. – Eles arrombam a parede, assaltam a casa e vocês ficam aí de braços cruzados...
– Mas, Afonso, não há nada disso. Está tudo quieto, direito...
– Vocês não veem? Vocês não ouvem? – continuava, mais desvairado ainda. – Eles estão lá fora.
Calava-se, em seguida. E, depois, como se estivesse ouvindo realmente alguma coisa:
– Estão fazendo uma serenata. Tocam violões. Cantam modinhas...
Ria nervosamente. E, voltando a falar, como num transporte:
– Deixem que eles entrem. Abram a porta. Deixem entrar a rapaziada...
Na manhã seguinte, veio ver o doente o médico da família, Dr. Braule Pinto, que diagnosticou alucinações alcoólicas. Coisa passageira. Sem maior importância.
Mas o delírio não cessou. Parecia mesmo não ter fim. O romancista não podia ficar na mesma casa que o pai insano, cuja demência ameaçava agravar-se com o espetáculo do filho, gritando, gesticulando, quebrando e atirando objetos contra paredes imaginárias, arrombadas por seresteiros-fantasmas.
Reunidos em conselho de família, os irmãos resolveram transportá-lo para a casa de um tio, Bernardino Pereira de Carvalho, em Guaratiba, onde Lima Barreto passaria o tempo necessário para a cura.
A providência, entretanto, não surtiu o resultado esperado.
Em Guaratiba, o estado do doente agravou-se. Os fantasmas continuaram a persegui-lo, até que um dia o delírio chegou ao auge. Os mesmos fantasmas, ou talvez outros, ressurgiram, tendo à frente o tenente Serra Pulquério. Conhecia-o de vista. Sabia-o da polícia do presidente da República. Pulquério tinha ido prendê-lo. O romancista fora denunciado como anarquista. Refugiara-se em Guaratiba para escrever panfletos, atacando o marechal Hermes. Que fez então Lima Barreto? Reagiu à hipotética prisão, quebrou vidraças, virou mesas e cadeiras, lutando com os fantásticos Serras Pulquérios e agentes que o a acompanhavam.
Foi por fim manietado, entregue à polícia do lugar, que o conduziu num carro-forte até o hospício.20
Servimo-nos até aqui do depoimento de Carlindo Lima Barreto e das anotações constantes do Livro de Observações do Hospital Nacional de Alienados.
O escritor não perdoaria jamais ao irmão o tê-lo recolhido ao hospício pela mão da polícia, como indigente. Nem esqueceria a viagem tenebrosa dentro do carro-forte de Guaratiba à Praia Vermelha, dois pontos extremos da cidade.
Ao deixar o hospício, como que esvazia a alma de ressentimentos acumulada, no conto que escreveu dias depois.21
Intitulou-o “Como o ‘homem’ chegou”. É a história de um louco inofensivo – o coitado “tinha a mania da Astronomia e abandonara, não de todo, mas quase totalmente, a terra pelo céu inacessível”.
Esse pobre homem, que vivia com o pai velho, no seu pequeno observatório, inteiramente dedicado às estrelas, procurando localizar Aldebarã no céu distante, acaba sendo vítima de “parentes oficiosos e outros longínquos aderentes”, que entenderam de interná-lo num hospital. Queriam curá-lo, “como se se curassem assomos d’alma e anseios de pensamentos”.
Fernando – era este o nome do inofensivo maluco – foi assim violentamente arrebatado do meio em que vivia, um lugarejo próximo a Manaus, e transportado num carro-forte até o Rio de Janeiro.
A viagem demorou um tempo enorme. Preso na “masmorra ambulante”, “blindada, chapeada, couraçada”, em suma, “um requinte de potentado asiático”, o desgraçado ali ficou sem ar e sem comida, batendo com a cabeça, os braços, as pernas, todo o corpo de encontro às ferragens, aos trambolhões do veículo.
No meio da viagem, os urubus começaram a rondar a carruagem sinistra. Mas os condutores não deram pela coisa. Tinham que cumprir o mandado, e nada mais. Foram tocando, até que chegaram ao Rio de Janeiro. E aí termina o conto macabro.
“Aos poucos os urubus se despediram; e, no fim de quatro anos, o carrião entrou pelo Rio adentro, a roncar pelas calçadas, chocalhando duramente as ferragens, com o seu manco e compassivo burro a manquejar-lhe à sirga.
