SEXTA PARTE

Declínio

Cemitério dos vivos

[...] essa história de loucura, como muitas outras, é simplesmente questão de sentido da contagem; para a esquerda do O, é negativo; para a direita, é positivo. Mais nada.

(Bagatelas, p. 73)

Em fins de 1919, repetir-se-ia o mesmo trágico episódio de 1914. Pela segunda vez, Lima Barreto seria conduzido num carro-forte da polícia para o hospício, durante uma nova crise de loucura. Passara toda uma noite, precisamente a noite de Natal, errando pelos subúrbios, em pleno delírio.

O próprio romancista é quem descreve a crise que o fez andar ruas e caminhos, cruzando aqui e ali o leito da estrada de ferro, na doída excursão noturna. Saíra sem dinheiro, à procura de uma delegacia, que jamais encontrou, para queixar-se “das coisas mais fantásticas dessa vida, vendo as coisas mais fantásticas que se possa imaginar”.

“No começo”, continua a impressionante narrativa, “eu gritava, gesticulava, insultava, descompunha [...]. Só a minha agitação, uma frase ou outra desconexa, um gesto sem explicação denunciavam que eu não estava na minha razão”.1

Com a roupa suja e rasgada, sapatos imundos, amanhecera por fim na porta da venda de “Seu” Ventura, onde já o aguardava o irmão, Carlindo, que tentou em vão levá-lo de volta para casa. O escritor exaspera-se. Todos o perseguem. Só vê inimigos diante de si. Só o cercam pessoas que dele exigem coisas absurdas. E, apontando para a rua, deblatera contra figuras inexistentes, subitamente criadas na sua imaginação doentia.

“Vejam! Ali fora! Aqueles sujeitos estão querendo me forçar a tocar violão, a cantar [...].”2

Delirava como o pai, doente há mais de quinze anos. João Henriques, o velho almoxarife aposentado, tinha também os seus inimigos invisíveis. E, não raro, quando as crises periódicas o atormentavam, gritos lancinantes desciam do alto da ladeira, repercutindo por toda a Rua Major Mascarenhas. Estaria Lima Barreto, como o pai, perdido para sempre? Não. Trinta dias de tratamento bastariam para que lhe dessem alta, permitindo-lhe que retomasse, logo após, a sua atividade de escritor. No hospício, o alienista que o examinara, na Seção Pinel, anotou as seguintes observações sobre o doente:

“É um indivíduo precocemente envelhecido, de olhar amortecido, fácies de bebedor, regularmente nutrido.

“Perfeitamente orientado no tempo, lugar e meio, confessa desde logo fazer uso, em larga escala, de parati; compreende ser um vício muito prejudicial, porém, apesar de enormes esforços, não consegue deixar a bebida.

“Por este abuso já passou certa vez três meses no Pavilhão, o que, entretanto, nada adiantou, voltando desde a saída a embriagar-se. Informa que as suas perturbações, quando aparecem, são em forma de delírios, sempre consequentes a um abuso mais forte e mais demorado.

“Foi o que sucedeu desta vez, alarmando um seu irmão que julgou conveniente a sua internação, apesar de seus protestos.

“Indivíduo de cultura intelectual, diz-se escritor, tendo já quatro romances editados, e é atual colaborador da Careta.

“Fala em seus últimos delírios, reconhecendo perfeitamente o fundo doentio deles e diz-se certo que tal só sucedeu graças às suas perturbações mentais.

“Estes delírios, que são facilmente descritos pelo paciente, são de caráter terrificante, perseguidor, etc.

“Geralmente, a amnésia em relação às fases da embriaguez é completa, porém estes últimos delírios, segundo o próprio, passaram-se sem que estivesse em completo etilismo, motivo por que é capaz de descrevê-los.

“Mãe falecida tuberculosa. Pai vivo, aposentado no serviço da administração das Colônias de Assistência a Alienados; há 18 anos não sai de casa, preso de psicastenia ou lipemania, como informa o examinado.

