Maximalismo
É chegada, no mundo, a hora de reformarmos a sociedade, a humanidade, não politicamente que nada adianta; mas socialmente que é tudo.
(Impressões de leitura, p. 165)
Com a guerra de 1914-1918, tomou alento e ganhou força de penetração o movimento anarquista, que ensaiava sua influência política, no Brasil, desde o Congresso Operário de 1906. Sob o influxo dos ideais libertários, o proletariado começa, então, a se organizar.
É a época em que surgem numerosos comitês operários, defendendo reivindicações que a muita gente pareciam absurdas, aumento de salários e redução das horas de trabalho, entre outras. No Rio de Janeiro, a Confederação Operária Brasileira passou a falar em voz alta, com o seu jornal, a lutar pelos interesses da classe espoliada.
Foi, porém, em São Paulo, centro de maior concentração industrial, que se operou mais intensamente a mobilização das massas operárias. Meses antes da Revolução Russa, em julho de 1917, o Comitê de Defesa Proletária promoveu a greve geral na capital do estado, paralisando por completo as fábricas e os transportes. Conflitos de rua entre grevistas e a polícia puseram a cidade em pé de guerra.
Ao fim de alguns dias, o governo, em nome dos patrões, propôs um entendimento com os líderes operários. Através de uma comissão de jornalistas, foram acertadas as condições de paz. Era a primeira vitória do anarquismo.1
No ano em que foi deflagrada a guerra, aparecia no Rio a revista A Vida, publicação mensal, redigida pelo engenheiro e jornalista gaúcho Orlando Correia Lopes. A doutrinação é feita na base das obras de Hamon, Eltzbacher, Max Nordau, Faure, Malatesta, Karl Marx, Élisée Reclus e tantos outros. Lima Barreto era assinante de A Vida, bem como de Na Barricada, panfleto redigido também por Orlando Correia Lopes e que passou a ser editado em 1915.2
O romancista já havia tomado posição contra a guerra, através do Correio da Noite, num artiguete em que ataca de rijo o militarismo alemão.3 Chegou mesmo a aderir à Liga pelos Aliados, mas dela se afastou, pouco depois, retificando a sua atitude, para formar ao lado dos anarquistas. Embora sem participar da ação direta, dá ao movimento, que cresce a olhos vistos, o melhor do seu esforço de escritor e jornalista.4
Já não era possível conter-se. O pensamento represado rompia de vez em quando, aqui e ali, nos romances, nos contos e, agora, nos artigos, que publicava mais assiduamente na imprensa diária.
Dentro em pouco, não respeitará mais as limitações que lhe impunham um meio-silêncio, arrancando da boca a mordaça do convencionalismo. Não o desviará do caminho da luta social nem mesmo o receio de perder o emprego público, que sempre refreara os seus impulsos revolucionários, pois era da repartição que tirava o sustento do pai enfermo. Os irmãos estavam crescidos. Trabalhavam. Contribuíam, como ele, para o sustento da casa. Tinha chegado a hora de gritar: basta!
Em meio aos sofrimentos íntimos, que o atormentavam, num tempo em que o álcool mais de uma vez o levou às fronteiras da loucura, Lima Barreto fez, contudo, a sua pregação revolucionária, com a paixão dos grandes derrotados. A sua voz não disfarçava, nem seria possível disfarçar, os acentos de angústia e desespero.
A revolta de Lima Barreto como que se processa por etapas.
No início da guerra, escrevendo para o Correio da Noite, não usa de subterfúgios, para dizer que não acredita em patriotismo.5
Ideias assim deviam chocar o ambiente, ferindo os ouvidos cívicos dos que participavam dos chás e dos recitais em benefício da Cruz Vermelha. E teriam com toda a certeza repercussão desfavorável nos círculos militares, onde o escritor não era um estranho, dada a sua condição de funcionário da Secretaria da Guerra.
