Mirassol

Sou hóspede de um jovem médico, o Doutor Ranulfo Prata, que muito me admira a literatura e muito me preza. Não quer que eu beba. Ora, Ferraz! Tu sabes bem a que nós somos levados à bebida.

(Carta a Enéias Ferraz, 04/05/1921)

Não só as contradições, mas os contrastes da vida marcariam, até o final, com a sua nota de patético, a personalidade do autor de Isaías Caminha. Havia de ser ele, um pobre-diabo, sem dinheiro e sem posição, quem incentivaria escritores novos, orientando-os nas suas leituras, criticando-os com benevolente compreensão e até patrocinando a publicação do livro de estreia, como aconteceu, por exemplo, com o História de João Crispim, de Enéias Ferraz, editado pela Livraria Schettino, a pedido e sob a responsabilidade de Lima Barreto.

“Quanto à edição do teu livro”, propôs o romancista ao estreante, “vamos fazer este trato. Eu tenho um compadre que é quase dono de uma tipografia. A edição de um milheiro, edição modesta, não pode passar de 1:500$000. Tu arranjas quinhentos mil-réis, eu entrego-os ao compadre e fico fiador do resto, o qual tu pagarás aos poucos, com a venda do livro e como puderes. Há de rir-te que eu fique fiador, pois o Rio é tão nobre cidade que eu – tu bem me conheces – posso ser fiador de muita coisa. Imagina tu que moro há cinco anos em uma casa, sem carta de fiança, a 200$000 por mês. Já fiquei devendo quase um ano e já pagamos, eu e meus irmãos. Manda o calhamaço”.1

Jamais deixaria sem agradecimento um romance ou um volume de poesias que lhe mandassem, comunicando aos autores as suas impressões em cartas amáveis, mas que continham sempre uma opinião sincera e leal.2

Na correspondência, que manteve durante mais de um ano, com um desconhecido rapaz da província, o escritor revelaria todo o seu amor à coisa literária, com uma bondade e uma paciência que jamais lhe teriam propiciado no início da sua carreira. Escrevia longas cartas ao jovem, que se chamava Jaime Adour da Câmara. Estimulando-o: “Li o seu folhetim. Está muito bom e, pela maneira, adivinhei que o senhor é muito moço. Continue e estude, com afinco, pois essa a impressão que me deu o seu trabalho” (30/03/1919). Aconselhando-o: “Se o senhor me permitisse, eu lhe aconselharia a leitura e a meditação de um livro – L’art au point de vue sociologique. Experimente” (30/03/1919). “Leia sempre russos: Dostoiévski, Tolstói, Turguêneff, um pouco de Górki; mas, sobretudo, o Dostoiévski da Casa dos Mortos e do Crime e Castigo” (27/07/1919). Criticando-o: “Achei bom; mas permita que lhe diga uma coisa: as suas leituras ainda estão muito à flor da pele. É preciso arredondar mais, não deixar aparecer assim as costelas, o esterno, etc. Entendeu? É preciso incorporar as suas leituras a si mesmo e elas aparecerão mais belas, pois surgirão transfiguradas por um pensamento de moço e seu” (20/06/1919). Mandando-lhe finalmente livros e revistas: “Recebeu o Socialismo Progressivo? E a conferência do Ingenieros sobre o maximalismo?” (12/07/1919). “Hei de te mandar as melhores publicações (as baratas, bem entendido) que puder sobre coisas sociais. Há brochurazitas muito boas e baratas em espanhol, português e francês, de Kropótkine, de Hamon, de Reclus, etc. Julgo indispensável ler o ‘maluco’ do Comte e o Spencer, Introdução à Ciência Social e A Moral entre os Diferentes Povos” (27/07/1919).3

Quantos moços, quantos literatos da província, do Rio e de São Paulo, que vieram depois dele, receberam a mensagem de simpatia de Lima Barreto! Agrippino Grieco, Mário Sette, Leo Vaz, Gastão Cruls, Teo Filho, Adelino Magalhães, Murilo Araújo, Alberto Deodato, Ranulfo Prata, Olívio Montenegro, Carlos Süssekind de Mendonça, Pascoal Carlos Magno...