“São notáveis os tremores fibrilares da língua e das extremidades digitais apresentados pelo paciente, bem como abalos e tremores dos músculos da face, mormente quando fala. Palavra algo arrastada e meio enrolada, certas vezes.”3

O escritor bem sentira a pouca importância que lhe dera o médico, para quem, conforme deixou registrado no Diário, os seus “méritos literários nada valiam”.4 Felizmente, poucos dias ficaria na Seção Pinel. Ao fim de uma semana, seria transferido para a Seção Calmeil, cujo alienista, sensível às coisas da arte da literatura, dispensaria cuidados especiais ao romancista, que entrara no hospício como indigente, e pela mão da polícia.

O carinho com que ali foi recebido, chegou mesmo a surpreendê-lo. É que o alienista era o Dr. Humberto Gotuzzo, grande figura do mundanismo, que simbolizava por assim dizer o tipo fútil “botafogano”, com que Lima Barreto ironizava os que hoje chamamos “grã-finos”. Fora nomeado muito jovem para o hospício, e fizera carreira brilhante e rápida. Triunfara facilmente. Era, em suma, a antítese de Lima Barreto.

No entanto, Gotuzzo tratou-o bem. Começou por citar-lhe as obras, puxando pela vaidade. O doente não disse palavra. O médico compreendeu, desde logo, que seria difícil conquistar a simpatia do escritor rebelado, que implicava certamente com o dândi. E facilitou-lhe tudo, oferecendo o seu próprio gabinete para que ele escrevesse as suas cartas e o seu diário. Deu-lhe livros e jornais.

Diante de tanta bondade, Lima Barreto foi cedendo aos poucos, sem permitir contudo maiores intimidades. Colocava-se sempre a distância, não prescindindo do tratamento cerimonioso de “doutor”.

“Era uma boa alma”, escreveu, a propósito de Gotuzzo, no “Diário do Hospício”, “em que o dandismo era mais uma aquisição que uma manifestação de superficialidade de alma e de inteligência.

“Não me achou muito arruinado e, muito polidamente, deu-me conselhos, para reagir contra o meu vício.”5

Neste ponto do seu “Diário do Hospício”,XIII que tantas indicações preciosas fornece sobre o comportamento de Lima Barreto, diante da vida, o romancista confessa a sua luta para dominar o vício, que pouco a pouco o vai aniquilando:

“Oh! meu Deus! Como eu tenho feito o possível para extirpá-lo e, parecendo-me que todas as dificuldades de dinheiro que sofro são devidas a ele, por sofrê-las é que vou à bebida. Parece uma contradição; é, porém, o que se passa em mim. Eu queria um grande choque moral, pois físico já os tenho sofrido, semimorais, como toda a espécie de humilhações também. Se foi o choque moral da loucura progressiva de meu pai, do sentimento de não poder ter a liberdade de realizar o ideal que tinha na vida, que me levou a ela, só um outro bem forte, mas agradável, que abrisse outras perspectivas na vida, talvez me tirasse dessa imunda bebida que, além de me fazer porco, me faz burro.” E como um grito que sai do fundo da alma, ele completa: “Não quero morrer, não; quero outra vida”.6

Quando Lima Barreto passou para a Seção Calmeil, já estava com as perturbações tóxicas muito atenuadas. Não obstante, ainda sofria algumas alucinações visuais. Via bichos, por exemplo. Uma vez aconteceu isso no próprio gabinete de Gotuzzo. À noite, era assaltado por pesadelos em que lhe apareciam não só animais – pulgas, percevejos, baratas subindo na cama –, como figuras monstruosas. Pela manhã, conservava a irritabilidade da noite maldormida. E tinha ideias delirantes, quando se referia a doentes ou enfermeiros que julgava seus desafetos.7

Fazia-lhe mal recordar os dias passados na Seção Pinel, onde o obrigaram a varrer o pavilhão e depois o jardim que dava para a frente do edifício.8

Na Seção Calmeil, o regime era diferente. E Lima Barreto pôde iniciar o seu “Diário do Hospício”, anotando impressões sobre a vida no manicômio, para um livro que pretendia escrever, logo que deixasse o lúgubre casarão da Praia da Saudade, conforme anunciou em entrevista à imprensa.

Para o repórter, que foi ouvi-lo, atraído, já se vê, pelo pitoresco jornalístico, apareceu “vestindo a roupa de zuarte, usada no estabelecimento, os cabelos desgrenhados e os dedos sujos de tinta, sinal evidente de que escrevia no momento em que fora chamado”.