Os generais, como é óbvio, pensavam de modo diverso. E só faziam estimular as conferências de Olavo Bilac, professando a educação cívica da mocidade, na campanha que iniciou em favor do serviço militar obrigatório, que resultaria na criação das linhas de tiro e no incremento do escotismo.6
Desde a juventude, Lima Barreto fora contra isso. Havia abandonado a Federação de Estudantes, quando se esboçou entre os colegas movimento que tendia a prestigiar projeto de lei apresentado ao Congresso nesse sentido, ao tempo do governo Campos Sales.7 Há de combatê-lo o resto da vida, “esse monstruoso e imbecil serviço militar obrigatório”, pois, como dizia, não podia admitir nem conceber que o fim da civilização fosse a guerra.8
Em 1915, inicia o combate. Abre fogo contra a burguesia. “O nosso regímen atual”, escreveu, noutro artiguete para o Correio da Noite, “é a da mais brutal plutocracia, é da mais intensa adulação aos elementos estranhos, aos capitalistas internacionais, aos agentes de negócios, aos charlatães tintos com uma sabedoria de pacotilha”.9
Em 1917, investe contra um ministro de Estado, o Sr. José Bezerra, a quem acusa de utilizar a pasta da Agricultura para promover a alta do açúcar, a serviço dos usineiros, a cuja classe pertence, e do grupo belga que controla o comércio internacional.
“O açúcar”, denuncia o escritor, num artigo publicado no A.B.C., “produção nacional, a mais nacional que há, que é vendida aos estrangeiros por 6$000 à arroba, é vendida aos retalhistas brasileiros por mais de 10$000.
“Sabem quem é o chefe de semelhante bandalheira? É o Zé Rufino Bezerra Cavalcânti – Cavalcânti com ‘i’, porque ele não é mulato – graças a Deus!”
Como quem está disposto a tudo, dirigindo-se ao diretor do Correio da Manhã, que faz a defesa do ministro, tem este admirável desabafo: “Amaral [Azevedo Amaral], tu és notável, tu tens talento, tu és doutor, tu possuis tudo para ser um grande homem. Não sei se tu tens vícios; eu os tenho: tu não tens – é sinceridade.
“Falta-te essa cousa que é o amor pelos outros, o pensamento dos outros, a dedicação para enfrentar com a vida na sua majestosa grandeza de miséria e de força.
“Quanto aos teus algarismos, vai te catar que não tenho medo deles; e, quanto a mim, diga ao Rufino que sou terceiro oficial da Secretaria da Guerra, há quinze anos. Ele que arranje, se for capaz, a minha demissão. Não garanto, mas, talvez, seja possível que eu lhe fique agradecido. Até logo.”10
Agora, nada mais o detém. Pouco depois, volta ao assunto, escrevendo para um semanário esquerdista. Mas não ataca apenas o Sr. José Bezerra. “O que aí fica dito”, acrescenta, “pode-se aplicar ao feijão, com Matarazzo à frente; à carne verde, com o açougueiro Antônio Prado e o seu caixeiro-viajante Graça Aranha, ambos à testa da especulação indecente das carnes frigorificadas, fornecidas, a baixo preço, aos estrangeiros, enquanto nós, aqui, pagamos o dobro pelo quilo da mesma mercadoria; e assim por diante”. E o articulista indica o único remédio para o povo reprimir o escândalo: a violência.
“A nossa República”, continua, mais adiante, “com o exemplo de São Paulo, se transformou no domínio de um feroz sindicato de argentários cúpidos, com os quais só se pode lutar com armas na mão. Deles saem todas as autoridades; deles são os grandes jornais; deles saem as graças e os privilégios; e sobre a Nação eles teceram uma rede de malhas estreitas, por onde não passa senão aquilo que lhes convém. Só há um remédio: é rasgar a rede à faca, sem atender a considerações morais, religiosas, filosóficas, doutrinárias, de qualquer natureza que seja”.11
Esse artigo, é importante anotar, fora escrito um mês depois da greve geral em São Paulo, quando o governo estadual, então chefiado pelo Sr. Altino Arantes, tomava medidas repressivas contra os principais cabeças do movimento operário.
