Vila Quilombo
[...] minha modesta residência, que para enfezar Copacabana denominei Vila Quilombo [...].
(Marginália, p. 61)
Nos últimos anos, como em toda a vida, Lima Barreto permanecerá fiel à sua vocação de escritor. Ao mesmo tempo em que luta para se libertar do vício que o degrada, agarra-se à literatura como a um resto de naufrágio.
Tudo lhe fora recusado: o canudo doutoral, a ascensão na burocracia, o prêmio na Academia. A lembrança dessas marcas do seu desajustamento social transmitia-lhe a sensação de que falhara para o mundo e para si mesmo. Sob o ponto de vista sentimental, sentia-se também um derrotado. “Nunca amei; nunca tive amor”, diria pouco antes de morrer.1
Afinal, teria sido a ausência completa do amor a origem da catástrofe que, tendo desabado na juventude, repercutiria numa sucessão de desastres por toda a vida do romancista?
Ele próprio fizera a pergunta, num dos seus constantes solilóquios, por ocasião da segunda temporada no hospício:
“Essa questão do álcool, que me atinge, pois bebi muito e, como toda a gente, tenho que atribuir as minhas crises de loucura a ele, embora sabendo bem que ele não é o fator principal, acode-me refletir por que razão os médicos não encontram no amor, desde o mais baixo, mais carnal, até a sua forma mais elevada, desdobrando-se num verdadeiro misticismo, numa divinização do objeto amado; por que – pergunto eu – não é fator de loucura também?” E, noutro passo do mesmo depoimento íntimo, renovaria a pergunta, já não mais em tese, mas tratando do seu próprio caso pessoal: “Eu me indago, de mim para mim, se, por acaso, não é o amor que me corrói. Mas vejo bem que não. Passei a idade de tê-lo, fugindo dele, para que ele não me criasse sofrimento e não prejudicasse a minha ambição de glória”.2
Vivera sem amor. Sem o amor de mãe. Sem o amor de uma mulher, fosse amante ou esposa. Perdera a mãe, quando tinha apenas 7 anos. E a sombra dolorosa da morta, impressa na alma do menino hipersensível, jamais se dissiparia pelo resto da existência.
O pai adoecera, no instante em que mais precisava dele, mal saíra o escritor da adolescência. João Henriques bem que poderia ter exercido uma grande influência na carreira do filho, ajudando-o a vencer as resistências do mundo, homem culto e sensível que era, e, portanto, capaz de compreendê-lo. Amarga ironia. Morto em vida, perdido nas trevas da demência, o velho almoxarife só contribuíra para tornar o filho mais desgraçado ainda!
É bem de ver, neste ponto, a disparidade de educação e cultura entre Lima Barreto e seus irmãos, um dos quais guarda-civil e outro, condutor de trens. Restava-lhe apenas a irmã, Evangelina, a única pessoa, naquela família humilde, que poderia dar ao romancista a impressão de que não ficara de todo abandonado e só.
Mas o carinho da irmã – carinho dividido com a devoção filial e as preocupações de enfermeira do pai doente – não bastaria àquela natureza sensível e atormentada, ávida de afeto e de ternura. Necessitava de alguma coisa mais, diferente, que o fizesse esquecer de tudo o que o cercava, transportando-o para um outro mundo que ele mesmo não sabia definir qual fosse.
Um mundo de sonhos, talvez. Daí o desespero em que vivia, a oscilar de um extremo a outro, refocilando-se nas bebedeiras que se encadeavam uma após a outra, ou entregando-se por inteiro ao trabalho intelectual, trancado na sala da frente da Vila Quilombo, aquela sala que servia ao mesmo tempo de quarto de dormir e biblioteca.
No álcool, procurava anular-se por completo, ser esquecido, desaparecer. Na literatura, ao inverso, tentava afirmar-se, ser alguém, deixar em suma a marca da sua passagem na terra.
Desde 1917, na presciência da morte que se aproximava – a crônica “Elogio da morte” data do ano seguinte –, deu para organizar os seus papéis, pô-los em ordem, com o propósito de terminar os romances apenas esboçados, selecionar e depois reunir em volumes a colaboração dispersa em revistas e jornais.