Quantos mais? A lista completa seria imensa. Por seu turno, a nova geração começava a compreender o escritor, reconhecendo-lhe o papel de legítimo sucessor de Machado de Assis, e até mais do que isso: “o maior e o mais brasileiro dos nossos romancistas”, segundo a frase entusiástica de Agrippino Crieco.4

“Lembro-me”, depõe Sérgio Milliet, “da grande admiração que tinha por Lima Barreto o grupo paulista de 22. O Triste fim de Policarpo Quaresma principalmente nos entusiasmava. Alguns dentre nós, como Antônio de Alcântara Machado, andavam obcecados”. Qual a razão de tanta admiração? É ainda Sérgio Milliet quem a dá. “O que mais nos espantava então era o estilo direto, a precisão descritiva da frase, a atitude antiliterária do escritor, a limpeza de sua prosa, objetivos que os modernistas também visavam. Mas admirávamos por outro lado a sua irreverência fria, a quase crueldade científica com que analisava uma personagem, a ironia mordaz, a agudeza que revelava na marcação dos caracteres.”5

Foi com certeza essa admiração que levaria o representante do grupo paulista no Rio, Sérgio Buarque de Holanda, a oferecer-lhe um exemplar da Klaxon, em cujas páginas os estetas do modernismo se propunham “descoelhonetinizar” a literatura brasileira, rompendo com os cânones acadêmicos. Respeitadas as diferenças, o objetivo da Klaxon vinha a ser quase o mesmo da Floreal, a revistinha que Lima Barreto fundara no distante ano de 1907, e que não fora além do quarto número.

O modernismo estava, então, no começo, numa fase em que tudo era impreciso e informe, predominando talvez o gosto de escandalizar, o prazer de fazer uma farra literária. Além do mais, circunscrevera em São Paulo o centro da sua influência. A exposição dos quadros futuristas de Anita Malfatti (O homem amarelo, A mulher de cabelos verdes, A estudante russa) pouca ou nenhuma repercussão alcançaria no Rio. Trinta ou quarenta anos atrás (a exposição fora em 1916), doze horas de viagem de trem, no mínimo, separavam as duas cidades. Não havia avião nem rádio. E por isso talvez ninguém, ou muito pouca gente, tomaria conhecimento do furioso artigo “contra” de Monteiro Lobato, atacando a pintora e a arte moderna. No entanto, em São Paulo, esse artigo sacudira o meio literário, provocando polêmica, na imprensa e nas escolas.6

No Rio, tudo continuava na mesma. Os grandes nomes da revolução estética ainda não se haviam revelado. Por esse tempo, seria interessante lembrar, o mestre da música moderna no Brasil, Villa-Lobos, era um desconhecido violoncelista de cabaret e o grande Manuel Bandeira, que ensaiara os seus primeiros versos livres com o Carnaval, publicado em 1919, viviam completamente arredio à agitação da vida literária.

A verdade é que a ação dos inovadores só passaria a ser notada, no Rio de Janeiro, pelo menos, com a solidariedade de Graça Aranha, que chegaria da Europa, logo depois do armistício, com os originais de um novo livro, A estética da vida, falando na “unidade infinita do todo universal”, no “homogêneo indefinido” que resultava no “heterogêneo definido” e outras coisas que tais.

Por outro lado, a Semana de Arte Moderna só se realizaria, em princípios de 1922, com o apoio financeiro de Paulo Prado, notável escritor, sem dúvida, mas que era também um dos representantes mais típicos da plutocracia paulista. A mesma gente que Lima Barreto atacava na imprensa libertária, tachando não só os Prados, como o “seu caixeiro-viajante Graça Aranha”, de exploradores da guerra, na “especulação indecente das carnes frigorificadas”.7

Logicamente, a presença de um e de outro indisporia, desde logo, o romancista rebelde contra o que se chamava com visível impropriedade de “futurismo nacional”. Não lhe agradaria também a nota esnobe do movimento, que lhe pareceria à primeira vista simples reflexo, um tanto retardado, de novidades estéticas do começo do século, importadas da Europa, na bagagem de escritores afortunados.