O mesmo jornal que o publicou divulgava o protesto do Comitê de Defesa dos Direitos do Homem, acusando o governo paulista de ter invadido casas, a altas horas da noite, maltratando mulheres e crianças; de ter assaltado as oficias de A Plebe; de ter feito prisões ilegais. Os “lacaios políticos da plutocracia paulista” teriam ainda preparado “sorrateiramente a expulsão do território nacional” dos líderes anarquistas mentores da greve.12
O caso teve repercussão na imprensa. Os operários, na maioria estrangeiros, de fato, foram expulsos do país, a bordo do navio Curvelo; impetraram habeas corpus ao Supremo Tribunal, que o denegou.
A decisão do Poder Judiciário provoca mais um protesto de Lima Barreto, voltando a atacar os que ele chamava “a calamitosa oligarquia paulista”.13
“Tais fatos, que são de ontem”, escreveu, “não têm sido concatenados por todos, nem tampouco combatidos a devido tempo; e, se o fossem, não teriam certamente os doges de São Paulo conseguido o que almejavam, isto é, obter um total domínio sobre os poderes políticos do país, de modo a coroar a sua nefasta e atroz ditadura com a decisão de 6 do corrente, do Supremo Tribunal, negando habeas corpus aos infelizes do Curvelo, rasgando a Constituição, obscurecendo um dos seus artigos mais simples e mais claros, com farisaicas sutilezas de doutores da escolástica e o tácito e suspeito apoio de quase toda a imprensa carioca, sem um protesto corajoso no Congresso, realizando-se toda essa vergonha, todo esse rebaixamento da independência dos magistrados, perante o povo ‘bestializado’, calado de medo ou por estupidez, esquecido de que a violência pode, amanhã, voltar-se sobre um qualquer de nós, desse que tal sirva à plutocracia paulista e ela o exija”.14,
Tudo isso acontecia em outubro de 1917, quando o Brasil se preparava para declarar guerra à Alemanha. O assunto fora examinado dois meses antes, no Senado Federal. Estava o governo em francos preparativos bélicos, desde o torpedeamento do navio mercante Paraná, por um submarino alemão, que determinou o rompimento das nossas relações com o Reich.
Os Estados Unidos tinham entrado no conflito e o Brasil, com o afundamento de mais um navio, o Macau, vira-se na contingência de reconhecer o estado de beligerância, iniciado pelo Império Alemão.
A atitude do governo, envolvendo uma participação discretíssima no conflito, senão platônica, não conta, porém, com o apoio dos anarquistas, que reiniciam os movimentos grevistas, contra os “traficantes de guerra”, responsabilizando-os pela alta do custo de vida, ou seja, a “carestia”, de acordo com a terminologia da época.
São presos os agitadores. Há protestos na Câmara. Maurício de Lacerda acusa de arbitrário a Aurelino Leal, o chefe de polícia, que a imprensa anarquista chama de “Trépoff marca barbante”.15 É que ele afirma só permitir “greves pacíficas” e procura justificar os seus atos no Art. 205 do Código Penal, quando o direito de greve fora posteriormente assegurado numa lei, a de número 1.637, que criou os sindicatos profissionais.16 Coincidindo com a agitação operária – a observação não deixa de ser curiosa –, surgem na Câmara os primeiros projetos oficiosos de leis sociais, apresentados por deputados pertencentes à maioria parlamentar, regulamentando o trabalho dos menores nas fábricas e criando patronatos rurais.
Esses projetos, porém, não iam adiante. Eram só para inglês ver, como dizia o povo. E o líder do governo acentuava a sua posição reacionária, comprimindo o bloco da maioria contra as iniciativas dos deputados oposicionistas. De um Maurício de Lacerda, por exemplo, que visava minorar o sofrimento das classes trabalhadoras, com leis mais humanas que as que estavam em vigor.17
A posição de Lima Barreto é conhecida. Desde o primeiro momento, rebelou-se contra a atitude do governo, assumida sob a proteção dos Estados Unidos. Logo após o rompimento das relações diplomáticas com a Alemanha, escrevia no Diário íntimo:
“Hoje, depois de ter levado quase todo o mês passado entregue à bebida, posso escrever calmo. O que me leva a escrever estas notas é o fato de o Brasil ter quebrado a sua neutralidade na guerra entre a Alemanha e os Estados Unidos, dando azo a que este mandasse uma esquadra poderosa estacionar em nossas águas.
