Gonzaga de Sá

[...] o Acaso, mais do que outro qualquer Deus, é capaz de perturbar imprevistamente os mais sábios planos que tenhamos traçado e zombar da nossa ciência e da nossa vontade. E o Acaso não tem predileções [...].

(Gonzaga de Sá, p. 46)

Durante dois meses, Lima Barreto ficou em tratamento no Hospital Central do Exército. De novembro de 1918 a janeiro de 1919. Nesse período, acontecem pelo menos duas coisas importantes na vida do escritor: o contrato com Monteiro Lobato para a publicação do Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá e o decreto do presidente da República, aposentando-o da Secretaria da Guerra, isto é, a carta de libertação da “galé burocrática”, onde, bem ou mal servira 14 anos, 3 meses e 12 dias, tempo líquido de serviço público.1

Internara-se no Hospital com a clavícula quebrada, numa crise de alucinação alcóolica. Ali fora recolhido pela mão dos colegas da repartição, de onde havia desaparecido, fazia mais de um mês, para se entregar por inteiro à bebida. Por fim, desaparecera da própria casa, entrando a vagar pelos subúrbios. Antônio Noronha Santos – sempre o fiel Santos –, que saíra a procurá-lo, a pedido da família, encontrou o escritor junto à plataforma da estação de Todos os Santos, completamente desvairado. Sentado, ao pé de uma sarjeta, atirava níqueis no cano do esgoto.

– Que é isso, Barreto? – perguntou-lhe o amigo. E ele, sem tirar os olhos do que estava fazendo, respondeu:

– É para os diabos. Para os diabos.2

Uma semana depois, do seu quarto de enfermo, no Hospital Central do Exército, remeteria os originais do Gonzaga de Sá a Monteiro Lobato, que não tardou em responder ao romancista:

“São Paulo, 15 de novembro de 1918.

Prezadíssimo confrade e amigo.

Recebi a sua carta de 9 do corrente e com ela os originais, que não li, nem é preciso, visto como estão assinados por Lima Barreto.

A Revista do Brasil tem muito gosto em editar essa obra e o faz nas seguintes condições: como é pequena, podendo dar um volume aí de 150 pgs. mais ou menos, convém fazer uma edição de 3.000 exemplares em papel de jornal que permita vender-se o livro a 2$000 ou no máximo 2$500; neste caso, proponho 50% dos lucros líquidos ao autor, pagáveis à medica que se forem realizando.

Podemos fazer mais outra proposta: a Revista explorará a primeira edição tirada nas condições acima, mediante o pagamento de 800$000 no ato da entrega dos originais; ou de 1:000$000 em duas prestações – uma de 500$000 pela entrega dos originais e a outra três meses depois de saído o livro.

Se lhe servem estas condições, podemos firmar contrato imediatamente.

Sem mais, disponha do amigo com probabilidades de se tornar também editor (a.) J. B. Monteiro Lobato.”3

Era a primeira vez que Lima Barreto recebia uma proposta dessas. Até então, nenhum editor o havia procurado, com semelhante oferecimento. Todos os seus romances tinham sido publicados por sua própria iniciativa, pedindo, oferecendo, ou pagando ele mesmo a edição. Ainda há pouco, vendera os direitos autorais definitivos, “para todo o sempre”, de um livro, Os Bruzundangas, por 70 mil-réis.4 Quanto recebera pela publicação em folhetins de Numa e a ninfa? Uma miséria, e assim mesmo aos bocados.5

O gesto de Monteiro Lobato era, porém, mais de escritor que de comerciante. De colega para colega. Os dois escritores não se conheciam pessoalmente. Ao assumir a direção da Revista do Brasil, ao mesmo tempo em que iniciava a sua aventura de editor, o escritor paulista pedira a Lima Barreto, em setembro, que enviasse colaboração. A Revista precisava de “gente interessante”, que escrevesse “sem nenhuma dessas preocupaçõezinhas de toilette gramatical que inutiliza metade de nossos autores”. A Revista, dizia o autor de Urupês, é um “ninho de medalhões e perobas”, e o público estava a pedir “contos, romances, o diabo, mas à moda do Policarpo Quaresma, da Bruzundanga, etc.”, e terminava por advertir: “A confraria é pobre, mas paga”.6

