Amplius!
Queimei os meus navios; deixei tudo, tudo, por essas coisas de letras.
(Feiras e mafuás, p. 294)
Deixando o hospício, depois de uma temporada de dois meses, Lima Barreto retornaria à sua casa suburbana, que era também um hospício, mas em miniatura, todavia mais triste e sombrio, para ele, que o velho e solene casarão da Praia da Saudade.
A loucura era, para o escritor, um espetáculo familiar. Desde menino, habituara-se à convivência com essa espécie de doentes, até que, na adolescência, fora tocado, ele mesmo, pelo aguilhão da desgraça, quando o pai, antigo enfermeiro de loucos, “adoeceu sem remédio”.1, XI
João Henriques passava dias inteiros na sua cadeira de balanço. Sem falar, nem comer. Sem se mexer sequer, como se fosse um boneco. E só deixava a imobilidade e o mutismo, a que se entregava, para o delírio, quando, transido de pavor, abria a boca no mundo, gritando diante de inimigos inexistentes.
Tão cedo, o romancista não haveria de comparecer à repartição. Colegas seus, tendo à frente o próprio diretor do Expediente da Secretaria da Guerra, o bondoso Prudêncio Milanês,2 arranjariam as coisas de modo que permitissem a Lima Barreto continuar ausente do serviço burocrático, sem prejuízo dos magros vencimentos que recebia como terceiro oficial.
Pouco depois, haveria de regularizar a situação, entrando em nova licença, por mais três meses, para tratamento de saúde. Examinando-o, os médicos repetiriam o diagnóstico feito há pouco no Hospital Nacional de Alienados: neurastenia.3
Tivera alta a 13 de outubro de 1914. Durante o resto do mês, ficaria preso a casa, refugiado voluntariamente no quarto, trabalhando.
Retomando o tema de um conto publicado três anos antes,4 aproveitando na quase totalidade os capítulos das Aventuras do Doutor Bogóloff, o certo é que Lima Barreto escreveu Numa e a ninfa em apenas vinte e cinco dias, conforme deixou consignado no Diário íntimo, sem deixar de registrar esse detalhe: “Não copiei nem recopiei sequer um capítulo”.5
Numa e a ninfa, que o próprio autor chamou “romance da vida contemporânea”, tem sido mal julgado.6 Nele há, porém, não só a intriga quase anedótica. Lima Barreto faz desfilar, à margem do romance, juntamente com a respectiva coorte de bajuladores, uma porção de caricaturas de figurões da política, dos quais a maioria caiu em completo e merecido esquecimento. Como pessoas, é bem de ver, mas não como personagens, que assim continuam vivendo.
Há, por cima, páginas vigorosas, como a da evocação sentimental da Cidade Nova, ponto de partida da zona suburbana, ou a engraçadíssima descrição da passeata dos índios tupiniquins em plena avenida.7
Em todo o livro, a figura mais interessante é do Dr. Bogóloff, o simpático charlatão, através do qual o escritor faz a pregação das suas ideias libertárias.
Preso ao compromisso de funcionário do Estado, não se sentia ainda livre para dizer claramente o que pensava da sociedade e dos homens que a dirigiam. É evidente essa preocupação em ocultar-se nos personagens, publicando nos jornais artigos como se fossem da autoria de seus próprios personagens.
Não se tome semelhante atitude por covardia. Antes a assumia por um sentimento talvez exagerado (e tudo nele tendia mesmo para o exagero) de ética funcional. Se aceitava a tutela do Estado, como poderia aparecer de público negando o Estado?
Esse raciocínio, que a muitos pode parecer extravagante, levaria Lima Barreto a colocar a meia-máscara de Isaías Caminha e de Bogóloff,8 em numerosas colaborações, estampadas na hoje chamada imprensa alternativa, antes da sua aposentadoria do Ministério da Guerra. O disfarce de nada adiantava. Para o escritor, devia valer apenas como uma satisfação de ordem moral.
Há, além disso, um ponto relevante a considerar. Lima Barreto nunca foi, nem seria nunca, um revolucionário militante. Mas é fora de dúvida que sempre alimentou ideias, princípios e sentimentos anarquistas. Era, como se usa dizer, um simpatizante. Assim se intitulava, pelo menos, escrevendo na Voz do Trabalhador, órgão de reinvindicações proletárias, com o pseudônimo de Isaías Caminha, reflexões como as que se seguem:
“Teimam [...] os jornais [burgueses] em encontrar nessa questão da reforma social uma simples questão de salário. É uma teima que lhes fica bem, mas, é preciso que se lhes diga, não é das mais dignas nem das mais brilhantes.