Enquanto Graça Aranha posasse de mestre – e não era mais do que um “companheiro mais velho”, na expressão de Manuel Bandeira8 –, perduraria o equívoco, agravado depois do rompimento do escritor de A viagem maravilhosa com a Academia, o que só se daria em 1924, isto é, dois anos depois da Semana de Arte Moderna e da morte de Lima Barreto.

A perspectiva seria então outra. E o modernismo poderia dar a medida da sua força, na criação de uma nova consciência artística e literária, na preparação enfim de “estado de espírito revolucionário e de um sentimento de arrebentação” que permitiam “outras manifestações sociais do país”: o trabalhismo e a Revolução de 1930, com as leis de assistência ao trabalhador.9

A arrancada modernista, que trazia no bojo esse “sentimento de arrebentação”, apresentaria, além de Graça Aranha, outras coisas esquisitas. Esquisitas, é claro, para Lima Barreto.

A batalha da Semana de Arte Moderna fora travada no Theatro Municipal, em meio a um bombardeio de vaias e ovos podres. Do Theatro Municipal, reduto da arte burguesa, passaria depois para os salões da aristocracia rural – os salões de D. Olívia Guedes Penteado e Tarsila do Amaral. Eram “aristocratas tradicionais” e não “aristôs do dinheiro”, justifica o grande condutor do movimento, que há de reconhecer e proclamar a importância desses salões, que propagaram os ventos destruidores da “orgia intelectual” dos rapazes paulistas pelo Brasil inteiro.10

Ora, a Klaxon apareceria logo depois da Semana de Arte Moderna. Era a nossa primeira revista modernista e por isso mesmo bem característica dessa fase inicial do movimento: destrutivo, festeiro e inconsequente.

Recebendo-a das mãos de Sérgio Buarque de Holanda, a quem chamaria “meu simpático amigo”, Lima Barreto comete um erro de julgamento, vendo em Mário de Andrade e seus companheiros nada menos que imitadores de Marinetti. E no modernismo uma simples macaqueação do futurismo.

“[...] esses moços tão estimáveis”, pergunta o romancista, “pensam mesmo que nós não sabíamos disso de futurismo? Há vinte anos, ou mais, que se fala nisto e não há quem leia a mais ordinária revista francesa ou o pasquim mais ordinário da Itália que não conheça as cabotinagens do ‘il Marinetti’.

“A originalidade desse senhor consiste em negar quando todos dizem sim; em avançar absurdos que ferem, não só o senso comum, mas tudo o que é base e força da humanidade.” Mas Lima Barreto, ao emitir a sua opinião sempre honesta e sincera, há de acentuar o seguinte: “O que há de azedume neste artiguete não representa nenhuma hostilidade aos moços que fundaram a Klaxon; mas sim, a manifestação da minha sincera antipatia contra o grotesco ‘futurismo’, que no fundo não é senão brutalidade, grosseria e escatologia, sobretudo esta”.11

O pessoal da Klaxon não tardaria em dar a resposta ao romancista – “um Sr. Lima Barreto...” num tom impiedosamente agressivo, ainda que disfarçado pelo “sorriso de ironia” do autor do artigo. Teria sido Mário de Andrade? O que mais doera aos rapazes de São Paulo fora sem dúvida aquela comparação infeliz com o futurismo italiano.

“O Sr. Lima chama-nos de descobridores do futurismo do ‘il Marinetti’. (O Sr. Barreto é incontestável a respeito de artigos.) E cansado com o descobrimento, eis o Sr. Lima azedo, objurgatoriando, mais ou menos com razão, contra Marinetti. Mas que temos nós com o italiano, oh! fino classificador? Mas o herbolário carioca sabe que certos arbustos naturais da Itália e da mesma família de apenas alguns registrados em Klaxon são comuns à Rússia, à Áustria e à Alemanha Saqueada... Em todo caso, simpático Sr. Lima, como seu artigo ‘não representa nenhuma hostilidade aos moços que fundaram Klaxon’, amigavelmente tomamos a liberdade de lhe dar um conselho: não deixe mais que os rapazes paulistas vão buscar ao Rio edições da Nouvelle Revue, que, apesar de numeradas e valiosíssimas pelo conteúdo, são jogadas como inúteis em baixo das bem providas mesas das livrarias cariocas. Não deixe também que as obras de Apollinaire, Cendrars, Epstein, que a Livraria Leite Ribeiro de há uns tempos para cá (dezembro, não é?) começou a receber, sejam adquiridas por dinheiros paulistas. Compre esses livros, Sr. Lima, compre esses livros!”12