O escritor começou por inventariar a biblioteca, com a ideia de posteriormente fazer um catálogo, pois era forte nesse boêmio – não fosse Lima Barreto o homem dos contrastes – o desejo de tudo metodizar. Chegou a relacionar oitocentas obras, com as indicações dos respectivos lugares em que se encontravam distribuídas pelas estantes. Em cima da mesa – lá está indicado – colocou os dicionários e os livros de consulta mais imediata.
A biblioteca era pequena, porém escolhida. Continha a “Limana”, como ele carinhosamente a denominou, boa coleção de livros franceses e portugueses, sem esquecer volumes que o romancista guardava por sentimentalismo ou qualquer outro motivo de ordem pessoal. O exemplar de As grandes invenções, de Luís Figuier, que obtivera como prêmio de aplicação, nos primeiros anos, na escola primária de D. Teresa Pimentel do Amaral, ou os volumes encadernados do Fon-Fon, com a referência: “os três primeiros trimestres do 1º ano, 1907, onde está a minha colaboração”; a malograda revista Floreal; a tradução paterna do livrinho de Jules Claye, Manual do aprendiz compositor.
A “Limana” reflete, contudo, a própria formação intelectual de Lima Barreto. Ali estão os autores prediletos do escritor, a começar por Balzac e a terminar em Descartes, com o Discours de la Méthode, que lera ainda na juventude, na sua fugaz incursão pelos domínios do Apostolado Positivista Brasileiro. Lá também estão: Rousseau, Renan, Spencer, Taine, Brunetière, Guyau, Bouglé, para lembrar tão somente os mais constantemente citados na obra do improvisado bibliotecário, além dos teóricos ou simples vulgarizadores do socialismo ou do anarquismo, como Benoît Malon, Ha-mon, Malato, Eltzbacher, Kropotkin.
Do grupo dos escritores de ficção, fora Balzac, encontram-se Cervantes, George Eliot, Maupassant, Anatole France, Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov, Turguêniev (este em maior escala) e o nosso Machado de Assis.
Havia ainda muita obra de crítica, de filosofia, de política. E de permeio números esparsos, quando não anos inteiros, da Revue des Deux Mondes, da Revue Philosophique, da Revue de Paris, revistas clássicas por assim dizer, a par de publicações anarquistas, La Flamme, Na Barricada, A Vida.3
Tudo em muita ordem e sem luxo, exatamente como na sala de estudos do venerando Gonzaga de Sá. Com os mesmos quadrinhos e as mesmas reproduções pelas paredes. Os volumes, arrumados nas estantes, à espera da mão amiga que os afagava e dos olhos curiosos que devoravam os segredos de suas páginas... “havia desordem só na grande mesa do centro, em que livros, revistas e papéis se baralhavam familiarmente”.4
Lima Barreto colecionava artigos em cadernos, na capa dos quais colocava uma etiqueta: Retalhos de jornal.XIV Deixou numerosos desses cadernos, que atestam assim mais uma preocupação de ordem do boêmio. É que ele herdara essa mania do pai, que lhe transmitira também o gosto pela correspondência, fazendo ponto de honra em dar resposta a todas as cartas que recebia. O escritor chegava ao apuro de conservar toda a correspondência recebida, juntamente com as minutas das respectivas respostas.
Não será difícil concluir-se desse cuidado em guardar tudo o que lhe dissesse respeito do valor que Lima Barreto dava a si próprio. “Que me importa o presente!”, falaria pela boca de um dos seus personagens. “No futuro é que está a existência dos verdadeiros homens.”5
Era ali, pois, entre os seus livros, no isolamento a que se entregava dias seguidos, na sala de frente da Vila Quilombo, que encontrava, na criação literária, a razão de ser da sua vida. E assim poderia compensar-se de todas as humilhações, sublimar todos os sofrimentos. A literatura era sempre uma esperança e, mesmo no fim da vida, anunciava novos contornos no horizonte, que se desdobrariam (quem sabe lá?) somente depois da morte.