“Logo que foi chegado, um hábil serralheiro veio abri-lo, pois a fechadura desarranjara-se devido aos trancos e às intempéries da viagem, e desobedecia à chave competente. Sili [o comissário de polícia] determinou que os médicos examinassem o doente, exame que, mergulhados numa atmosfera de desinfetantes, foi feito no necrotério público.”22
Na primeira vez que foi internado no hospício, Lima Barreto ali ficou de 18 de agosto a 13 de outubro de 1914.23 Quase dois meses! Recolhido ao Pavilhão de Observações, onde ficou dez dias, foi depois encaminhado à Seção Calmeil.
No Pavilhão, vestiram-no com o uniforme da casa, uma roupa que só dava mesmo para cobrir-lhe a nudez. Quando o delírio acalmou, logo no dia seguinte, o enfermeiro deu ao escritor um balde e obrigou-o a lavar a varanda e o banheiro, o que fez na vista de doentes, empregados e médicos.
No banheiro, de portas abertas, todos estavam nus.
“[...] eu tive muito pudor”, diz Lima Barreto, ao falar do seu primeiro banho de ducha. “Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoiévski, na Casa dos Mortos. Quando baldeei, chorei; mas lembrei de Cervantes, do próprio Dostoiévski, que pior deviam ter sofrido em Argel e na Sibéria.”
Na hora da derrota, da suprema humilhação, era na literatura que Lima Barreto pensava. Contemplando aquele espetáculo de miséria física e intelectual, em que os homens se rebaixavam à condição de verdadeiros animais, como o náufrago que não perdeu ainda de todo a esperança, ele pedia:
“Ah! A Literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela.”24
Notas
1 O parecer da junta médica, em 03/11/1910, constante do Arquivo do Ministério da Guerra, diz o seguinte: “Impaludismo Curável, precisando três meses para o tratamento”.
2 Eis o parecer, datado de 20/11/1911, que se encontra no Arquivo do Ministério da Guerra: “Reumatismo poliarticular. Hipercinese cardíaca. Curável, precisando noventa dias de tratamento”.
3 Depoimento de Antônio Noronha Santos. O episódio é de 1910.
4 Em artigo, publicado na Floreal (n. 1, de 25/10/1907, p. 32), Lima Barreto fala na “hediondez do Vem cá, mulata”.
5 Gonzaga de Sá, p. 112.
6 Falando da sua mocidade, “órfã de amor, de carinho de mulher”, anota o escritor, nas suas confidências, a visita que fez à amante de um amigo, visita aliás inocente. “Tenho vinte e seis anos”, disse, “e até hoje, ainda não me encontrei com uma mulher de qualquer espécie de maneira tão íntima, de maneira tão perfeitamente a sós; mesmo quando a cerveja, a infame cerveja, me embriaga e me faz procurar fêmeas, é um encontro instantâneo, rápido, de que saio perfeitamente aborrecido e com a bebedeira diminuída pelo abatimento” (Diário íntimo, p. 126).
7 Ver a reportagem de Raimundo Silva, “O anedotário de Lima Barreto”, em Vamos Ler!, Rio de Janeiro, 18/07/1940. A versão foi contestada por Nicolau Ciancio, no artigo “A verdade sobre Lima Barreto”, publicado na mesma revista, a 29/08/1940.
8 Esta é a versão que nos dá a irmã do escritor, D. Evangelina, do celibatarismo de Lima Barreto.
9 Isaías Caminha, p. 99. O mesmo retraimento se observa em Vicente Mascarenhas, personagem principal de O cemitério dos vivos.
10 Depoimento de Antônio Noronha Santos. Não se tome por irônico semelhante tratamento. Numa carta, dirigida ao mesmo Santos, Lima Barreto dá mostras do encabulamento em que ficou diante de uma dessas mulheres, relatando o seguinte episódio, ocorrido no High Life: “Estávamos eu, o Guima, o Pausílipo e o Quakebecker e dois mineiros, um coronel político e um negociante de gêneros do país. Este pagou, mas porque tirou no jogo o importe da conta. Passaram pela nossa mesa duas francesas e, no fim da noite, a Marieta Bicicleta. Tu a conheces? Eu não a conhecia e lá falei em bicicleta. Foi uma gaffe, e passou. Saí doido pela minha cama familiar”. Carta datada de 27/07/1908, publicada em Autores e livros, suplemento literário de A Manhã, Rio de Janeiro, 25/05/1943. Ver Correspondência, I, p. 65.