Nesse incidente literário de pouca monta, injustiça por injustiça, exagero por exagero, Lima Barreto levaria a melhor. É possível que, a essa altura, nem tivesse lido a inopinada resposta de Klaxon, publicada na segunda quinzena de agosto de 1922, dois meses e meio antes da sua morte.

Era sincero quando manifestava a sua simpatia por Sérgio Buarque de Holanda e por tabela a sua não hostilidade aos “moços tão estimáveis” de São Paulo. Os seus contatos com a gente nova eram sempre cordiais, como vimos.

Do grupo paulista, além de Sérgio, conhecia também Di Cavalcanti, carioca de nascimento, mas que fora o pai da ideia da Semana de Arte Moderna. O editor Francisco Schettino fizera as apresentações, num cafezinho da Rua Sachet. E a Di Cavalcanti, Lima Barreto tratou com o mesmo carinho que não sabia recusar aos jovens talentos, talvez porque visse em cada um deles a continuação do seu próprio caso: as resistências, as incompreensões e até mesmo a má vontade dos expoentes diante dos novos. Pois no cafezinho da Rua Sachet, àquela tarde – é Di quem recorda –, o romancista foi logo falando no álbum de desenhos que acabava de publicar:

“Vi os seus Fantoches da meia-noite, com o prefacinho do Ribeiro Couto. Agradeço-lhe o exemplar que me deixou.”13

E, deixando o pintor à vontade, pôs-se a conversar sobre arte e literatura. Assim era com todos. Nada tinha de doutoral. Não queria, nem pensava, dar lições a ninguém. A sua simplicidade de maneiras permitia mesmo certas liberdades. E um dia, Peregrino Júnior, o mais jovem repórter da imprensa carioca, teria a lembrança de aconselhar o mestre a deixar a bebida, ou a beber menos, pois do contrário acabaria não produzindo mais nada, e se prejudicando como tantos outros. O romancista teria respondido com uma piada ao rapazola, olhando-o por cima: “Que nada, menino. O que prejudica os nossos literatos não é a cachaça. É a burrice”.14

Não seria, entretanto, de moços a sua roda habitual. Os seus companheiros de todos os dias eram outros. Jornalistas, escritores, colegas de repartição ou boêmios, simples amigos do “copito”. Todos eles estarão presentes à única homenagem que Lima Barreto receberia em toda a sua vida: o almoço, promovido por Francisco Schettino, no Hotel Novo Democrata. Uma vastíssima feijoada, regada com muita cachaça, onde todos falaram, menos o homenageado, que permaneceu “mudo que nem um peixe” durante o bródio.15

Todos os companheiros de jornalismo ou de bar – os dos últimos anos – compareceram, a começar pelo excelente Chico Schettino: Agrippino Grieco, Amaral Ornelas, Xavier Júnior, João Bartolomeu Klier, o baiano Pinheiro Viegas, Raimundo Magalhães e o admirável polemista que se chamou Coelho Cavalcanti, o “João Barafunda”, que terminaria tragicamente os seus dias, vencido pela dipsomania, no hospício, onde morreu, depois de quinze anos de reclusão.16

Quem deixaria de admitir que esse “triste fim” – o de terminar os dias num quarto de hospício – não estaria também reservado a Lima Barreto? O espetáculo da sua decadência física transmitia a todos que dele se aproximavam a mesma sensação de desalento e piedade.

Era doloroso constatar-se como um grande escritor poderia ter descido tanto, a ponto de se transformar numa ruína humana, perambulando pelas ruas do Rio de Janeiro, como se fosse um pobre-diabo desconhecido, quase um mendigo, a quem os donos da vida apontavam, ora como um bêbado qualquer, ora como um sujeito amalucado, de talento sem dúvida, mas que se deixara “perder” pela boêmia.