Publicada os últimos dias da sua permanência no hospital, feita com inteligência, essa entrevista nada tem de sensacionalismo barato. É antes documento do maior interesse para o estudo da personalidade do escritor e do seu drama íntimo. O diálogo que o repórter reproduz é simples, natural, verdadeiro.

“– Então, Lima, que é isso?

“– É verdade. Meteram-me aqui para descansar um pouco. E eu aqui estou satisfeito, pronto a voltar ao mundo.

“– Boa, então, esta vidinha?

“– Boa, propriamente, não direi; mas, afinal, a maior, senão a única ventura, consiste na liberdade; o Hospício é uma prisão como outra qualquer, com grades e guardas severos que mal nos permitem chegar à janela. Para mim, porém, tem sido útil a estadia nos domínios do Sr. Juliano Moreira. Tenho coligido observações interessantíssimas para escrever um livro sobre a vida interna dos hospitais de loucos. Leia O cemitério dos vivos. Nessas páginas contarei, com fartura de pormenores, as cenas mais jocosas e as mais dolorosas que se passam dentro destas paredes inexpugnáveis. Tenho visto coisas interessantíssimas.

“– Mas, afinal, como vieste parar aqui?

“– Muito simplesmente. Estando um pouco excitado, é natural, por certos abusos, resolveu meu irmão que eu necessitava descanso. E, um belo dia, meteu-me num carro e abalou comigo para cá. Quando verifiquei onde estava, fiquei indignado. Essa indignação pareceu, então, aos homens daqui, acesso furioso de loucura e o seu amigo foi, sem maiores formalidades, trancafiado num ‘quarto forte’.”9

Como se vê, é o próprio Lima Barreto a desfazer a lenda, vulgarizada nos suplementos literários da imprensa, vinte anos após a sua morte, de que era ele quem procurava espontaneamente o hospício, para repetidas estações de cura, e ali o bondoso diretor, que se chamava Juliano Moreira, lhe oferecia o “melhor quarto’, a fim de que pudesse escrever tranquilamente os seus romances.10

Ora, Lima Barreto só veio a conhecer Juliano Moreira na segunda vez em que, sempre pela mão da polícia, como um joão-ninguém sem eira nem beira, dera entrada no hospício. É certo que Juliano tratou-o com simpatia, ouviu-lhe as queixas com paciência, mandando afinal que o transferissem da enfermeira de indigentes para a dos pensionistas.

“Na segunda-feira”, conta o romancista no “Diário do Hospício”, “antes que meu irmão viesse, fui à presença do doutor Juliano Moreira. Tratou-me com grande ternura, paternalmente, não me admoestou, fez-me sentar a seu lado e perguntou-me onde queria ficar. Disse-lhe que na Seção Calmeil. Deu ordem ao Sant’Ana [enfermeiro-chefe] e, em breve, lá estava eu”.11

É esta – convém frisar – a única referência ao nome de Juliano Moreira que se encontra no “Diário do Hospício”. Em O cemitério dos vivos, Vicente Mascarenhas é chamado à presença do diretor. No caminho, o guarda pergunta-lhe se o conhece. A reposta afirmativa deixa o enfermeiro intrigado. E o personagem, alter ego do romancista, continua:

“Conhecia perfeitamente o diretor e travei conhecimento com ele espontaneamente. Havia em mim uma cega atração para ele e eu me espantava que ele pudesse, sem barulho, mansamente, se fazer até onde estava. Pouco conhecia de sua vida... todos gabavam muito o seu talento, a sua ilustração; mas – não era bem por isso que eu o amava. Nunca lhe tinha lido um trabalho, só mais tarde me foi dado fazer isso, não tinha nenhuma ilustração no assunto do seu saber para julgar; mas, conquanto sentisse logo um homem superior, eu o amava pela sua exalação de doçura.”12

O hospício não foi, nem poderia ter sido, para Lima Barreto, um hotel de estação de águas. Pelo contrário. O escritor guardaria sempre a dolorosa sensação de rebaixamento moral dessas sucessivas internações. À grande amargura, que ensombrava toda a sua vida, desde os primeiros anos da juventude – a doença paterna – juntaria agora mais essa carga do ressentimento.