No Hospital, Lima Barreto não interrompeu a sua atividade jornalística. E continuou a escrever no A.B.C., logo que se livrou do aparelho de gesso. Seria incapaz de ficar em silêncio, diante do que se passava lá fora, além dos muros da sua enfermaria. A 18 de novembro, a União dos Trabalhadores havia declarado a greve geral. Os anarquistas estavam à frente do movimento. A imprensa tomara posição contra os grevistas, e apoiava as violências da polícia, apresentando os mentores da rebelião como malta de estrangeiros sem escrúpulos, exploradores do proletariado brasileiro. Nos artigos de solidariedade aos grevistas, que escreveu no hospital, não usa panos quentes. A linguagem é a mesma de sempre. Direta e vigorosa.

“[...] o Senhor Aurelino [...]”, diz ele, dirigindo-se ao chefe de polícia, “deu agora para Fouché caviloso, para Pina Manique ultramontano do Estado, para Trépoff, para inquisidor do candomblé republicano, não hesitando em cercear a liberdade de pensamento e o direito de reunião”. E, no mesmo artigo, publicado no A.B.C., duas semanas depois da greve geral, adverte: “A teimosia dos burgueses só fará adiar a convulsão que será então pior; e eles se lembrem, quando mandam cavilosamente atribuir propósitos iníquos aos seus inimigos; pelos jornais responsáveis; lembrem-se que, se dominam até hoje a sociedade, é à custa de muito sangue da nobreza que escorreu da guilhotina, em 93, na raça da Greve, em Paris. Atirem a primeira pedra [...]”.7

Dir-se-ia que estava à ação direta. À agitação das portas das fábricas. À discussão nas assembleias dos sindicatos. E até mesmo aos conciliábulos secretos, em que os maximalistas brasileiros, animados com a vitória da Revolução Russa, traçavam planos mirabolantes para a tomada do poder.

O motim de 18 de novembro fora desfechado com esse objetivo, muito embora se soubesse de antemão que era, se não impossível, muito difícil alcançá-lo. Entre os chefes do movimento estava Astrojildo Pereira, que dirigia O Debate, o panfleto para o qual Lima Barreto escreveu toda uma série de artigos, atacando a plutocracia e os exploradores da guerra, dizendo mesmo que era chegada a hora de o povo “se libertar de uma minoria opressora, ávida e cínica”. E, para isso, só havia um remédio: empregar a violência.8

Pregava a revolução com coragem, com desassombro. Mas não passaria disso. Sua definição puramente intelectual não se complementaria na atividade propriamente revolucionária, como acontecia por exemplo com um Astrojildo Pereira ou mesmo com um Domingos Ribeiro Filho, seu colega na Secretaria da Guerra. Esses, sim, eram da ação direta. Ele, não. Limitar-se-ia a dizer muito claramente o que pensava. E nada mais. Ao artigo, que publicou no A.B.C., logo depois de deixar o Hospital Central do Exército, chamaria “desabafo pessoal”.

O depoimento é curioso. Trata-se de uma verdadeira explicação das suas atitudes anteriores à aposentadoria, dirigida aos que o tomavam como maluco, em face do seu comportamento na sociedade, quer como escritor, quer como funcionário público. Nesse artigo, ele confessa:

“Esperava desde muito estes dias de completa liberdade, de independência quase total, para poder dizer da minha pobreza a franca verdade aos poderosos e ricos que, assim se fizeram por toda a sorte de maneiras, honestas e desonestas. Hei de dizer-lhes aos poucos [...].

“Durante os quinze para os dezesseis anos em que guardei as conveniências da minha situação burocrática, comprimi muito a custo a minha indignação e houve mesmo momentos em que ela, desta ou daquela forma, arrebentou.

“Muitas atitudes minhas, incompreensíveis aos olhos desses fariseus por aí, vinham do angustioso recalque dos ímpetos de minha alma e da obrigação em que estava, de dizer pela metade, aquilo que eu podia dizer totalmente.”9

Quem assim fala não está preso a doutrinas, nem a partidos. É um individualista cem por cento, como o cético e plácido Gonzaga de Sá, a quem só interessava o indivíduo em si, e não a coletividade. “Os indivíduos me enternecem; isto é, o ente isolado a sofrer; e é só! Essas criações abstratas, classes, povos, raças, não me tocam [...].”10

Neste ponto, pelo menos, o panfletário se identifica com a personagem.