O encontro com Lima Barreto produziria em Ranulfo Prata, que viera de São Paulo, cheio de admiração para conhecê-lo, uma tal impressão de débâcle que o jovem médico e escritor tomaria a si a empreitada de tentar a recuperação do romancista. A primeira providência seria retirá-lo do Rio. E Prata convidou-o a passar uma temporada em Mirassol, pequena cidade do interior paulista, onde clinicava, acreditando que assim pudesse “salvar” o companheiro de letras, vencido pela desilusão e pelo tédio de viver.

O que mais tocara a sensibilidade de Ranulfo Prata, no caso de Lima Barreto, fora o seu drama íntimo, a sua tragédia doméstica, convivendo com o pai louco, desde a juventude, em meio a privações de toda ordem, dada a precariedade de recursos de que dispunha.

Isso foi em princípios de 1921, quando a moléstia de João Henriques atingiu o clímax. Fosse por esse motivo – a viagem seria mais uma fuga à desgraça que nunca deixou de o acompanhar –, fosse pelo desejo de uma simples aventura, Lima Barreto acolheu o convite com prazer.

Mirassol ficava nos confins de São Paulo. O nome da cidadezinha sugeria qualquer coisa de pitoresco, de bom, de saudável. Devidamente instruído pelo amigo, que em cartas sucessivas lhe mandaria o roteiro a seguir, com as respectivas baldeações em São Paulo, Araraquara, Rio Preto – e até o dinheiro para as despesas,17 o romancista meteu-se, afinal, num vagão da Central do Brasil, envergando uma fatiota nova e um chapéu também novo, e lá se foi, rumo a Mirassol. Estava novinho em folha. Apenas a mala – “um calhambeque de mala” – não condizia com a elegância da indumentária.18

De passagem por São Paulo, Lima Barreto visitaria os companheiros do anarquismo, que apenas conhecia de nome, como Edgard Leuenroth e João da Costa Pimenta, na redação da Vanguarda,19 e procuraria, no escritório da sua casa editora, a Monteiro Lobato, a quem pôde estreitar num abraço, tal como o autor dos Urupês previra numa carta:

“– Ó Lima!

“– Ó Lobato!”20

O encontro malogrado no Rio se concretizaria, afinal, em São Paulo. “Conheci Lobato”, escreve de Mirassol a Schettino, “e ele já me enviou pra aqui diversos livros editados por ele. Encontro simples e cordial”.21

A viagem a Mirassol bem que poderia ter sido, para Lima Barreto, uma das poucas alegrias da sua vida. A pequena cidade, de aspecto ainda roceiro, era um encanto. Lá todos se conheciam. E o escritor, recebido por entre homenagens sinceras, logo fez boa camaradagem com todo o mundo. Com o advogado, o dentista, o tabelião, os quais juntamente com o médico, seu amigo, constituíam os grandes do lugar.

Obstinadamente, e com as melhores intenções, Ranulfo Prata pôs logo em execução o plano de regenerar o romancista, tirando-lhe o vício da bebida. Em primeiro lugar, determinou que tomasse leite pela manhã. Nada de álcool. Chegou mesmo a recomendar ao vendeiro que não vendesse parati ou qualquer outra bebida ao seu hóspede. Estabeleceu, em suma, um regime rigoroso. Vida ao ar livre, acordar e dormir cedo, comer bem e racionalmente.

A princípio, Lima Barreto se conteve, seguindo as prescrições do médico amigo. E, com o regime, chegou mesmo a apresentar uma fisionomia mais saudável, desaparecendo a vermelhidão das maçãs do rosto e do nariz, característicos dos alcóolatras.

Mas o inevitável acabou acontecendo. É que os amigos de Ranulfo Prata, entusiasmados com a presença do escritor, lembraram-se de promover uma conferência de Lima Barreto em Rio Preto, a cidade grande, sede da comarca, a poucos quilômetros de Mirassol.