“Digo com franqueza”, escreveu no “Diário do Hospício”, “cem anos que eu viva, nunca poderá apagar-se da minha memória essas humilhações que sofri”. Era com verdadeiro pavor que pensava na possibilidade de uma nova internação: “Estou seguro que não voltarei pela terceira vez; senão saio dele [do Hospício] para o São João Batista, que é próximo”.13

Não se conformaria jamais com a “estúpida violência policial” de que fora vítima, pois, segundo suas próprias palavras, não era nenhum “indigente” ou “desclassificado”, para que a polícia o tomasse como doido e o fizesse recolher ao hospício, “como se o casarão da praia da Saudade fosse uma prisão doméstica, e como se nós as tivéssemos na nossa legislação”.

A polícia teria assim outros objetivos. Queria a desmoralização do anarquista. É esta, pelo menos, a versão autêntica, que nos insinua o escritor, no seguinte trecho do artigo que publicou no A.B.C., protestando contra as suas internações no hospício:

“A provável intromissão indébita da polícia em cousas de minha vida doméstica, assim considerada pelas leis, e, para a qual, ela não tem competência legal absolutamente, era para mim um foco de desgostos e de ralação. Abusando da inexperiência de minha irmã, nessas cousas de lei, e da simplicidade e também da ignorância dos meus irmãos, não faltava malvado aí que não lhes aconselhasse tal intromissão para a qual também eles, os meus irmãos, eram insuficientes legalmente e para o julgamento do meu estado por não sobrar, em uma, sentimento da atividade que me absorvera, em outros, de desenvolvimento mental e a instrução necessária. Serviam, sem querer, aos que me queriam desacreditar [...].”14

Esse, o estado de espírito do escritor, ao emergir do “cemitério dos vivos” para a tona dos acontecimentos cotidianos. Declarando-se vencido, como que só pensava em antecipar “o doce prazer de abraçar a Morte”.15 Suicidava-se lentamente, pois sabia que o álcool havia de matá-lo aos poucos, bebendo muito, bebendo mais do que nunca, ansioso por apressar o encontro decisivo, que o libertaria das angústias e dos sofrimentos. Chega mesmo a escrever o elogio da morte, numa página em que mais uma vez releva o sentimento da sua própria derrota: “Gosto da Morte porque ela é o aniquilamento de todos nós; gosto da Morte porque ela nos sagra”. E, mais adiante, na mesma crônica: “A vida não pode ser uma dor, uma humilhação de contínuos e burocratas idiotas; a vida deve ser uma vitória. Quando, porém, não se pode conseguir isto, a Morte é que deve vir em nosso socorro”.16

Rapidamente, Lima Barreto se aproximava do fim. Ainda não havia completado 40 anos e já parecia um velho. Um velho triste e desiludido. Assim o retrata Enéias Ferraz, que iniciava, por esse tempo, a sua carreia de escritor:

“A cabeça embranquecera e, na face, raramente havia um sorriso. Como o grande torturado de Jerusalém, ele trazia na máscara essa expressão suprema da alma humana: eu sou triste até a morte [...].”17

Noutro depoimento, correspondente à mesma época, Ribeiro Couto fala da impressionante decadência física a que chegara o romancista:

“Eu, com 20 anos, tendo lido o Isaías Caminha, o Policarpo Quaresma e o Gonzaga de Sá, não podia compreender como aquele grande escritor, de tão puro estilo, tão natural, precisamente o ‘antimulato’ em matéria de estilo, fosse o mesmo ‘Lima’ – ‘o Lima, não sabe?’ – de barba por fazer, chapéu de palhinha encardida, camisa suja e manchada no peito, roupa coçada malcheirosa, com uma morrinha que não se sabia se era de vômitos da véspera ou suor azedo. Como tanta grandeza e tanta pureza podiam viver sob aquela crosta áspera de mulataço vermelho? A vermelhidão de Lima Barreto impressionava-me também; eu ficava sem saber se era álcool ou febre. E, ao andar, uma calma perfeita, como para dominar a tendência ao cambaleio.”18

O boêmio se despedia da vida, abolindo todas as conveniências. Monteiro Lobato, que viera ao Rio, especialmente para conhecê-lo, um ano depois do lançamento da Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, localizara Lima Barreto numa das tascas do centro da cidade, mas em tal estado que não tivera ânimo para se apresentar àquele que considerava o maior de todos os nossos romancistas.19

Nos cafés e nas livrarias, antigos colegas da Escola Politécnica, medíocres inteligências, feitos então personagens importantes, evitavam-lhe o contato. Ah! os vitoriosos! Desviavam-se do encontro desagradável com aquele fantasma do passado, em cujo olhar brilharia talvez uma ponta de ironia.