“Há, em tal questão, mais uma questão de dignidade humana, de direito que têm todos a encontrar na terra felicidade e satisfação, do que mesmo desejo de um maior ou menor ganho.
“O que não é justo, é que muito poucos possam encontrar na vida mais que o supérfluo e alguns mais, unicamente o necessário.” E mais adiante: “Os anarquistas falam da humanidade para a humanidade, do gênero humano para o gênero humano, e não em nome de pequenas competências de personalidades políticas; e se há muitos que o são por ignorância ou ‘snobismo’ consoante o dizer do jornalista conservador, mesmo assim merecem simpatias dos desinteressados, porque não usam daquelas ignorâncias nem daqueles ‘snobismos’ que dão gordas sinecuras na política e sucessos sentimentais nos salões burgueses”.9
Longe de ser um grande livro, Numa e a ninfa serve entretanto como ponto de referência na carreira literária de Lima Barreto. Nesse novo roman à clef, acentuam-se os pendores do panfletário, cuja atuação será, doravante, permanente e ativa na imprensa. Com Numa e a ninfa, inicia-se de fato uma nova fase da vida do escritor, a do articulista, tornando-se, pela sua constante vigilância, como bem acentuou um crítico de nossos dias, “o secretário da sociedade da época em que viveu”.10
O lançamento espetacular do romance, como folhetim sensacionalista de um jornal da tarde, mostra que o funcionário já não possui as mesmas reservas de antigamente. Os figurões da política, que tomou para personagens, são apresentados ao público em caricaturas de Seth, no alto da primeira página d’A Noite.
O escritor que, na primeira juventude, arremetera contra os mandarins das letras e do jornalismo, enfrenta, agora, os homens todo-poderosos da política, que mandavam e desmandavam no Brasil. Ridicularizando-os. Apontando-os ao escárnio do povo.11
Lima Barreto seria o primeiro a reconhecer os defeitos de Numa e a ninfa, cuja importância está em ser um grito de libertação. Romance de encomenda, escrito para ganhar dinheiro, não representaria, de modo nenhum, o ideal estético de quem formara a sua personalidade nas leituras de Taine e Brunetière, de Guyau e Tolstói, mestres de uma juventude cheia de angústia e sofrimento.
Enquanto A Noite ia publicando os folhetins escandalosos de um romance político, a única preocupação de Lima Barreto era a de encontrar editor para o Triste fim de Policarpo Quaresma. Este, sim! Era um livro que prezava, e muito, pois fora escrito apenas com o cuidado de fazer obra de arte, sem a ideia fixa do make money.
No entanto, a procura foi em vão, segundo confessa o romancista no Diário íntimo. Daí a decisão de custear, ele próprio, a edição do romance.
“[...] nunca encontrei quem o quisesse editar em livro”, diz ele, falando do Policarpo Quaresma. “Em fins de 1915, devido a circunstâncias e motivos obscuros, cismei em publicá-lo. Tomei dinheiro daqui e dali, inclusive do Santos [Antônio Noronha Santos], que me emprestou trezentos mil-réis e o Benedito imprimiu-o.”12
Esse Benedito – Benedito de Sousa, o “China” –, compadre de Lima Barreto, era dono de uma tipografia na Rua do Carmo. Para as despesas da edição, o romancista tiraria dinheiro emprestado a dois sirgueiros, fornecedores do Ministério da Guerra, pagando juros bastante altos, para ser descontado na folha dos vencimentos. Quanto pode o amor à literatura!
Esses empréstimos constituíam, aliás, prática comum entre funcionários malremunerados, que se serviam de agiotas sem escrúpulos para sair de dificuldades financeiras.13
Assim, o Policarpo Quaresma não tardou em aparecer nas livrarias: uma pobre brochura, em papel ordinário, reunindo num só volume o romance e alguns dos melhores contos do escritor, inclusive “O homem que sabia javanês” e “A nova Califórnia”.14
Desta feita, o acolhimento da imprensa será bem diverso do que fora dispensado, cinco anos antes, ao livro de estreia. Os jornais, agora, festejarão o romancista, que passa a ser considerado por muitos como o legítimo sucessor da glória de Machado de Assis.
É bem verdade que nem todas as portas estão abertas. A do Correio da Manhã, por exemplo. Lá é proibido escrever sequer o nome de Lima Barreto. Podia ser um gênio! Podia publicar o maior romance, o mais belo livro de literatura universal! Seria sempre ignorado.15
Isso, porém, não impedia que o Jornal do Commercio, O País, a Gazeta de Notícias, A Notícia, A Noite, A Época, e outros grandes jornais abrissem as suas colunas, anunciando, elogiando, discutindo o romance e o romancista.