“A dolorosa situação dos homens de cor nos Estados Unidos não devia permitir que os nossos tivessem alegria com semelhante coisa, pois têm. Néscios. Eu me entristeço com tal coisa, tanto mais que estou amordaçado com o meu vago emprego público.
“A escolher, sim senhor, eu preferia mil vezes a Alemanha. Não posso dizer nada e nada direi; mas aqui fica o meu protesto mudo. Coisa curiosa, o Lauro [Müller] não quis dar o seu assentimento a tal coisa; o Nilo [Peçanha] deu. Ao primeiro chamam de alemão; e ao segundo, de moleque?”
Fazia alusão à saída de Lauro Müller, filho de imigrantes alemães de Santa Catarina, do Ministério das Relações Exteriores, acusado de boche, quando a situação internacional se complicou, sendo ali substituído por Nilo Peçanha, a quem Lima Barreto chegou a devotar admiração. Mas o desabafo ainda não terminou.
“Em que parará isto?”, pergunta o memorialista, angustiado, e responde ele mesmo: “Não sei bem, mas se a sangueira já é grande, julgo que ela vai ser ainda maior depois. Tudo o que é revoltante e grosseiro vai por baixo disso tudo, sob o pretexto de pátria. É de causar horror, tanto mais que os fortes burgueses querem, aproveitando o estado dos espíritos, matar o indivíduo em proveito do Estado, que são eles.
“Spencer tinha razão: o mundo retrograda. O escopo utilitário matou todo o ideal, toda a caridade e quer cada ‘besta’ na sua manjedoura.
“Antes o feudalismo!
“Antes a nobreza!”18
Não se limitou, contudo, a esse “protesto mudo”. Nas colunas de O Debate, semanário vermelho, havia de firmar a sua posição antiamericana, criticando por tabela o chanceler Nilo Peçannha.19
Daqui por diante, só fará crescer essa antipatia feroz aos americanos do norte, e por dois motivos, facilmente compreensíveis: solidariedade aos negros perseguidos e horror ao imperialismo econômico. Via nos Estados Unidos o país que tudo obtinha e resolvia pela força do dinheiro. Como dizia no Diário, era contra o “escopo utilitário” que se revoltava, porque matava a todo o ideal.
“Esse engouement pelos Estados Unidos”, chegou a escrever, mais tarde, num artigo, para a Gazeta de Notícias, “há de passar, como passou o que havia pela Alemanha e da mesma forma.
“Não dou cinquenta anos para que todos os países da América do Sul, Central e o México se coliguem a fim de acabar de vez com essa atual opressão disfarçada dos yankees sobre todos nós; e que cada vez mais se torna intolerável!”20
É nessa atmosfera carregada de eletricidade que Lima Barreto lança, por conta própria, a segunda edição do Recordações do escrivão Isaías Caminha.21 Pagara-a do seu bolso, à custa de empréstimos onerosos, tal como já o fizera uma vez, com a edição do Triste fim de Policarpo Quaresma.
Quase ao mesmo tempo, A Noite põe em circulação Numa e a ninfa. Apesar de figurar na capa a data de 1915, na verdade, o romance só veio a aparecer, fora do jornal, em 1917, numa brochurazinha feia e mal-impressa.22
No mesmo ano, prepara a entrega ao editor Jacinto Ribeiro dos Santos os originais das Notas sobre a República das Bruzundangas, coleção de crônicas satíricas publicadas no A.B.C. Vendera os direitos autorais deste livro ao velho Jacinto, “para todo o sempre”, por 70 mil-réis.23
Que precisava de dinheiro, e muito, não há a menor dúvida. Andava doente e cheio de dívidas. E, ainda por cima, precisava pagar a nova edição do Isaías Caminha, que estava no prelo, graças à boa vontade do seu amigo e compadre, Benedito de Sousa, dono de uma tipografia. Mas Benedito era pobre, como ele, e não podia de forma alguma ser prejudicado.