É evidente que, se as coisas tivessem corrido doutro modo, estaria, agora, em condições de gozar tranquilamente a sua aposentadoria, vivendo lá mesmo, na modesta casa do subúrbio, a “Vila Quilombo”, tal como a denominava, num misto de ironia e carinho, e que ficava no alto da Rua Major Mascarenhas, em Todos os Santos, “na extremidade de uma pequena eminência sobre a velha Estrada Real de Santa Cruz”, de onde divisava pela frente a Serra dos Órgãos e, aos fundos, “por cima do casario suburbano”, as montanhas do Andaraí.11

Gostaria de viver em paz, escrevendo os seus livros, pois, na verdade, apenas havia iniciado a sua carreira literária. Caminhava agora para a maturidade. Tinha projetos novos, diferentes. Poderia completar a sua obra.

Quem sabe pensaria todas essas coisas, ao subir a ladeira, de volta a casa, por entre as cantigas de roda da meninada da vizinhança, naquela mesma noite de abril de 1919, em que escreveu um artigo, publicado depois em jornal, e que mais parece, pelas confissões que contém, uma página de memórias.

A presença das crianças levou-o, por um instante, para um outro mundo – que era afinal o seu, talvez a Kamtchatka entrevista na primeira mocidade, longe de toda preocupação que não fosse a literatura, liberto da rotina de todo o dia, sem pensar em política, em dinheiro, em nada além do seu sonho de arte.

“Durante as cinco ou seis horas que passei no centro da cidade”, diz ele, “tudo o que conversei, tudo o que ouvi, tudo o que percebi nas fisionomias estranhas, foram graves preocupações. Não são já de dinheiro, não é tanto o maximalismo que amedronta os pobretões, não é também a fórmula Rui-Epitácio que abala o povo e faz cansar os lindos lábios das mulheres. Meu pensamento vem pejado de questões importantes, algumas para mim unicamente, e outras para os meus descendentes, que não terei.

“Subo a ladeira e logo dou com uma roda de crianças a cantar:

Ciranda, cirandinha!

Vamos todos cirandar!

Vamos dar a meia-volta,

Volta e meia vamos dar

“Paro para ouvi-las, paro um pouco, e, continuando a voltear, as meninas e infantes emendam:

O anel que tu me deste

Era vidro e se quebrou;

O amor que tu me tinhas

Era pouco e se acabou!

“Parado ainda, considero aquela dúzia de crianças de várias origens e diversa pigmentação, pondo-me a pensar na importância de tanta coisa fútil que me encheu o dia, para as quais devia ter o transcendente desprezo e a superior despreocupação que aquela meninada tem e manifesta com seu brinquedo pueril e inocente.

“Se faz lua, então eu me lembro de ver o céu, o que raras vezes faço e fiz. Quando andei fingindo que estudava astronomia, nunca quis observar estrelas pela luneta do teodolito. Preferi sempre encarregar-me do cronômetro que repousava no chão.”12

Afeiçoara-se à vida do subúrbio. Era seu costume, nos períodos de abstinência, sair pela manhã, a dar o seu “passeio filosófico e higiênico pelos arredores”,13 terminando por passar um quarto de hora, ou talvez mais, na venda de “Seu” Ventura, a ler os jornais do dia e a conversar com o caixeiro, a quem doutrinava sobre maximalismo.14

O botequim era o seu clube. Ele mesmo o dizia, pronunciando a palavra “escrupulosamente, à inglesa, ‘clâbe’”.15

Em torno do escritor, formava-se quase sempre uma roda de conhecidos, gente simples, que ia conversar com ele simplesmente pelo prazer de conversar ou pedir-lhe conselhos. “[...] não sei por que”, escreveu, certa vez, “os humildes e os pobres têm-me na conta de pessoa importante, poderosa, capaz de arranjar empregos e solver dificuldades”.16 Todos o estimavam. Tratavam-no com simpatia e respeito. E a prova disso está no grande número de pessoas que o procuravam para padrinho dos filhos.