Na véspera do aparecimento do Policarpo Quaresma, A Época publica na primeira página uma entrevista com o autor, na qual Lima Barreto antecipa as linhas gerais do artigo, que escreverá para esse mesmo jornal, meses depois, respondendo a algumas críticas, em defesa da sua literatura.
“Desde o meu Isaías Caminha”, afirmou ao repórter, “que só trato de obedecer à regra do meu Taine: a obra de arte tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. É este o meu escopo. Vim para a literatura com todo o desinteresse e com toda a coragem. As letras são o fim da minha vida. Eu não peço delas senão aquilo que elas me podem dar: glória!”. Faz, nesta altura, uma galhofa, talvez para disfarçar a solenidade das afirmações: “Eu sou afilhado de N. S. da Glória. Não quero ser deputado, não quero ser senador, não quero ser mais nada, senão literato”.
Era impossível conservar até o fim o tom convencional, que impunha o contato, mesmo cordial, com um camarada da imprensa. Entrevista é sempre entrevista. Lima Barreto não era, porém, homem de meias-medidas. Não se faz de modesto. Fala sem se preocupar com o julgamento dos outros. Sem nenhuma censura. Naturalmente.
“Não peço às letras conquistas fáceis, não lhes peço gloríolas, peço-lhes coisa sólida e duradoura. E posso falar de cadeira, porque se eu quisesse ter essas histórias, as teria de sobra. Eu abandonei tudo por elas; e a minha esperança é que elas me vão dar muita coisa. É o que me faz viver mergulhado nos meus desgostos, nas minhas mágoas, nos meus arrependimentos [...].”16
Era sincero. No Diário íntimo, Lima Barreto anotava, com alegria, as primeiras impressões dos críticos.
“Meu livro, o Policarpo, saiu há quase um mês. Só um jornal falou sobre ele três vezes (de sobra). Em uma delas, Fábio Luz assinou um artigo bem agradável. Ele saiu nas vésperas do carnaval. Ninguém pensava em outra coisa. Passou-se o carnaval e Portugal teve a cisma de provocar guerra com a Alemanha. As folhas não se importavam com outra coisa senão com o gesto comicamente davidinesco de Portugal. Enchiam colunas com notícias como esta: ‘A esquadra portuguesa foi mobilizada. Acham-se em pé de combate o couraçado Vasco da Gama, o cruzador Adamastor, a corveta Dona Maria da Glória, a nau Catarineta, a caravela Nossa Senhora das Dores, o brigue Voador e o bergantim Relâmpago’. E não têm tempo de falar no meu livro, os jornais, estes jornais do Rio de Janeiro.” Logo depois, o queixoso emenda a mão, lembrando os artigos de Oliveira Lima e Afonso Celso, “críticos generosos”, diz ele, por o aproximarem, num assomo de admiração, a Cervantes, vendo na figura de Policarpo Quaresma nada mais nada menos que a encarnação brasileira de D. Quixote de la Mancha.17
Os elogios não param aí. Um verdadeiro coro de louvores cerca o aparecimento do livro.
Vítor Viana, no Jornal do Commercio, compara o autor aos romancistas ingleses e ao nosso Machado de Assis.18
Jackson de Figueiredo acha pouco. No seu entender, Lima Barreto supera ao criador de Dom Casmurro, por ser mais humano e mais verdadeiro. “Ele não se limita”, escreve o crítico, completando o pensamento, “a mostrar todos os fundos da cena, o que vai pelos bastidores da vida; toma partido, assinala os atores que falam a linguagem da verdade, mostra o que há de falso, de mentiroso na linguagem dos outros”.19
Houve, porém, quem fizesse restrições, como Osório Duque Estrada, espécie de polícia da gramática, que não pôde deixar de reconhecer, apesar da má vontade, na “prosa bárbara” do romancista, “um trabalho de merecimento indiscutível de verdadeiro talento”.
Não foram apenas os deslizes de sintaxe e estilo (“graves defeitos e senões de forma”) que desagradaram ao crítico. O retrato cruel de Floriano Peixoto – verdadeira obra-prima – certamente não o deixaria menos estarrecido que os erros gramaticais. “É assim que se envenena a alma da juventude”, resmungou o ranheta Duque Estrada.