É certo que nem todos o desprezariam. Houve mesmo um amigo doutros tempos que se lembraria do escritor, na hora do seu triste declínio. Ao ser eleito governador do Piauí, contam que João Luís Ferreira, companheiro dos anos da mocidade, a quem é dedicado o Triste fim de Policarpo Quaresma, teria convidado a Lima Barreto para ocupar o cargo de diretor da Imprensa Oficial do Estado. Dera uma desculpa. O Piauí era muito longe. Além disso, o convite poderia esconder (quem sabe?) um gesto de piedade. E gestos de piedade, mesmo na desgraça, o escritor havia sempre de repelir.20

De qualquer maneira, não seria capaz de morar em outra cidade senão no Rio de Janeiro, ou de deixar o pai velho e doente, que precisava do seu arrimo.

Ainda que se sentisse “como um velho tronco desenraizado num areal”,21 só poderia mesmo viver na “sua” cidade, como Lima Barreto amorosamente chamava ao Rio de Janeiro, aplicando o possessivo com a mesma ênfase com que se intitulava de boca cheia um “carioca da gema”.22

O escritor se confundia com a cidade natal. E se completavam. Como o memorialista do Gonzaga de , ele e o Rio se sentiam uma coisa só: “Saturei-me daquela melancolia tangível, que é o sentimento primordial da minha cidade. Vivo nela e ela vive em mim”.23

Nos últimos anos da vida, não estaria, pois, disposto a modificar os velhos hábitos de morador dos subúrbios, a suprimir aquela mesma vidinha literária dos cafés, das livrarias e das redações de jornal. Nunca deixou de praticá-la. Ia à cidade todos os dias e ali chegando “corria peripateticamente, as suas capelinhas prediletas, demorava-se um tanto em palestra na Livraria Schettino ou ia a uma redação qualquer levar o seu último escrito. À noitinha, já com o passo pesado, quase de artrítico ou de beribérico, e com as persianas dos olhos ainda mais arriadas, retornava ao seu tugúrio distante. Nessa viagem de volta, punha-se sempre a falar sozinho, dizendo-se, em voz alta, para assombro dos demais passageiros, um grão-duque russo que corria, incógnito, o Brasil. Isso não o impedia, aliás, de proclamar-se, pouco depois, maximalista exaltado, pedindo partilha das terras e a supressão das leis [...]”.24

Esse pequeno quadro, descrito por Agrippino Grieco, que bem conhecia o escritor, dá-nos uma visão perfeita de Lima Barreto, na etapa final da sua vida.

De fato, gostava de andar. Não só no centro urbano, vendo o movimento das ruas, perdido em meio à multidão, como em longas caminhadas pelos subúrbios, por todo o Rio de Janeiro. Padecia da mania ambulatória, mesmo no uso da razão, a ponto de surpreender um jovem escritor da província, Luís da Câmara Cascudo, que se dispusera a acompanhá-lo num passeio pela cidade, da Avenida Rio Branco à Gávea, passando por Copacabana, Ipanema e Leblon. Extenuado, o rapaz deixaria o romancista ao fim da maratona. Tinham chegado à Gávea, mas Lima Barreto insistia em continuar andando. É o próprio Cascudo quem o revela: “Aí, com várias explicações, deixei-o. Voltei furioso e molhado (de suor). Lima Barreto continuou, pensando, ruminando, abstraído, insensível à distância. Só se deteve, disse-me depois, na Tijuca”.25

O andarilho tinha sempre os sapatos imundos, “em que se poderia escrever a carvão, de empoeirados”.26 E, como jamais os engraxava, assim se deixava ficar, por um instante, em determinado ponto estratégico da Rua do Ouvidor, junto à Chapelaria Watson ou à porta da Livraria Garnier, para contemplar o desfile das “melindrosas” e dos “almofadinhas”, que era como chamava à gente chic do tempo.