Vila Quilombo! O nome escolhido não traduz apenas a amarga ironia de um homem desprezado. É antes um nome de guerra. O escritor como que timbrava em transformar a sua casa humilde, no alto de uma rua suburbana, no último reduto de uma resistência desesperada e vã. Ali se recolhia para lutar até o fim com a única arma que sabia manobrar: a inteligência. E trabalhava semanas a fio, sem interrupção, escrevendo contra os donos da vida. Ficava em casa sem sair, “abstêmio, voluntariamente recluso no seu gabinete, qual numa cela fradesca, escrevendo sem cessar, dia e noite, naquela letra hieroglífica que era o desespero de linotipistas e revisores”.6 Eram frequentes esses períodos de clausura doméstica. O artista fazia como o bicho-da-seda. Metia-se no casulo e produzia. Ninguém ousava interrompê-lo, a não ser a irmã, que lhe levava ao quarto o prato de comida.7
Nessa arrancada final, parecia dominado pelo pensamento de terminar tudo o que deixara apenas começado. Queria realizar, mais que depressa, todos os seus projetos. Na organização da “Limana”, não esqueceria, por isso mesmo, de relacionar os amarrados, contendo manuscritos e originais, a contar de Clara dos Anjos – “romance meu, inédito e incompleto, 1904”, diz a referência – e outros em que se leem etiquetas com as seguintes indicações: “Originais publicados”, “Originais a aproveitar”, “Papéis vários”, “Originais a organizar”...8
Queria deixar tudo pronto, antes que fosse tarde demais, numa ânsia incontida de concluir a obra que mal havia começado, o que de certo modo vem explicar, pela pressa com que trabalhava, os descuidos, as repetições e os desconchavos dos últimos livros.
O certo é que, nos três anos derradeiros, entre 1920 e 1922, o escritor dá por concluídos nada menos que cinco volumes: Histórias e sonhos, Marginália, Feiras e mafuás, Bagatelas e Clara dos Anjos.9 Mas não veria nenhum desses livros publicado, com exceção de Histórias e sonhos.10 De Feiras e mafuás, chegaria a rever as primeiras provas.11
Em 1920, logo depois que deixou o hospício, na segunda temporada, começa a escrever O cemitério dos vivos. Já tem editor aprazado. Contudo, não vai além das notas e rascunhos, retomando mais tarde o trabalho interrompido. Desse romance publica o primeiro capítulo, “As origens”, na Revista Sousa Cruz, em janeiro de 1921.12
Pouca coisa, entretanto, acrescentará ao livro apenas esboçado, o bastante, porém, para que se deixe entrever uma obra de grande envergadura, talvez a sua obra-prima. N’O Cemitério dos vivos houve quem visse, e com acerto “momentos de poesia, de enternecimento, e até de misticismo”.13
Até de misticismo, sim. Entre as contradições que agitaram a alma complexa e vária do mestiço rebelado esta é sem dúvida das mais curiosas. Nunca fora um materialista, no sentido lato da expressão. Se não tinha religião, era possuído do sentimento religioso. A sua devoção a Nossa Senhora da Glória é característica desse estado de espírito. O místico entrava em conflito com o maximalista. Este chegou a lamentar não ter visto entrarem nas janelas da guilhotina “os lindos, os alvos, os roliços pescoços” de reis, rainhas, duques e marquesas.14
Pura atitude. O verdadeiro Lima Barreto está contido naquela advertência do velho Gonzaga de Sá, ao deter a fúria do seu jovem amigo, Augusto Machado: “Não; a maior força do mundo é a doçura. Deixemo-nos de barulhos [...]”.15
E, de fato, em que consiste o ideal desse revolucionário, que vivia a pregar a dissolução da sociedade burguesa?
Consiste principalmente na esperança de que em algum dia “a nossa atual concepção mecanicista do mundo será substituída por uma concepção estética”, transformando-se, por sua vez, a ideia da nação no que ele chamou de “pátria estética, a cidade, a comuna, em que os seus naturais possam desde a infância conhecer as suas partes, amá-las, pois as enraizaram de recordações e de sonhos”.