Não só o estilo – eis o ponto essencial – feria o convencionalismo literário da época, impregnada de uma falsa concepção estética, da qual nem os mais libertos, como um Graça Aranha, nem os regionalistas, como um Simões Lopes Neto ou um Valdomiro Silveira, conseguiam se desprender. A maneira de ver e de sentir as coisas talvez chocasse mais que os erros de concordância.20
Tudo era postiço, falso, sem nada de verdadeiro, sem nenhuma grandeza. “A nossa emotividade literária”, dirá pela voz de Gonzaga de Sá, “só se interessa pelos populares do sertão, unicamente porque são pitorescos e talvez não se possa verificar a verdade de suas criações. No mais, é uma continuação do exame de português, uma retórica mais difícil a se desenvolver por este tema sempre o mesmo: Dona Dulce, moça de Botafogo em Petrópolis, que se casa com o doutor Frederico. O comendador seu pai não quer, porque o tal Dr. Frederico, apesar de doutor, não tem emprego. Dulce vai à superiora do colégio das irmãs. Esta escreve à mulher do ministro, antiga aluna do colégio, que arranja um emprego para o rapaz. Está acabada a história. É preciso não esquecer que Frederico é moço pobre, isto é, o pai tem dinheiro, fazenda ou engenho, mas não pode dar uma mesada grande. Está aí o grande drama de amor em nossas letras, e o tema de seu ciclo literário”.21
Ora, Lima Barreto havia decidido romper com o figurino dos donos da literatura. Era diferente. O seu estilo simples, direto e objetivo nada tem a ver com a pompa, o floreio, o brilho da retórica usual. É ele o anticonvencional. É o antiacadêmico. E ainda mais do que isso: é o revolucionário.
As imperfeições do estilo – melhor diria, os pequenos erros de gramática – são frequentemente lembrados pelos críticos, que examinam a obra de Lima Barreto. O tom caricatural com que o romancista retrata os seus personagens tem sido o leitmotiv de outras tantas restrições, mesmo por parte dos que o colocam no mesmo plano, ou quase no mesmo plano, de Machado de Assis. Mas a verdade é que não houve ainda quem estudasse o seu estilo em função não somente do drama íntimo, que o perseguiu desde a adolescência, dos seus complexos de cor e de pobreza, como também da filosofia estética, que foi uma constante em toda a sua carreira.
As ideias contidas no artigo de apresentação da Floreal – a pequena revista que publicou os primeiros capítulos do Recordações do escrivão Isaías Caminha – são as mesmas do artigo em que ele responde às críticas que se escreveram sobre o Policarpo Quaresma, logo após o lançamento do livro. Nesse artigo, publicado na A Época, sob o título “Amplius!”, Lima Barreto ratifica todas as suas ideias sobre arte literária, mostrando que os anos só fizeram amadurecer os pontos de vista da mocidade.
“Parece-me”, escreve em 1916, com o mesmo espírito de 1907, “que o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm de comum e dependente entre si.
“A literatura do nosso tempo vem sendo isso nas suas maiores manifestações e possa ela realizar, pela virtude da forma, não mais a tal beleza perfeita da falecida Grécia, que já foi realizada; não mais a exaltação do amor que nunca esteve a perecer; mas a comunhão dos homens de todas as raças e classes, fazendo que todos se compreendam, na infinita dor de serem homens, e se entendam sob o açoite da vida, para maior glória e perfeição da humanidade.”
E conclui:
“Não desejamos mais uma literatura contemplativa, o que raramente ela foi; não é mais uma literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava, já se evolou com a morte dos que os adoravam.”22
As alusões ao “helenismo” têm endereço certo. São dirigidas a Coelho Neto, um dos cardeais do academismo, que então se encontrava no pináculo da sua carreira. Imbuído de uma tal estética literária, Lima Barreto não vacilaria em atacá-lo:
“O Senhor Coelho Neto é o sujeito mais nefasto que tem aparecido em nosso meio intelectual.
“Sem visão da nossa vida, sem simpatia por ela, sem vigor de estudos, sem um critério filosófico ou social seguro, o Senhor Neto transformou toda a arte de escrever em pura chinoiserie de estilo e fraseado.”23
Literatura não era escrever bonito. Não era instrumento de prazer para os ricos. Não era, em suma, o “sorriso da sociedade”, como a definirá mais tarde Afrânio Peixoto. Assim como se rebelava contra essa deturpação da missão do escritor, não podia ele admitir a literatura contemplativa, a literatura plástica, a literatura apenas pela literatura. Estaria pensando também em Machado de Assis?