Em artigos de jornal, quando não no Diário íntimo, Lima Barreto faz mais de uma referência a esses amigos humildes – “Seu” Chiquinho, D. Minerva e tantos outros –, que lhe forneciam notas ou indicações nas suas pesquisas sobre folclore,17 ou apenas despertavam nele alguma recordação amável, como O Velho “Chambá”, antigo servente da Escola Politécnica, no seu tempo de estudante, de quem foi amigo o resto da vida, e que, ao morrer, deixou ao escritor os poucos livros que possuía.18

Aquela gente simples, é claro, aceitava o romancista tal como ele era. Diante dos seus desregramentos, teriam, com certeza, a mesma reação dos ingênuos personagens de Clara dos Anjos, ao verem passar Leonardo Flores, o poeta-boêmio, cambaleante e sujo, pelas ruas, quando não o encontravam estendido à beira das calçadas, na última degradação da bebedeira. “O povo sabia vagamente que ele tinha celebridade. Chamava-o – o poeta. No começo, caçoava com ele, mas ao saber da sua reputação, deram em cercá-lo de uma piedosa curiosidade.

“– Um homem desses acabar assim – que castigo! dizia um.

“– É ‘cosa’ feita! Foi inveja da ‘inteligença’ dele! – dizia uma preta velha. – Gentes da nossa ‘cô’ não pode ‘tê inteligença’! Chega logo os ‘marvado’ e lá vai reza e ‘fêtiço’, ‘pa perdê’ o homem, rematava a preta velha.”19

Mas Lima Barreto jamais teria a paz desejada, mesmo depois de aposentado. Era inútil fugir à realidade da vida. Ao fim da ladeira em que morava, encontraria sempre o espetáculo imutável, a que se acostumara desde a adolescência: o pai demente.

Naquele mesmo artigo, em que se despede da Secretaria da Guerra, num “desabafo pessoal” não se lembra de omitir o anátema que o persegue:

“Não fora a grave dor doméstica que me ensombra a existência, eu me daria por verdadeiramente feliz e suficientemente experimentado. Tendo passado por diversos meios os mais desencontrados possíveis, eu me julgo conhecedor bastante das coisas deste mundo, para, com os elementos da vida comum, organizar uma outra de meus sonhos, com a qual minore, só no criá-la, a mágoa eterna e inapagável que haja talvez em mim e me turve as alegrias íntimas.”20

É sob esse estado de espírito que, ao deixar o Hospital Central do Exército, Lima Barreto acompanha a impressão do Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá.

Escrito na mesma época do Recordações do escrivão Isaías Caminha, não se sabe se pouco antes ou pouco depois, o pequeno romance sofrera pelo menos duas revisões: em começos de 1918, data do prefácio, e no fim do mesmo ano, quando o autor, ainda no Hospital, teve à mão a cópia dos originais, mandada datilografar pelo editor.21

Fossem poucas ou muitas tais emendas, o certo é que acabou por considerá-lo, de todos os seus livros, o único começado e acabado, quer dizer, a sua obra mais perfeita.22

Semelhante juízo, ainda que verdadeiro, bem pode refletir apenas a euforia do escritor, no momento em que, mais uma vez, afirmava a sua personalidade – o lado positivo da sua personalidade – perante a sociedade, da qual se sentia um proscrito.

Era, afinal de contas, um homem que obtivera alta do Hospital Central do Exército, com a notificação de que ali fora para tratar-se de uma doença aviltante: “alcoolismo crônico”.23

O Gonzaga de Sá significaria assim um objeto de compensação a esse sentimento. E não é só. Ao contrário dos demais, uma série de circunstâncias favoráveis cercaria o aparecimento do livro. Tudo correra, desde o convite de Monteiro Lobato, de um modo surpreendente. Da entrega dos originais ao volume exposto à venda nas livrarias não tardariam mais do que dois meses e meio. E o escritor – fato inédito na sua vida – era bem pago por um trabalho intelectual, recebido, além do mais, por entre aplausos de velhos e novos expoentes da crítica, como João Ribeiro e Tristão de Ataíde.24

Como se tudo isso não bastasse, Lima Barreto chegaria mesmo a exigir do mundo burguês uma verdadeira reparação, candidatando-se na vaga de Emílio de Meneses à Academia Brasileira de Letras. O poeta boêmio, que conhecera desde os primeiros anos da mocidade, fora, como ele, um homem condenado pelos literatos bem-pensantes, num país onde a literatura não passava de “uma continuação do exame de português”.