Foi quando Lima Barreto recorreu novamente aos agiotas, que operavam entre os funcionários do Ministério da Guerra, sob o disfarce de fornecedores. Somado ao anterior, e mais os juros extorsivos, o compromisso contraído ultrapassou 20 contos de réis, importância que representaria, para o escritor, qualquer coisa de fabuloso.24
No entanto, se ele quisesse transigir, poderia ter feito a edição do Isaías Caminha até com lucro. O diretor d’O País, João Laje, que figura em Numa e a ninfa, na pele do jornalista Fuas Bandeira, porta-voz do Palácio do Catete; propusera dar o romance em folhetins, publicando-o depois em volume, desde que o autor concordasse em revelar o nome dos personagens. A proposta visava, como é fácil deduzir, a redação do Correio da Manhã, órgão da oposição, que vivia em polêmicas com O País.
Lima Barreto respondeu altivamente, recusando. O seu romance era uma obra de arte e, como tal, não permitiria que servisse de instrumento a terceiros, na luta por interesses políticos ou de dinheiro.25
Não se pode imaginar momento mais impróprio para o lançamento de um livro. Em setembro de 1917, saía a segunda edição do Isaías Caminha.26 Pois bem. É de 5 de setembro de 1917, este trecho do Diário íntimo:
“No dia 30 de agosto de 1917, eu ia para a cidade, quando me senti mal. Tinha levado todo o mês a beber, sobretudo parati. Bebedeira sobre bebedeira, declarada ou não. Comendo pouco e dormindo sabe Deus como. Andei porco, imundo.
“Ia para a cidade, quando me senti mal. Voltei para casa, muito a contragosto, pois o estado de meu pai, os seus incômodos, junto aos meus desregramentos, tornam-me a estada em casa impossível. Voltei, porque não tinha outro remédio.
“Deitei-me, vomitei e andava com um fluxo de sangue, que me levava à latrina frequentemente. Numa das vezes em que fui, caí e fiquei como morto. Meus irmãos acudiram-me e trouxeram-me a braços, inclusive Elói, o filho da Prisciliana, meu afilhado e de minha irmã. Não sei o que se passou; o que sei é que as senhoras da vizinha acudiram e eu despertei duas horas depois com equimoses nos tornozelos e cercado por elas, cheias de susto.
“Chamaram o médico, o [Aristides] Caire, estudante do meu tempo; e estou sofrendo a medicação mais penosa que me podia ser imposta. Estou em dieta de fruta e água de arroz, pois o meu organismo tem déficit.”
E o escritor, no auge do desalento, pede a compaixão divina: “Se não deixar de beber cachaça, não tenho vergonha. Queira Deus que deixe”.27
Mesmo doente, Lima Barreto continua a escrever na imprensa libertária.XII Com o desaparecimento de O Debate, logo depois da declaração da guerra com a Alemanha, comparece frequentemente nas colunas do A.B.C., de Brás Cubas, da Revista Contemporânea, panfletos políticos ou revistas literárias, que dão guarida às suas ideias maximalistas. Escreve também nos jornais revolucionários do Rio, de São Paulo e até de Porto Alegre, como Lanterna, O Cosmopolita, O Parafuso, A Patuleia e A Luta, porém com menos assiduidade.
A Revolução Russa está à vista. Os anarquistas tomam a frente da sua propaganda no Brasil, e ganham novos adeptos, com o chamado programa maximalista de Lênin. Citando Ingenieros, assim definiu Lima Barreto o maximalismo: “a aspiração de realizar o máximo de reformas possíveis dentro de cada sociedade, tendo em conta as suas condições particulares”.28
Em maio de 1918, em artigo publicado no A.B.C., o escritor lança o seu manifesto maximalista, que termina com o grito de guerra: “Ave Rússia!”.
Para a revolução social, que deveria ser iniciada no Brasil, propõe quatro pontos que julga essenciais: revisão dos fundamentos da propriedade; confisco dos bens de certas sociedades religiosas; riscar do Código Civil o direito de testar; divórcio.
“[...] nós, os brasileiros”, conclui, “devemos iniciar a nossa Revolução Social, com essas quatro medidas, que expus. Será a primeira parte; as outras, depois”. Dir-se-ia que, ao contrário de Lênin, Lima Barreto apresenta programa “minimalista”.