É neste ponto que Machado de Assis e Lima Barreto se separam como dois polos. São duas mentalidades, duas concepções em luta. Um fazia a literatura pela literatura, ao passo que o outro desejava algo mais do que isso. São tão diferentes um do outro como Apolo o era de Dioniso. Machado de Assis teve mais tempo para se realizar. Viveu perto dos 70 anos. Lima Barreto desaparecia aos 41, idade em que Machado começava a atingir o caminho da perfeição, com a série dos grandes romances, iniciada com o Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Lima Barreto, de resto, não gostava que o comparassem a Machado de Assis, exatamente porque “Machado escrevia com medo do Castilho e escondendo o que sentia, para não se rebaixar”. Ele, ao contrário, podia dizer: “não tenho medo da palmatória do Feliciano e escrevo com muito temor de não dizer tudo o que quero e sinto, se calcular se me rebaixo ou se me exalto”.24
Mais de uma vez, em encontros de porta de livraria ou em conversas de café, Lima Barreto manifestou o seu desapreço à obra de Machado de Assis. Há mais de um depoimento a respeito. Austregésilo de Ataíde conta que ele se enfurecia à simples citação do nome do mestre. “Machado é um falso em tudo”, dizia. “Não tem naturalidade. Inventa tipos sem nenhuma vida.”25
A Sérgio Buarque de Holanda, chegou mesmo a afirmar que considerava Aluísio Azevedo muito superior como romancista. “É muito possível”, observa Sérgio, “que entrasse em tais manifestações menos uma convicção firmada do que o ressentimento de quem, zeloso em extremo da própria originalidade, não tolerava de bom grado as filiações literárias que esboçava a crítica do tempo”.26
Pode ser que sim, pode ser que não. É bem verdade que no inventário da biblioteca de Lima Barreto, por ele próprio organizado, em 1917, não consta nenhum romance de Aluísio Azevedo, ao passo que lá estão as obras mais conhecidas de Machado de Assis. Mas isso não quer dizer concordância ao espírito machadiano. E, se diminui, não anula as diferenças entre um e outro romancista.
Toda a divergência reside efetivamente numa questão de princípios, ou se quiserem, no ângulo com que ambos encaravam de modo tão diverso o fenômeno literário. Podia admirar Machado de Assis, não há duvidar. Insurgia-se, porém, contra a sua omissão, através de uma atitude reticenciosa, de quem prefere deixar as coisas apenas subentendidas, como que também escrevendo nas entrelinhas. Aí é que se levanta o muro que separa os dois escritores.
Na única vez em que veio a público para discutir a arte do criador de Dom Casmurro, comentando um discurso de Pedro Lessa, na Academia, Lima Barreto põe a nu a honestidade das suas reservas. O jurista acadêmico enaltece precisamente o que chamou “extraordinário poder de abstração” de Machado de Assis, a quem interessava apenas o homem e não o meio.
Para o romancista do Triste fim de Policarpo Quaresma, a tese é um absurdo. E argumenta, de acordo com os princípios de estética que sempre defendeu:
“Um escritor, cuja grandeza consistisse em abstrair fortemente das circunstâncias da realidade ambiente, não poderia ser – creio eu – um grande autor. Fabricaria fantoches e não almas, personagens vivos.
“Os nossos sentimentos pessoais, com o serem nossos, são também reações sociais e a sociedade se apoia na terra.
“No meu humilde parecer, Machado de Assis não abusava, como quer o Senhor Doutor Pedro Lessa, do poder de abstração.
“Não tocava, é verdade, em certos detalhes, em certas atitudes de seus personagens por isso ou aquilo; evitava pôr em cena certos ou punha pelos nomes aqueles personagens indispensáveis às suas criações com os quais antipatizava; mas indicava ligeiramente esses detalhes, essas atitudes para caracterizar a sua novela.
“É a sua fraqueza, que o Senhor Doutor Pedro Lessa quer fazer força.”
E continuando:
“A Arte, por sua natureza mesma, é uma criação humana dependente estreitamente do meio, da raça e do momento – todas essas condições concorrendo concomitantemente.
“Há uma mesma geometria para aqui e para a Lapônia; mas uma Virgília do Rio de Janeiro não pode agir da mesma maneira, levada pelos mesmos motivos sociais, que a Virgília de lá, se as há.”
Pedro Lessa citava Swift, Dickens e Thackeray, a propósito do nosso Machado. Lima Barreto não vê razão para tais aproximações. “Machado de Assis não tem nenhuma semelhança com esse doloroso Jonathan Swift; ele não tinha força interior bastante para lutar e quebrar-se contra o Destino.” Quanto a Dickens, “não esquece um acidente terreno, não deixa de ver a singularidade de um trecho de rua em que reside um seu herói”. Machado de Assis não baixava a essas vulgaridades.
A respeito de Thackeray, exclama ainda mais escandalizado: “Mas meu Deus! – este sempre foi tido, para os seguidores da doutrina dos rígidos gêneros literários, como um panfletário, sobretudo nos seus grandes e imortais romances. Será isso Machado de Assis? Qual! Nunca o velho Machado seria o colaborador do Punch, aí pela década dos 40, na Inglaterra.