A eleição de Emílio de Meneses constituíra uma surpresa. Tivera mesmo a sua ponta de escândalo. E Lima Barreto, ao inscrever-se no prélio acadêmico, pensou em repetir a aventura, movido com certeza por aquele mesmo “desejo de escandalizar”, isto é, a necessidade de se afirmar no meio social, que o fizera estrear nas letras com o Isaías Caminha, e não com o Gonzaga de Sá.25

A Academia, porém, não lhe quis abrir as portas. Os concorrentes eram fortíssimos, Humberto de Campos e Eduardo Ramos, ambos prestigiados dentro e fora das paredes da imortalidade. A vaga continuou aberta. O romancista conseguira somente dois sufrágios, no primeiro escrutínio. E nos três restantes, apenas um.

Esse voto constante é atribuído a João Ribeiro, o mestre cético e irônico, que ainda na véspera havia escrito um artigo cheio de respeito e admiração sobre o Gonzaga de Sá, colocando o seu autor entre os “poucos, pouquíssimos que poderiam disputar-lhe [à Academia] essa consagração”.

Apesar das restrições à vida boêmia do escritor, em contraste com o ambiente do cenáculo, que “não é nem pode ser o País da Boêmia”, apesar de tudo, conclui o crítico no seu artigo, tido por alguns como um voto a descoberto: “Lima Barreto entraria pela porta principal e talvez pela minha mão se fosse ela firme, e eu pudesse estender-lha”.26

Explicando a sua candidatura à Academia (ele fazia sempre questão de explicar as suas atitudes), Lima Barreto escreve a Monteiro Lobato:

“Nunca fui sinceramente candidato. A primeira vez que o fui, não sinceramente – é bem de ver – foi quando o Hélio [Lobo] se apresentou. Só para lhe fazer mal, porque eu o atrapalhava e me vingava das desfeitas que me fizera, tendo-me tratado antes, a modos de pessoa poderosa. A carta que enviei, embora registrada, desapareceu e Hélio, apesar do Gustavo Barroso, foi eleito maciamente. Sei bem que não dou para a Academia e a reputação da minha vida urbana não se coaduna com a sua respeitabilidade. De motu-proprio, até, eu deixei de frequentar casas de mais ou menos cerimônia – como é que eu podia pretender a Academia? Decerto, não.”27

Mais de uma vez atacou rudemente a Academia. Tinha, porém, respeito à instituição. Lamentava antes o desvirtuamento da sua finalidade, transformando-se – dizia o polemista numa expressão pitoresca – numa das “escoras sabichonas” de médicos, políticos e militares que pouco ou quase nada tinham a ver com a literatura.

“A Academia Brasileira começou com escritores, tendo estes por patronos também escritores; e vai morrendo suavemente em cenáculo de diplomatas chics, de potentados do ‘silêncio é ouro’, de médicos afreguesados e juízes tout à fait.”28

Sabia muito bem que jamais seria eleito. Daí o sarcasmo com que comentava, nos cafés, as consagrações extraliterárias, como por exemplo a de um Dantas Barreto, que conquistara a palma acadêmica pelos seus bordados de general.

“Esse”, teria dito Lima Barreto, “não levou um livro sob o braço; penetrou, em triunfo, com uma espada atravessada nos dentes!”.29

De qualquer forma, não se pode deixar de reconhecer que Lima Barreto respeitava a Academia. Desejava, em suma, conquistar a glória literária, ainda que fosse através de um diploma. O que fora na juventude um sonho intensamente vivido se transforma, agora, na necessidade de uma reparação a um escritor, fiel à sua vocação, que construíra a sua obra à custa de tantos sacrifícios, e que, ao fim de tudo, se sentia espoliado do prestígio, do reconhecimento, da glória, pois a vida só sabia premiar aos medíocres e aos espertos.

Se não se abre por inteiro na carta a Monteiro Lobato, fa-lo-á mais tarde, num artigo, em que rebate, com violência, os silêncios ou as restrições da imprensa em torno da sua candidatura, em 1921, na última arremetida que fez para ingressar na Academia.

“Se não disponho do Correio da Manhã ou do O Jornal”, diz ele, sempre se explicando, “para me estamparem o nome e o retrato, sou alguma coisa nas letras brasileiras e ocultarem o meu nome ou o desmerecerem, é uma injustiça contra a qual eu me levanto com todas as armas ao meu alcance.

“Eu sou escritor e, seja grande ou pequeno, tenho direito a pleitear as recompensas que o Brasil dá aos que se distinguem na sua literatura.