“A propriedade”, disse, no mesmo artigo, “é social e o indivíduo só pode e deve conservar, para ele, de terras e outros bens tão-somente aquilo que precisar para manter a sua vida e de sua família, devendo todos trabalhar de forma que lhes for mais agradável e o menos possível, em benefício comum”.29
Há um ingênuo idealismo nessa definição, que o escritor, entretanto, não demora em ratificar, com idêntico toque romântico, no artigo que dedica à memória de Vera Zassúlitch, assassinada pela polícia de Trépoff, ao desejar um movimento no Brasil nos moldes do da Revolução Russa.30
Dias depois da publicação deste segundo artigo, o romancista requer aposentadoria das funções de terceiro oficial da Secretaria da Guerra.31 E continua a lutar.
O movimento grevista do Rio de Janeiro, em novembro de 1918, que teve quase as mesmas proporções da greve geral de São Paulo, em julho de 1917, vai encontrá-lo recolhido ao Hospital Central do Exército. No seu quarto de doente, Lima Barreto escreve, para o A.B.C., uma crônica de solidariedade aos grevistas, atacando Aurelino Leal e os jornalistas que defendem a polícia.32
Para se ter uma ideia deste artigo, basta transcrever as notas de leitura dos jornais, que o inspiraram, tal como se acham no Diário íntimo:
“O artigo do [Azevedo] Amaral tem o mesmo plano que o do Miguel Melo: o do Antônio Torres o mesmo que o daquele último; o do filho do Leão Veloso o mesmo que o do Torres.
“Parece que o plano foi ditado pelo chefe de polícia, devendo tocar nos seguintes pontos:
“a) acoimar de estrangeiros os anarquistas, e exploradores dos operários brasileiros;
“b) debochar os seus propósitos e inventar mesmo alguns bem repugnantes e infames;
“c) exaltar a doçura e o patriotismo do operário brasileiro;
“d) julgar que eles têm razão nas suas reinvindicações; que a dinamite não deve ser empregada, etc.; que devem esperar, pois a Câmara vai votar o Código do Trabalho, etc., etc.”33
Notas
1 História e teoria do partido político no direito constitucional brasileiro, por Afonso Arinos de Melo Franco, Rio de Janeiro, 1948, p. 114.
2 A vida, publicação mensal anarquista, ano I, n. 1, em 30 de novembro de 1914. Teve vida efêmera, como a sua congênere, Na Barricada, que se publicou no ano seguinte.
3 “Sobre a guerra”, artigo de Lima Barreto, em Correio da Noite, Rio de Janeiro, 19/12/1914. Ver Marginália, p. 45-46.
4 “No começo da contenda europeia”, escreveria mais tarde, “dei a minha adesão à Liga pelos Aliados; mas, desde que ela desandou, aproveitando-se da simplicidade de muitos e da cumplicidade de alguns, em escritório de anúncios de carnes frigorificadas, e outros gêneros de primeira necessidade, julguei do meu dever não dar mais nenhuma palavra de apoio a semelhante instituição que, quando não era quarta página de jornal, se transformava em sociedade musical e dançante ou em clube dramático, recreativo e literário” (Bagatelas, p. 151).
5 “O patriotismo”, artigo de Lima Barreto, em Correio da Noite, Rio de Janeiro, 21/12/1914 (Coisas do Reino do Jambon, p. 75-76). Em carta a Georgino Avelino, de 30/10/1916, assim define o escritor as suas ideias sobre pátria e patriotismo: “As nossas atuais pátrias não têm outra base senão na política que, desde a Renascença, tem determinado e regulado toda a nossa atividade. Desde que percamos essa ilusão do governo, elas não terão mais razão de ser. Nós, às vezes, nos fazemos forte porque temos um mais forte que nos desafia, que nos insulta. É o que está acontecendo comigo nessa questão de pátria. Enquanto estiver de pé a estúpida agressão alemã para os ideais mortos de domínio universal e a falsidade americana com o seu desejo de açambarcamento brutal da América, não estarei na liça para combater os patriotas. A pátria me repugna, Avelino, porque a pátria é um sindicato, dos políticos e sindicatos universais com os seus esculcas em todo mundo, para saquear, oprimir, tirar couro e cabelo, dos que acreditam nos homens, no trabalho, na religião e na honestidade. Essa gente explora esse sentimento sobrevivente como os padres sinceros exploram a beatice das mulheres ou a hipocrisia dos homens”. Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Ver Correspondência, I, p. 281. Ainda a propósito do mesmo tema, será lícito lembrar mais uma palavra do escritor. “Eu que me julgo muito pouco patriota”, disse ele em 1919, “não desejo absolutamente ver o Brasil humilhado e estrangulado por outra pátria. Quero que não haja nenhuma, mas desde que se trate de humilhação, rebaixamento do Brasil por qualquer outro país, eu sou brasileiro” (Bagatelas, p. 255).