“Machado era um homem de sala, amoroso das coisas delicadas, sem uma grande, larga e ativa visão da humanidade e da Arte. Ele gostava das coisas decentes e bem-postas, da conversa da menina prendada, da garridice das moças.”
Esses arroubos de escritor proletário, investindo contra um escritor aristocrata, não tiram a nota de sinceridade do julgamento, para quem encarava a arte em função do meio em que vivia. Procurando repor as coisas nos seus devidos lugares, Lima Barreto reafirma, nesse mesmo artigo, a sua posição de escritor: “A Arte seria uma simples álgebra de sentimentos e pensamentos se não fosse assim, e não teria ela, pelo poder de comover, que é um meio de persuasão, o destino de relevar umas almas às outras, de ligá-las, mostrando-lhes mutuamente as razões de suas dores e alegrias, que os simples fatos desarticulados da vida, vistos pelo comum, não têm o poder de fazer, mas que ela faz, diz e convence, contribuindo para a regra da nossa conduta e esclarecimento do nosso destino.
“É o que aprendi em Taine, em Guyau e Brunetière, que nunca me ensinaram a cerebrina abstração que o Senhor Doutor Pedro Lessa julga ser sinal dos grandes escritores.”27
Quem assim pensa e age não pode ser tomado à conta de um instintivo. Sabe o que quer. Tem uma diretriz. É bem possível que tivesse levado a lição de Taine às últimas consequências, mas por culpa da sua própria sinceridade e do seu temperamento arrebatado.
Escrevendo sobre Numa e a ninfa, João Ribeiro apontou-lhe certos exageros da sua concepção estética, que o faziam descambar para a vulgaridade, numa intervenção contínua do autor junto aos personagens; Lima Barreto, muito cônscio das suas verdades, não teve dúvida em replicar ao crítico:
“[...] como todo o romancista que se preza, eu tenho amor e ódio pelos meus personagens. [...] Por isso eu pedia licença para protestar contra o qualificativo de velhaca que o senhor apôs à minha Edgarda. Eu não a quis assim. Ela é vítima de uma porção de influências sociais, de terrores em tradições familiares, quando aceita o casamento com o Numa. Depois... Nós, dado a fraqueza do nosso caráter, não podemos ter uma heroína de Ibsen e, se eu a fizesse assim, teria fugido daquilo que o senhor tanto gabou em mim: o senso da vida e da realidade circundante.”28
De fato, o ponto fraco do romancista, o seu calcanhar de Aquiles, está menos na intervenção ostensiva do autor junto aos personagens do que na impaciência do acabamento. De um modo geral, os seus romances dão a impressão de inacabados. “Falta sempre”, como notou João Ribeiro, no admirável artigo, a propósito de Numa e a ninfa, “a chave da abóbada, que ele carpenteja excelentemente”.29
Lima Barreto bem sabia onde estavam os seus erros e defeitos de escritor. “Digo-te uma coisa”, confessou, certa vez, em carta a um amigo, “eu temo tanto esses tais clássicos e sabedores de gramática como a qualquer toco de pau podre por aí... Meus livros saem errados devido à minha negligência e ao meu relaxamento, à minha letra, aos meus péssimos revisores, inclusive eu mesmo. Isso explica os erros vulgares; mas, quanto aos outros da transcendente gramática dos importantes, eu nunca me incomodei com eles”.30
Positivamente, os cochilos de redação, num escritor como Lima Barreto, não implicam o desconhecimento das regras de bem escrever. Doutra parte, é bem de ver que os filólogos modernos justificam esses desvios de gramática, entre os quais a chamada “concordância ideológica”; e um jovem professor brasileiro, num trabalho, onde o exemplo de Lima Barreto é com frequência invocado, observa que esses defeitos e irregularidades decorrem muitas vezes não de uma “imperícia gramatical” que não concede nenhum valor artístico ou expressivo à frase, mas provêm da escolha feita pelo indivíduo dentre mais de um processo (de expressão); consciente ou não, essa escolha lhe possibilita a tradução ou expressão acabada de seu pensamento ou sentimento. De um dilema estilístico pode-se sair pela inteligência ou pela sensibilidade, e tanto uma como outra são importantes na manifestação das ideias e das afetividades.31
Os exemplos, que se podem tirar dos romances, dos contos, dos artigos, reforçariam esta tese, extensiva aliás a todo grande escritor: a gramática pouca importância tem na obra de Lima Barreto. Não são as palavras, a ordem em que são dispostas, que valem, mas as ideias que exprimem, os sentimentos que elas fazem vibrar. Essa foi, de resto, a lição de um filólogo como Silva Ramos tirou dos livros de Lima Barreto.