“Apesar de não ser menino, não estou disposto a sofrer injúrias nem a me deixar aniquilar pelas gritarias dos jornais.

“Eu não temo abaixo-assinados em matéria de letras.”30

Estava escrito que a Academia não lhe reconheceria o valor. Um ano antes, batera sem resultado às suas portas, para concorrer com o Gonzaga de Sá a um prêmio, destinado ao melhor livro publicado durante o ano. Novo fracasso. O romance, que tanto prezava como obra literária, não conseguiria mais do que uma simples menção honrosa.31 E assim não tivera jamais a reparação desejada.

O episódio faz lembrar aquela fantasia, encaixada no primeiro capítulo do próprio Gonzaga de Sá, que conta a história do inventor e da aeronave. Do homem que construíra o seu aparelho de voar, com todas as minúcias da técnica, e quando ficou pronto, perfeito e admirável, à hora de fazer funcionar o motor, “a máquina não subiu”.32

Por culpa do Acaso ou ironia do Destino...

Notas

1 Ver o processo da aposentadoria, no Arquivo do Ministério da Fazenda.

2 Depoimento de Antônio Noronha Santos. Foram Domingos Ribeiro Filho e Mário Galvão, colegas de Lima Barreto na Secretaria da Guerra, que o recolheram, em seguida, ao Hospital Central do Exército.

3 Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Ver Correspondência, II, p. 50.

4 O recibo de Lima Barreto ao editor Jacinto Ribeiro dos Santos, existente no arquivo da Editora “A Noite”, foi registrado em cartório a 07/11/1922, seis dias após a morte do romancista, conforme documento em poder do Sr. Carlindo de Lima Barreto.

5 Diário íntimo, p. 182.

6 Carta de Monteiro Lobato a Lima Barreto, de 02/09/1918, pertencente ao arquivo do autor. Está assim redigida:

“São Paulo, 2. set. 918.

Prezadíssimo Lima Barreto.

A Revista do Brasil deseja ardentemente vê-lo entre os seus colaboradores. Ninho de medalhões e perobas, ela clama por gente interessante, que dê coisas que caiam no goto do público. E Lima Barreto, mais do que nenhum outro, possui o segredo de bem ver e melhor dizer, sem nenhuma dessas preocupaçõezinhas de toilette gramatical que inutiliza metade dos nossos autores. Queremos contos, romances, o diabo, mas à moda do Policarpo Quaresma, da Bruzundanga, etc. A confraria é pobre, mas paga, por isso não há razão para Lima Barreto deixar de acudir ao nosso apelo.

Aguardamos, pois, ansiosos a reposta, uma resposta favorável.

Do confrade (a.) Monteiro Lobato.

P.S. – Pelo amor de Deus leia e rasgue isto.”

Esta carta, que é inédita, não consta no trabalho de Edgar Cavalheiro, “A correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto”, publicado na Folha da Manhã, de São Paulo, nos dias 14, 21 e 28 de setembro de 1947, mas foi incluída no volume com o mesmo título, editado posteriormente à 1.ª edição deste livro (Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, “Os Cadernos de Cultura”, n. 76, 1955). Ver Correspondência, II, p. 49.

7 “Da minha cela”, artigo de Lima Barreto, em A.B.C., Rio de Janeiro, 30/11/1918. Ver Bagatelas, p. 96-105.

8 “Sobre a carestia”, artigo de Lima Barreto, em O Debate, Rio de Janeiro, 15/09/1917. Ver Marginália, p. 191-194.

9 “Quem será, afinal”, artigo de Lima Barreto, em A.B.C., Rio de Janeiro, 25/01/1919. Ver Bagatelas, p. 134.

10 Gonzaga de , p. 75.

11 “Graças a Deus”, artigo de Lima Barreto, em Careta, Rio de Janeiro, 17/09/1921. Ver Coisas do Reino do Jambon, p. 175-177.

12 “Um domingo de Páscoa”, artigo de Lima Barreto, em Hoje, Rio de Janeiro, 01/05/1919. O artigo traz a data de 02/04/1919 (Coisas do Reino do Jambon, p. 257-258).

13 “O prefeito e o povo”, artigo de Lima Barreto, em Careta, Rio de Janeiro, 15/01/1921. Ver Marginália, p. 117.