Como quem se deixa ficar no vago e no imponderável, conclui o anarquista-místico: “Contudo, essa estética, aplicada à concepção da Pátria, não poderá ser induzida dos documentos do passado; ela só poderá ser deduzida de um longo sonho do futuro”.16
Repetia assim, em 1919, aquela divagação altruística que está no Gonzaga de Sá, quando o narrador do romance fala no desejo de organizar a sua República e erguer a sua Utopia, acima de todas as injustiças, dos conceitos e dos preconceitos, das organizações e das disciplinas, vendo por instantes “resplandecer sobre as terras dias de Bem, de Satisfação e Contentamento”.17
Isso, porém, era passageiro, esboroando-se logo, diante das incertezas, das dúvidas, que sempre o alancearam. Aqui e ali, em artigos, em contos, em pedaços de romance, Lima Barreto fala mais de uma vez no mistério que nos cerca, desse “espaço mistério impenetrável”, como alguém que deseja realmente procurar uma explicação, quem sabe se através da crença em Deus, conforme deixou entrever de modo mais positivo neste pequeno trecho de O cemitério dos vivos.
“Repugnava-me personalizar com este ou aquele nome o desconhecido, o informe, o vago. Dar um apelido seria limitar o ilimitado, definir o indefinido, distinguir o indistinto, fazer perecível o imperecível. Sendo tudo, em face do nada, e nada, em face do tudo, esse ser não devia ter corpo, nem forma, nem extensão, nem movimento, nem outra qualidade qualquer com que nós conhecemos as cousas existentes. O nosso ideal, a nossa felicidade seria ser como ele, e, para alcançá-lo, devíamos procurar a nossa desincorporação, pela imobilidade e pela contemplação [...].”18
Mas aí quem fala não é Lima Barreto, e sim um personagem, ainda que na qualidade de porta-voz do romancista. Nada de conclusões apressadas, portanto. Em matéria de religião, o escritor não transporia jamais os limites da dúvida metafísica.
“Eu sou dado ao maravilhoso, ao fantástico, ao hipersensível”, escreveu no “Diário do Hospício”; “nunca, por mais que quisesse, pude ter uma concepção mecânica, rígida do Universo e de nós mesmos. No último, no fim do homem e do mundo, há mistério e eu creio nele. Todas as prosápias sabichonas, todas as sentenças formais dos materialistas, e mesmo dos que não são, sobre as certezas da ciência, me fazem sorrir e, creio que este sorriso não é falso, nem precipitado, ele me vem de longas meditações e alanceantes dúvidas”.19
Permaneceria assim numa espécie de niilismo intelectual, sem acreditar em nada, além do mistério... “Infelizmente, muito infelizmente mesmo”, asseverou com todas as letras, “confesso que não creio, apesar da minha vaga e imponderável religiosidade”.20 E era essa vaga e imponderável religiosidade que o faria proclamar o seu culto por Nossa Senhora da Glória, a sua madrinha, culto por assim dizer ancestral, que o pregador do maximalismo confirmaria, ao fim da vida, numa carta ao padre Assis Memória:
“O meu respeito pela Religião Católica é tão grande que, todo o dia 15 de agosto, subo o outeiro a dar uma espórtula a Nossa Senhora da Glória, que é minha madrinha, e foi sempre a devoção dos meus antepassados. Ontem, lá fui.”21
Ontem, isto é, no dia 15 de agosto de 1920. Nem por isso deixaria ele, note-se bem, de atacar a Igreja Católica, nos seus desvios políticos, como o fizera, um ano atrás, criticando a tática seguida pelo Vaticano, que consistia, a seu ver, “em sustentar a classe poderosa no momento, com unhas e dentes, desculpar os seus erros e crimes, para poder viver; e quando ela, a classe poderosa, é derrubada e abatida, alia-se à poderosa que lhe sucede”.22
Em 1921 – no ano seguinte à carta ao padre Assis Memória – continuará firme no mesmo ponto de vista:
“Admiro muito a religião católica; mas sei bem que ela é uma criação social, baseada na nossa necessidade fundamental de Deus e impregnada do cesarismo romano, que a anima e a sustém no seu velho sonho de domínio universal; sei bem que ela tem sabido aproveitar as conquistas de toda a ordem obtidas por este ou aquele homem, incorporando-as ao seu patrimônio, e até aproveitou-se em seu favor, de argumentos dos seus inimigos contra ela; sei bem disso tudo.