6 Bilac iniciara a campanha em São Paulo, com duas conferências, uma na Faculdade de Direito e outra na de Medicina, a 9 e 14 de outubro de 1915, seguindo-se uma terceira, no Rio de Janeiro, a 19 de outubro, no Clube Militar. Ver “Bilac e o sorteio militar”, artigo de M. Paulo Filho, em Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 05/08/1951 (4º caderno).
7 Documento pertencente ao arquivo do autor deste livro.
8 “Educação física”, artigo de Lima Barreto, em A.B.C., Rio de Janeiro, 09/04/1921 (Feiras e mafuás, p. 113).
9 “O momento”, artigo de Lima Barreto, em Correio da Noite, Rio de Janeiro, 03/03/1915 (Coisas do Reino do Jambon, p. 80).
10 “Carta fechada. Meu maravilhoso Senhor Zé Rufino”, artigo de Lima Barreto, em A.B.C., Rio de Janeiro, 12/05/1917. Ver Vida urbana, p. 118-120.
11 “Sobre a carestia”, artigo de Lima Barreto, em O Debate, Rio de Janeiro, 15/09/1917. Ver Marginália, p. 193-194.
12 Manifesto publicado em O Debate, Rio de Janeiro, 06/10/1917.
13 Bagatelas, p. 37.
14 “São Paulo e os estrangeiros”, II, artigo de Lima Barreto, em O Debate, Rio de Janeiro, 13/10/1917. Ver Marginália, p. 206-207. A decisão do Supremo Tribunal no caso do Curvelo fora tomada contra os votos dos ministros Pedro Lessa, Mibielli, Edmundo Lins e Guimarães Natal conforme se lê em nota do mesmo jornal.
15 O Debate, por exemplo, que era dirigido por Adolfo Porto e Astrojildo Pereira.
16 Esta é a argumentação expendida por Teodoro Magalhães, em O Debate, Rio de Janeiro, 22/09/1917, no artigo intitulado: “As interpretações policias do direito de greve”.
17 O Debate, Rio de Janeiro, 09/08/1917.
18 Diário íntimo, p. 191-192.
19 “Coisas americanas”, dois artigos assinados L. B., publicados em O Debate, Rio de Janeiro, em 06/10/1917. Ver Marginália, p. 195-198.
20 Marginália, p. 101. Na sua aversão a tudo que vinha dos Estados Unidos, condenou Carlos Chagas, que então dirigia o Departamento Nacional de Saúde, por ter contratado enfermeiras norte-americanas com ordenados superiores aos médicos, motivando demissão em massa de funcionários subalternos. “Enfermeiras louras e mosquitos zumbidores”, artigo de Lima Barreto, em Careta, 28/01/1922 (Feiras e mafuás, p. 276-279). Também não gostava do cinema. “Não posso suportar essas hediondas damas americanas: Ketties não sei o que, Thedas; e os respectivos cavalheiros: Johns, Hamiltons, Tigres de toda a sorte. As mulheres têm uma carnadura de gesso ou mármore artificial e uns gestos duros e angulosos; os homens, com uns enormes olhos que se esbugalham mais no patético, têm um mento quadrado de sioux muito antipático. E todas essas fitas americanas são brutas histórias de raptos com salteadores, ignóbeis fantasias de uma pobreza de invenção de causar pena, quando não são melodramas idiotas que deviam fazer chorar as criadas de servir de há quantos anos passados. “Amor, cinema e telefone”, artigo de Lima Barreto, em Careta, Rio de Janeiro, 24/01/1920 (Coisas do Reino do Jambon, p. 106).