Ele, que se incluía na parte proscrita da população, fazia questão de aparecer sujo e malvestido na Rua do Ouvidor. E ali ficava, com o seu “esbodegado vestuário”, que constituía, afinal, a sua elegância e a sua pose,27 num apuro masoquista, a comparar os seus andrajos com as roupas da última moda.

“Isto acontece principalmente”, confessa o romancista, “nos dias em que estou sujo e barbado.

“A razão é simples. É que sinto uma grande volúpia em comparar os requintes do aperfeiçoamento da indumentária... com o meu absoluto relaxamento.”28

Não lhe bastava escrever contra os donos da vida. Na sua decadência física, como que timbrava em personificar um protesto ao vivo à sociedade burguesa.

Notas

1 O cemitério dos vivos, p. 51. Baseado no relato de Paulo Hasslocher, assim descreve o escritor Henrique Pongetti um desses delírios: “Lima Barreto foi apanhado a correr nu sobre os trilhos do seu subúrbio, durante uma crise alcóolica, repetindo a mesma fuga de Tolstói em Iasnaia Poliana durante uma crise moral provocada por brigas em família”. Ver “Lima Barreto”, artigo de Henrique Pongetti, em O Globo, Rio de Janeiro, 29/09/1948. É curioso notar, a propósito, a descrição que Lima Barreto faz do delírio de um dos seus personagens: “[...] quando o delírio alcóolico o tornava forte, despia-se todo e gritava heroicamente numa doentia e vaidosa manifestação de personalidade: – Eu sou Leonardo Flores” (Clara dos Anjos, p. 94).

2 Depoimento de Carlindo Lima Barreto.

3 Livro de Observações nº 64, da Seção Pinel do Hospital Pedro II, p. 140 e segs. Assinada pelo Dr. José Carneiro Airosa.

4 O cemitério dos vivos, p. 37.

5 O cemitério dos vivos, p. 44-45.

6 O cemitério dos vivos, p. 45.

7 Depoimento de Humberto Gotuzzo.

8 Entrevista de Lima Barreto ao jornal A Folha, Rio de Janeiro, 31/01/1920. Atribuía isso ao fato de ali ter ingressado como indigente. “No Hospício, também predomina o pistolão [...].”

9 Entrevista de Lima Barreto ao jornal A Folha, Rio de Janeiro, 31/01/1920. Atribuía isso ao fato de ali ter ingressado como indigente. “No Hospício, também predomina o pistolão [...].”

10 Autores e livros, suplemento literário de A Manhã, publicado semanalmente sob a direção de Múcio Leão (da Academia Brasileira de Letras). Rio de Janeiro, ano III, v. IV, n. 13, 18/04/1943. Número especial dedicado a Lima Barreto.

11 O cemitério dos vivos, p. 38-39.

12 O cemitério dos vivos, p. 197-198. Tais referências de um escritor eminentemente memorialista permitiram-me chegar à conclusão de que eram bastante superficiais as relações entre Lima Barreto e Juliano Moreira. Contestou-me Jaime Adour da Câmara em entrevista concedida à imprensa logo após o aparecimento da primeira edição deste livro. Afirmando que devia existir entre ambos pelo menos “excelente camaradagem”, citou o fato de ter sido levado à presença do psiquiatra pelo próprio Lima Barreto, em data que não sabe precisar. O encontro foi dos mais cordiais. Juliano recebera o romancista “com um luminoso sorriso”. “Terminada a consulta”, continua Jaime Adour, que ali fora como cliente-carona tratar de uma gripe, “Juliano Moreira dá ainda alguns momentos de atenção a Lima Barreto e finalmente convido o escritor a sair; este me diz que vai ficar na casa. Por alguns instantes? Não sei, nem indaguei. O certo é que voltei sozinho do Hospício”. (Ver “Lima Barreto e Jaime Adour”, em Revista Branca, Rio de Janeiro, outubro de 1952.) É bom esclarecer que Lima Barreto sempre deu entrada no hospício, nas duas vezes que lá esteve internado, pela mão da polícia, e só da segunda, repito, conheceu Juliano Moreira. O episódio referido bem que pode ter acontecido, em 1920, já que Jaime Adour da Câmara fixou residência no Rio em fins de 1919.