“Porém essa admirável plasticidade da Igreja, através de quase dois mil anos de existência, amoldando-se a cada idade e cada transformação social, poderia tentar a outro, que, no assunto, tivesse verdadeira erudição pois não tenho nenhuma, a demonstrar que tem havido, desde o edito de Milão, ou mesmo antes, até hoje, várias igrejas superpostas com os afloramentos fatais das mais antigas através das mais modernas.”
Assim escrevia, muito senhor das suas convicções, a propósito do livro de Perillo Gomes, Penso e creio, servindo-se da sua admirável intuição política e social. E estava certo.
O pensamento de Perillo Gomes enquadra-se perfeitamente no doutrinarismo de Jackson de Figueiredo, de quem Lima Barreto era amigo, embora dele divergisse fundamentalmente em matéria filosófica. O movimento iniciado por Jackson, logo depois da guerra, para a formação de um partido cristão nacionalista, colocara o romancista de sobreaviso.
“A Igreja”, escreveu, comentando ainda o livro de Perillo Gomes, “quer aproveitar ao mesmo tempo a revivescência religiosa que a guerra trouxe, e a recrudescência exaltada do sentimento de pátria, também consequência dela, em seu favor aqui, no Brasil.
“O tal partido, pelos seus órgãos mais autorizados, está sempre a apelar para as tradições católicas de nossa terra; e não é difícil ver nisso o desejo de riscar da carta de 24 de fevereiro a separação do poder temporal do espiritual e suas consequências, como: o casamento civil e o ensino oficial inteiramente leigo.”
Tudo isso significava, para ele, nada mais que o sintoma evidente de que a classe dominante se preparava para formar um centro de resistência contra as reivindicações da classe proletária, que começavam a surgir, através das greves e dos comícios. Era, em suma, o germe o fascismo e do nazismo, que se desenvolveria com o tempo, adquirindo no Brasil a sua expressão política no integralismo. Integrado no povo, e com ele sofrendo, o romancista bem que teve a antevisão da avalanche que, alguns anos depois da paz de Versalhes, desencadearia ameaçadoramente sobre todo o mundo ocidental.
“O culto à ‘brasilidade’ que ele prega”, observou a respeito do partido nacionalista em gestação, “é o apego à herança do passado de respeito, não só à religião, mas também à riqueza e às regras sociais vigentes, daí a aliança da jovem fortuna, representada pelos improvisados ricaços de Petrópolis, com a Igreja. Mas tal culto tende a excomungar, não o estrangeiro, mas as ideias estrangeiras de reivindicações sociais que são dirigidas contra os Credos de toda a ordem. O Jeca deve continuar Jeca, talvez com um pouco de farinha a mais”.
Esta era a posição de Lima Barreto. Profundamente anticatólica, não no sentido religioso, mas contra, decididamente contra, no sentido político, denunciando as vacilações e os desvios da Igreja, numa hora decisiva para a humanidade, em que os homens de boa vontade, os simples e os puros, da categoria de Lima Barreto, procuravam desesperadamente, tateando na escuridão, o caminho a seguir.
A voz do romancista, abafada nos jornais da época, de pouca circulação – nos jornais onde ele podia dizer toda a verdade aos poderosos (a sua verdade, pelo menos) –, hoje repercute como um grito de angústia e de revolta.
“Não creio, portanto, que a Igreja”, dirá finalmente, “possa resolver a questão social que os nossos dias põem para ser solucionada urgentemente.
“Se os socialistas, anarquistas, sindicalistas, positivistas, etc., etc. não a podem resolver estou muito disposto a crer que o catolicismo não a resolverá também, tanto mais que nunca foram tão íntimas as relações do clero com o capital, e é contra este que se dirige toda a guerra dos revolucionários.”23
Notas
1 Impressões de leitura, p. 140.
2 O cemitério dos vivos, p. 54 e 68.
3 Os originais do inventário da “Limana”, que se encontram na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, vão reproduzidos na íntegra, como apêndice deste livro. Esse gosto pelas revistas francesas, que era muito do escritor, aparece refletido em Gonzaga de Sá. “De todas”, escreve o romancista, a respeito das predileções do seu personagem, “a Revue des Deux Mondes é a que mais queria e citava”. O mesmo acontecia com Lima Barreto. Ver Gonzaga de Sá, p. 51.