14 “Aposentado e satisfeito da vida, logo, nas primeiras horas, a minha satisfação é visitá-las na minha redondeza... Tem meu amigo, o Senhor Carlos Ventura, um excelente camarada e discípulo – Alípio. Prego-lhe todas as doutrinas subversivas que me vêm à cabeça; e ele me ouve e medita.” “Atribulações de um vendeiro”, artigo de Lima Barreto, em Careta, Rio de Janeiro, 27/09/1919. E também: “15 de novembro”, artigo de Lima Barreto, em Careta, Rio de Janeiro, 26/11/1921. Os artigos estão, respectivamente, em Vida urbana, p. 181-182, e Marginália, p. 35-36.

15 Agrippino Grieco, Vivos e mortos, p. 84. A passagem desse livro vem como prefácio de Marginália, p. 9-17.

16 Marginália, p. 90.

17 D. Minerva Correia da Costa, citada em duas crônicas da série: “As mágoas e os sonhos do povo”, publicadas na revista Hoje, Rio de Janeiro, a 16/04/1919 e 08/05/1919. A série está no volume Coisas do Reino do Jambon, p. 239 e segs., os artigos estão às p. 252-256 e 262-265. “Seu” Chiquinho aparece, numa referência simpática, no artigo “Velhos ‘a pedidos’ e velhos anúncios”, em Brás Cubas, Rio de Janeiro, 28/08/1918. Ver Vida urbana, p. 150-155.

18 Bagatelas, p. 166.

19 Clara dos Anjos, p. 94.

20 Bagatelas, p. 134.

21 Carta de Monteiro Lobato a Lima Barreto e de Lima Barreto a Monteiro Lobato, em 04/12/1918 e 18/12/1918. Ver Correspondência, II, p. 51-53.

22 “É uma mania de todos me dizerem que eu estou decaindo. No entanto, eu te juro que o Gonzaga de foi o único livro que eu comecei e acabei [...].” Carta de Lima Barreto a Carlos Süssekind de Mendonça, [s.d.]. Ver Correspondência, II, p. 178.

23 Documento constante do Arquivo do Exército.

24 O livro foi exposto à venda nas livrarias em fins de fevereiro e começos de março de 1919.

25 Ver a ata da sessão acadêmica de 24/04/1919. Arquivo da Academia Brasileira de Letras.

26 “Crônica literária”, por João Ribeiro, em O Imparcial, Rio de Janeiro, 21/04/1919.

27 Carta de Lima Barreto a Monteiro Lobato, [s.d.]. Cópia cedida ao autor pelo escritor Edgar Cavalheiro. Em 21/08/1917, o romancista dirigira uma carta a Rui Barbosa, apresentando a sua candidatura à vaga de Sousa Bandeira. Mas Rui Barbosa, que então presidia a Academia, não a levou ao conhecimento dos seus companheiros de cenáculo. Foi nessa ocasião que se elegeu Hélio Lobo, que era então secretário da presidência da República. O original da carta de Lima Barreto consta dos arquivos da Casa de Rui Barbosa. As duas cartas aqui referidas estão em Correspondência, II, p. 69, e I, p. 194-195.

28 “Mais uma”, artigo de Lima Barreto, em A.B.C., Rio de Janeiro, 31/03/1917. Ver Vida urbana, p. 118.

29 “Jackson de Figueiredo”, conferência de Amando Fontes, em A Ordem, Rio de Janeiro, v. XLII, n. 3, março de 1950, p. 150.

30 “A minha candidatura”, artigo de Lima Barreto, em Careta, Rio de Janeiro, 13/08/1921 (Marginália, p. 44).

31 Coubera o prêmio a Ronald de Carvalho, pela sua Pequena história da literatura brasileira. Foi relator do concurso o acadêmico Alberto Faria (o pobre), que se demora, no seu parecer, no exame à obra de Lima Barreto. Revista da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, v. X, ano XII, nos 19-20, setembro-dezembro de 1921, p. 179 e segs. Lima Barreto se candidataria pela terceira e última vez à Academia na vaga de Paulo Barreto, em 1921. Retirou, porém, a candidatura, “por motivos inteiramente particulares e íntimos”, em carta que dirigiu à instituição, a 28/09/1921. Ver arquivo da Academia Brasileira de Letras. Ver Correspondência, II, p. 217.

32 Gonzaga de , p. 45.