13 O cemitério dos vivos, p. 67 e 34.

14 Bagatelas, p. 137.

15 Gonzaga de , p. 37.

16 Marginália, p. 42.

17 “A morte do mestre”, artigo de Enéias Ferraz, em O País, Rio de Janeiro, 20/11/1922.

18 Carta de Ribeiro Couto ao autor deste livro. Belgrado, 20/03/1950.

19 O fato foi relatado pelo próprio Lobato a Gastão Cruls, que o transmitiu ao autor.

20 Segundo o senador Matias Olímpio, João Luís Ferreira fizera o convite, que o escritor não aceitou. Há porém outra versão, segundo a qual o convite teria ficado apenas na intenção, não fora o estado de decadência a qual chegara Lima Barreto. Em carta ao romancista, datada de 29/05/1920, Francisco Schettino fala com entusiasmo da possibilidade de irem ambos para o Piauí: “Estive, anteontem, com o doutor João Luís Ferreira; disse-me que qualquer dia destes te procurará. Agora, o que, mais e muito, me obsequiarias, uma vez, era o de falar a teu e a meu respeito, no Piauí. Vamos para lá? Estou nesse firme propósito. Não o estarás tu também? Viagem, clima, aspectos, não darão motivos para um novo romance?”. Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Ver Correspondência, II, p. 100. Dos amigos fiéis, não deve ser esquecido Félix Pacheco, irmão de João Luís Ferreira. Jornalista influente, senador da República e que seria ministro das Relações Exteriores no governo Artur Bernardes. Lima Barreto tratava-o afetuosamente “Zé Felix”. Não admitia que o atacassem. “Não é do Senhor Félix Pacheco; senador e redator-chefe do Jornal do Commercio, de quem falo. É do Félix, protetor dos escritores desprezíveis ou desprezados a quem me refiro e de quem só tenho recebido homenagens”, escreveu certa vez, corrigindo um juízo de Agrippino Grieco. “Fetiches e fantoches”, artigo de Lima Barreto, em Careta, Rio de Janeiro, 02/09/1922. Ver Impressões de Leitura, p. 170. O escritor possui também bons amigos entre militares, sendo de destacar os nomes dos generais Tasso Fragoso e Leitão de Carvalho.

21 Gonzaga de , p. 150.

22 “A mudança do Senado”, artigo de Lima Barreto, em Brás Cubas, Rio de Janeiro, 26/09/1918. Ver Feiras e mafuás, p. 220.

23 Gonzaga de , p. 33. Na terceira edição, como na segunda, há um imperdoável erro de revisão, pois aparece a palavra “mocidade”, em lugar de cidade. Está certo, porém, na primeira edição revista pelo autor, p. 23. O texto da Editora Brasiliense é, como cumpria, conforme a primeira edição, ver p. 40.

24 “Lima Barreto”, Vivos e mortos, por Agrippino Grieco, p. 85.

25 “Lima Barreto”, artigo de Luís da Câmara Cascudo, em Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 16/10/1938.

26 “O Lima Barreto que eu conheci”, artigo de José Vieira, em Revista do Brasil, Rio de Janeiro, 3ª fase, ano VI, n. 56, dezembro de 1943, p. 43-47.

27 Bagatelas, p. 138.

28 “Vestidos modernos”, artigo de Lima Barreto, em Careta, Rio de Janeiro, 22/07/1922.

XIII A edição do Diário do Hospício, publicado no volume O cemitério dos vivos, deve-se a trabalho de comovente dedicação do biógrafo, que teve que decifrar grande parte do manuscrito. Conhecido por sua letra de difícil leitura, nestas folhas escritas a lápis, em papel reutilizado, em circunstâncias especialmente difíceis, Lima Barreto faz observações fundamentais de forma muitas vezes ininteligível. O comovente manuscrito, guardado na Biblioteca Nacional, traz, a lápis, “traduções” do que estava escrito. FAB contou, em várias ocasiões, com a colaboração de Antônio Noronha Filho e outros contemporâneos de Lima Barreto para a compreensão da caligrafia do escritor. (N.R.)