4 Gonzaga de Sá, p. 83.
5 O cemitério dos vivos.
6 “Lima Barreto”, por Agrippino Grieco (Vivos e mortos, p. 85).
7 Depoimento de D. Evangelina de Lima Barreto.
8 Ver inventário da “Limana”, reproduzido no Apêndice deste volume.
9 “Não só tenho o livro que a Ilustração anunciou [Feiras e mafuás], pronto a sair, entregue ao editor, como tenho outros. Há quatro anos que o Jacinto [Ribeiro dos Santos] anuncia as minhas Notas sobre a República das Bruzundangas e não as põe para fora; na A Noite, tenho há dois Bagatelas e, agora, com o Schettino, esse de que você fala – Marginália. Infelizmente, os meus editores não têm pressa de imprimir o que lhes entrego; e, quando o fazem, é a ‘trouxe-mouxe’, às pressas, de forma que a obra sai mal impressa, feia, errada, até empastelada. Que se há de fazer? É preciso lutar, para... tirar menção honrosa na Academia de Letras. Acabo um romance, que vou publicar seccionado na Revista Sousa Cruz, cuja diretoria me encomendou há um ano. Desenvolvi um conto, Clara dos Anjos, que está no meu último livro [Histórias e sonhos]. Saiu coisa bem diferente, se bem que o fundo seja o mesmo. O título é o do conto.” Carta a Almáquio Cirne, em 05/01/1921. Cópia enviada ao autor deste livro. Ver Correspondência, II, p. 203.
10 Lima Barreto/ História e sonhos/ contos/ “Amplius! Amplius”/ Sim; sempre mais longe/ Livraria Editora/ de/ Gianlorenzo Schettino/ Rua Sachet, 18/ Rio de Janeiro. 187 p. 19 x 14 cms. Este livro foi posto à venda em dezembro de 1920. Explica o escritor na errata: “Durante a impressão deste livro, por motivos totalmente íntimos, foram atormentadas as condições de vida, tanto da do autor, como da do seu amigo Antônio Noronha Santos, que se encarregou das respectivas provas”.
11 Nos papéis do romancista, encontramos as provas de páginas, já numeradas, de 6 a 45, e emendadas com a letra de Francisco Schettino, compreendendo: parte do artigo “Feiras e mafuás”, seguindo-se-lhe os artigos completos: “A corte do Itamarati”, “Uma fita acadêmica”, “Anúncios... anúncios...”, “As escoras sabichonas”, “Habeas corpus curioso”, “Os médicos e o espírita” e parte de “O Estrela”.
12 “As origens” (trecho d’O Cemitério dos vivos), publicado na Revista Sousa Cruz, Rio de Janeiro, ano VI, n. 49, janeiro de 1921.
13 Lúcia Miguel Pereira. História da literatura brasileira. Prosa de ficção (de 1870 a 1920). Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1950, p. 287. v. XII.
14 Bagatelas, p. 44.
15 Gonzaga de Sá, p. 135.
16 “Um livro curioso”, artigo de Lima Barreto, em Argos, Rio de Janeiro, 07/08/1919.
17 Gonzaga de Sá, p. 141.
18 O cemitério dos vivos, p. 162.
19 O cemitério dos vivos, p. 50-51.
20 Coisas do Reino do Jambon, p. 288.
21 Carta ao padre Assis Memória, datada de 16/08/1920. Publicada no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15/11/1922. Ver Correspondência, II, p. 231-237.
22 Bagatelas, p. 238.
23 “Reflexões e contradições à margem de um livro”, artigo de Lima Barreto, em A.B.C., Rio de Janeiro, 23/04/1921. Ver Impressões de leitura, p. 77-86.
XIV Estes Retalhos são pastas organizadas por Lima Barreto e contêm, inclusive, recortes de publicações estrangeiras que o escritor assinava. Neles é marcante a preocupação do escritor com tudo que era publicado sobre a questão racial. (N.R.)