11 Depoimentos de Antônio Noronha Santos, Mário Tibúrcio Gomes Carneiro, Mário Galvão e outros. Depoimentos que conferem com a própria confissão feita pelo escritor no Diário íntimo: “Hoje, 7 de março de 1917, estive na Garnier, como ontem, como anteontem. Vou agora lá sempre rondar. Troquei palavras com este, com aquele, e cada vez mais me capacito mais que eles não têm nenhum ideal de Arte. São muito inteligentes, escrevem e falam como Rui de Pina, mas ideal em Arte não têm nenhum. Não me entendem ao certo e procuram nos meus livros bandalheiras, apelos sexuais, cousa que nunca foi da minha tenção procurar ou esconder. Chamam-me de pudico. Ora, bolas!” (Diário íntimo, p. 187).
12 “Recordações do escritor Afonso Henriques”, artigo de José Nava, em Folha de Minas, Belo Horizonte, 12/06/1949.
13 Em carta ao redator, José do Patrocínio Filho declara que os estatutos da Sociedade lhe haviam sido enviados pelo “eminente beletrista Lima Barreto” (Correio da Noite, Rio de Janeiro, 18/06/1914). Na notícia sobre a eleição, há o seguinte: “[...] O consócio Lima Barreto, durante a apuração, por várias vezes se pronunciou pela criação do cargo de bibliotecário na diretoria”. Até isso lhe negaram. A primeira diretoria da Sociedade dos Homens das Letras ficou assim constituída: Oscar Lopes, presidente efetivo; Olavo Bilac, presidente honorário; Sebastião Sampaio, vice-presidente; Sarandi Raposo, primeiro secretário; Mateus de Albuquerque, segundo secretário; Bastos Tigre, tesoureiro. Era difícil vencer os mandarins... Correio da Noite, Rio de Janeiro, 08/07/1914.
14 A Imprensa, Rio de Janeiro, 12/08/1911. A Academia dos Novos não foi para a frente. Houve protestos contra o resultado do concurso. E tudo acabou num ridículo duelo a espada entre o crítico literário d’A Imprensa, José do Patrocínio Filho, com um dos candidatos gorados, Ferreira de Vasconcelos.
15 O cemitério dos vivos, p. 175.
16 O cemitério dos vivos, p. 50.
17 Diário íntimo, p. 171-172.
18 O cemitério dos vivos, p. 176.
19 Esses acessos se reproduziram algumas vezes. Segundo Carlindo, houve noite em que o irmão pulava a janela, e ia bater às portas dos botequins. Carlindo de Lima Barreto fora colocado na polícia, por influência de Félix Pacheco, a pedido do escritor.
20 Depoimento de Carlindo Lima Barreto. O episódio da Serra Pulquério foi tirado do Livro de Observações Clínicas do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil, segundo relato do próprio doente. “Além dessa primeira vez que estive no hospício”, escreveu Lima Barreto, “fui atingido por crise idêntica, em Ouro Fino, e levado para a Santa Casa de lá, em 1916 [...]” (O cemitério dos vivos, p. 34). Passara o romancista cerca de um mês no Núcleo Colonial Inconfidentes, do Ministério da Agricultura, a convite de seu amigo Emílio Alvim. A estação de repouso fora interrompida com a crise. Lima Barreto, tomado de pavor, trancara-se num quarto, gritando que o general Joaquim Inácio de Castro o tinha vindo prender, por causa das suas atividades anarquistas. “Lá vem ele”, dizia. “Lá vem ele me prender! Vem com um pelotão!” Depoimento de Emílio Alvim, em conversa com o autor.
21 Datado de 18/10/1914. “Como o ‘homem’ chegou”, em Clara dos Anjos, p. 273-292.
22 Clara dos Anjos, p. 273-292.
23 Diário íntimo, p. 172.
24 O cemitério dos vivos, p. 35. Antônio Noronha Santos visitou o amigo dias depois de internado. Encontrou-o perfeitamente bem, conversando com naturalidade, “tão bom como qualquer de nós [...]”.