21 Lima Barreto/ Recordações do escrivão/ Isaías Caminha/ (2.ª edição, revista e aumentada)/ 1917/ Tip. Revista dos Tribunais/ Carmo, 55 – Rio de Janeiro. XIII, 234 p. 18 x 11cms.
22 “[...] o livro está, como o autor – pouco apresentável”, escreveu Lima Barreto, em carta a Artur Mota. Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Ver Correspondência, II, p. 25.
23 O acervo de Jacinto Ribeiro dos Santos passou depois à Empresa “A Noite”, pertencente ao patrimônio nacional. Em 1951, o presidente Getúlio Vargas, atendendo a um memorial da família Lima Barreto, liberou esses direitos autorais.
24 “Veja bem Vossa Excelência”, disse Lima Barreto, numa carta que dirigiu ao ministro da Fazenda, Sr. João Ribeiro, “eu já paguei a tais pseudo-sirgueiros doze contos e tenho de pagar ainda, a dois contos de réis por ano, durante quatro, mais oito perfazendo tudo vinte contos”. Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Ver Correspondência, II, p. 142.
25 Esta a versão que ouvimos de M. Paulo Filho e que foi divulgada, embora sem a revelação de informante, numa reportagem, sob o título “Jornalistas de outrora”, a que apareceu num jornalzinho de vida efêmera, circulação restrita aos sócios da Associação Brasileira de Imprensa, dirigido por Amador Cisneiros, o Arabi, ano I, n. 1, 23/02/1949.
26 Diário íntimo, p. 192.
27 Diário íntimo, p. 193. No arquivo do Ministério da Guerra, encontram-se dois atestados médicos, referentes a esse período. O primeiro, de Aristides Caire, aconselha ao doente repouso de um mês, de 1º a 31 de agosto de 1917. O outro, de Manuel Ribeiro Rodrigues da Fonseca, informa que Lima Barreto está com nefrite.
28 Bagatelas, p. 161-162.
29 “No ajuste de contas”, artigo de Lima Barreto, em A.B.C., Rio de Janeiro, 11/05/1918 (Bagatelas, p. 86-95).
30 “Vera Zassúlitch”, artigo de Lima Barreto, em Brás Cubas, Rio de Janeiro, 25/07/1918. “Não posso negar”, escreve neste artigo, “a grande simpatia que me merece um tal movimento; não posso esconder o desejo que tenho de ver um semelhante aqui, de modo a acabar com essa chusma de tiranos burgueses, acocorados covardemente por detrás da Lei, para nos matarem de fome, elevando artificialmente o preço dos gêneros e artigos de primeira necessidade, como: o açúcar, a carne, o feijão, o arroz, o café, o sal, o pano, à custa de estancos, de trusts, de corners, de ‘alívios’, tráficos de homens e outras inacreditáveis espécies de assaltos à economia de toda uma população miserável, que já não tem por si nem os ministros do Evangelho, pois os padres, freiras e irmãs de caridade, todo o clero enfim, está amarrado à cauda de semelhantes opressores e os apoia de todas as formas” (Bagatelas, p. 70).
31 O pedido de aposentadoria foi apresentado a 29/07/1918, “julgando-se o requerente inválido para o serviço público e contando mais de 10 anos de serviço público, na forma da Constituição e das leis”. Arquivo do Ministério da Guerra.
32 “Da minha cela”, artigo de Lima Barreto, em A.B.C., Rio de Janeiro, 30/11/1918 (Bagatelas, p. 96-105).
33 Diário íntimo, p. 202.
XII Até A 5ª edição aparece a expressão “imprensa amarela”. Em conversa particular, em 1990, depois da leitura de minha tese de doutoramento, em 1989, onde cito esta passagem da biografia, Dr. Francisco comentou comigo que não lhe agradava mais ter usado a expressão “imprensa amarela” para designar pequenos e combativos jornais. Passou a usar outras expressões como “imprensa libertária”. (N.R.)