“O que o autor das Recordações do escrivão Isaías Caminha”, escreveu o mestre, “não sabe é alinhar palavras vazias de sentido e que só encantem pela sonoridade da expressão. Prezando, como preza, a matéria-prima da sua arte, a palavra, jamais consentiria que um vocábulo soasse oco, para deleite do ouvido e que não revestisse uma noção. Nas duzentas páginas do seu livro, haveria material para volumes, se quisesse diluir as suas concepções em períodos inanes que não tardariam a ser esquecidos, em vez de condensar em frases maciças que nunca mais se olvidarão.
“A verdade é que, nos tempos que correm, já se não compreende que alguém pegue em uma pena, se não tiver alguma coisa que dizer; por isso as suas obras hão de ser sempre bem cotadas. É que não nos contentamos mais com palavras, queremos ideias; e as suas novelas obrigam a pensar.”32
Notas
1 Bagatelas, p. 196. Desde 1913, residia Lima Barreto na Rua Major Mascarenhas, nº 42, também em Todos os Santos. Mudou-se, anos depois, para a casa nº 26 da mesma rua, onde morreu.
2 Prudêncio Cotejipe Milanês, chefe da repartição em que Lima Barreto trabalhava, sempre o tratou com um carinho todo especial. O escritor correspondia a essa amizade, como se verifica pelas palavras de afeição e gratidão, no fim do volume Histórias e sonhos, edição de 1920, dedicada a Milanês. Ver Histórias e sonhos, p. 25.
3 Por esse motivo, esteve licenciado de 01/11/1914 a 31/01/1915. Arquivo do Ministério da Guerra.
4 Numa e a ninfa, conto publicado na Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 03/06/1911. Ver Marginália, p. 284-290.
5 Diário íntimo, p. 82.
6 Escrito especialmente para A Noite/ Lima Barreto/ Numa/ e a/ Nympha/ Romance da vida contemporânea/ “Cette nation [l’Egypte] grave et sérieuse/ connut d’abord la vraie fin de la politique, qui/ est de rendre la vie commode et les peuples/ heureux”. Bossuet. Rio de Janeiro/ Officinas d’“A Noite” – Rua Júlio Cesar, 29 a 31/ 1915. 73 p. 27 x 18cm. Por volta de 1920, o editor Schettino apresentou o mesmo livro, com uma capa nova, tendo a seguinte epígrafe: “Romance sugestivo de escândalos femininos” e um desenho, assinado por Ivan, onde aparecem um homem e uma mulher beijando-se, ao fundo de um buraco de fechadura. Ambas as edições são raríssimas hoje.
7 Numa e a ninfa, p. 82 e segs.; p. 222 e segs.
8 Na Voz do Trabalhador, órgão da Confederação Operária Brasileira, publicou com o pseudônimo de Isaías Caminha o artigo: “Palavras de um snob anarquista”. Mais tarde, em 1918, no jornal esquerdista Lanterna, assinaria Dr. Bogóloff, a princípio. Retira depois a máscara, assinando-se: Lima Barreto (ex-Dr. Bogóloff). O artigo acima referido está em Feiras e mafuás, p. 213-218.
9 Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, 15/05/1913. Feiras e mafuás, p. 213 e 218, respectivamente.
10 “Notícia de Lima Barreto”, por Osmar Pimentel, em Folha da Manhã, São Paulo, 12/02/1949. O artigo em apreço vai como prefácio a Os Bruzundangas, da Editora Brasiliense, e a citação está às p. 15-16.
11 As caricaturas de Seth sobre os personagens de Numa e a ninfa foram publicadas na primeira página d’A Noite, em 12/03/1915, anunciando o folhetim.
12 Diário íntimo, p. 181.
13 A história desse empréstimo foi contada por Lima Barreto num requerimento que dirigiu ao ministro da Fazenda, logo após a sua aposentadoria, pedindo que não fosse descontado em seus vencimentos. Por força dos compromissos contraídos, que somavam 20:000$000, incluindo os juros, passaria o romancista a receber, na inatividade, a importância de 171$800. Em despacho de 18/10/1919, o ministro Homero Batista deferiu o requerimento sob o fundamento de que “o Tesouro não deve interferir nos atos pessoais e de privada economia dos empregados”. Arquivo do Ministério da Fazenda. Ver Correspondência, II, p. 139-142.
14 Lima Barreto/ Autor do “Isaías Caminha”/ Triste fim de Policarpo Quaresma/ Typ. “Revista dos Tribunais”/ Rua do Carmo, 55/ Rio de Janeiro/ 1915, 352 p. 19 x 13,5cm. Nesta edição, foram incluídos os seguintes contos do autor: “Um especialista”, “O filho da Gabriela”, “A nova Califórnia”, “O homem que sabia javanês”, “Um e outro”, “Miss Edith e seu tio”, “Como o ‘homem’ chegou”.
15 “No Correio, sou excomungado; e é justo” (Diário íntimo, p. 182).
16 A Época, Rio de Janeiro, 18/02/1916. Andava com a ideia da glória, por esse tempo, segundo Antônio Noronha Santos. “Quando levamos a enterrar o pobre Vilarinho – um paraense de Anajás, transplantado para o Rio e que a capital, com as suas seduções, devorara em poucos anos, contou-nos o Mário Demerval, companheiro de carro do Lima, que este, durante o trajeto, se dirigira ao esquife do amigo, com frases e gestos desordenados, dizendo do seu intento de não segui-lo para a morada do repouso eterno. ‘Vai sozinho, dizia, eu quero ter o Prêmio Nobel.’” (Ver “Uma carta de Lima Barreto”, por Antônio Noronha Santos, publicado num pequeno jornal de Niterói. Recorte pertencente ao arquivo do autor.) Joaquim Vilarinho era estudante de Engenharia. Morreu subitamente e, segundo a tradição, foi o escritor quem pagou o enterro, graças a um adiantamento de 100 mil-réis, que lhe fizera o livreiro A. J. Castilho, pela compra de um lote da primeira edição de Policarpo Quaresma.
17 Diário íntimo, p. 181.
18 “Livros novos”, em Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 09/05/1916.
19 “Impressões literárias”, em Lusitana, Rio de Janeiro, 10/06/1916.
20 O Imparcial, Rio de Janeiro, 18/09/1916. Um senhor Firmino Santos, que se intitula “capitão honorário do Exército”, publicou num semanário, A Capital, logo que o livro apareceu, em 08/04/1916, violento artigo contra Lima Barreto, a quem chamava “inimigo tremendo da República, inimigo que urge combater”, insinuando que as autoridades deveriam processar o escritor. O artigo foi transcrito no A.B.C., Rio de Janeiro, 24/03/1917, a pedido do próprio Lima Barreto. Supõe Antônio Noronha Santos que esse capitão honorário seja o próprio Lima Barreto, que chamava assim a atenção para o seu livro, como que provocando a ira dos militares.
21 Gonzaga de Sá, p. 133-134.
22 O artigo foi publicado n’A Época, Rio de Janeiro, 31/08/1916, e serviu de prefácio à edição de Histórias e sonhos, p. 29-35.
23 “Histrião ou literato”, artigo de Lima Barreto, em Revista Contemporânea, Rio de Janeiro, 15/02/1919. Ver Impressões de leitura, p. 188-191.
24 Carta a Austregésilo de Ataíde, publicada na Revista do Brasil (3ª fase), Rio de Janeiro, maio de 1941, p. 54-A. Ver Correspondência, II, p. 257.
25 “Trecho da iniciação literária”, por Austregésilo de Ataíde, em O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 11/06/1949.
26 “Em torno de Lima Barreto”, por Sérgio Buarque de Holanda, em Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 23/01/1949. Esse artigo vai como prefácio de Clara dos Anjos, da Editora Brasiliense, p. 9-19.
27 “Uma fita acadêmica”, artigo de Lima Barreto, em A.B.C., Rio de Janeiro, 02/08/1919 (Feiras e mafuás, p. 34-42).
28 Carta a João Ribeiro, Rio de Janeiro, 03/06/1917. Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional.
29 “Os romances”, em O Imparcial, Rio de Janeiro, 07/05/1917. Parte desse artigo vai como prefácio a Numa e a ninfa, da Editora Brasiliense, p. 9-12.
30 Carta a Lucilo Varejão, Rio de Janeiro, 18/02/1921. Pertencente ao arquivo do destinatário. Ver Correspondência, II, p. 226.
31 Fenômenos de sintaxe ideológica e afetiva na língua portuguesa, por Jesus Belo Galvão (tese apresentada para concorrer a uma cátedra de Português do Internato do Colégio Pedro II), Rio de Janeiro, 1949. Exemplar mimeografado, pertencente à coleção do autor.
32 Carta datada de 21/06/1919. Col. Lima Barreto, Biblioteca Nacional. Silva Ramos, grande professor, foi um dos mestres da geração de Sousa da Silveira, Antenor Nascentes e Manuel Bandeira, marcando a todos eles com a sua influência. A carta citada está em Correspondência, II, p. 187-188.
XI Ainda segundo André Luiz dos Santos, esta casa tem hoje o número 32. (N.R.)