Triste ideia! O autor consagrado da capital, que se refugiara no interior, tentando uma estação de cura, jamais havia pronunciado uma conferência. Era uma violência contra a sua natureza tímida, o seu temperamento de bicho do mato. Contudo, aceitou o convite, certo de que aquilo iria constituir, para ele, um terrível problema. E escreveu o trabalho que lhe pediram.

Dera para ficar nervoso, esperando ansiosamente o dia da conferência. E quando chegou a grande data, Lima Barreto desapareceu misteriosamente. Os amigos haviam organizado uma grande caravana para acompanhar o romancista. Iam todos de automóvel. Mas na hora de seguirem para o Rio Preto, começaram a procurá-lo por todos os cantos de Mirassol. E Ranulfo Prata, após a busca, acabou encontrando o amigo, estirado numa sarjeta. Bêbedo.22

Lima Barreto não pôde assim pronunciar a conferência, cujo tema seria a constante preocupação de toda a sua existência: o destino da literatura. As ideias, que expôs nesse trabalho, publicado na Revista Sousa Cruz, são as mesmas de sempre, marcando uma admirável linha de coerência. A arte é fenômeno social, insiste o romancista, citando Taine, Guyau, Brunetière, autores que formaram o seu espírito, desde a primeira juventude. Continua, pois, a defender a sua tese predileta, em matéria de doutrina estética, com aquela nota de sinceridade que jamais o abandonou. A literatura é a sua paixão, a sua própria razão de existir. Está tão integrado nela, que chega a dizer, com a naturalidade dos amantes que não temem o ridículo, nas suas expansões de ternura: “Mais do que qualquer outra atividade espiritual da nossa espécie, a Arte, especialmente a Literatura, a que me dediquei e com quem me casei; mais do que ela nenhum outro qualquer meio de comunicação entre os homens, em virtude mesmo do seu poder de contágio, teve, tem e terá grande destino em nossa triste Humanidade”.

Através desse casamento, conseguiria a sua própria libertação: “Quer dizer: que o homem, por intermédio da Arte, não fica adstrito aos preceitos e preconceitos de seu tempo, de seu nascimento, de sua pátria, de sua raça; ele vai além disso, mais longe que pode, para alcançar a vida total do Universo e incorporar a sua vida na do Mundo”.

A literatura era, para o romancista, uma espécie de religião, que superava por assim dizer o seu agnosticismo. Se acreditava em alguma coisa era na literatura, como a única força capaz de levar a compreensão a todos os homens, criando a Pátria Estética, em que se resumia, afinal, o ideal político desse grande visionário.

“A Beleza, para Taine”, diria Lima Barreto, na sua conferência escrita em Mirassol, “é a manifestação, por meio dos elementos artísticos e literários, do caráter essencial de uma ideia mais completamente do que ela se acha expressa nos fatos reais.

“Portanto, ela já não está na forma, no encanto plástico, na proporção e harmonia das partes, como querem os helenizantes de última hora e dentro de cuja concepção muitas vezes não cabem as grandes obras modernas, e, mesmo algumas antigas.

“Não é o caráter extrínseco da obra, mas intrínseco, perante o qual aquele pouco vale. É a substância da obra, não são as suas aparências.

“Sendo assim, a importância da obra literária que se quer bela sem desprezar os atributos externos de perfeição de forma, de estilo, de correção gramatical, de ritmo vocabular, de jogo e equilíbrio das partes em vista de um fim, de obter unidade na variedade; uma tal importância, dizia eu, deve residir na exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso destino em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa conduta na vida.”23

Sem o saber, Lima Barreto fizera, nessa conferência, o seu testamento literário, que era também a confirmação da sua profissão de fé de escritor, fiel a si mesmo, por cujo ideal sofreu, lutou e morreu.

Notas

1 Carta a Enéias Ferraz, Mirassol, 04/05/1921. Ver Correspondência, II, p. 239-240.

2 A correspondência ativa e passiva de Lima Barreto encontra-se em grande parte na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Graças à solicitude da irmã do escritor, D. Evangelina de Lima Barreto, salvaram-se numerosas minutas das cartas expedidas pelo romancista. Todo esse material – e mais outro tanto colhido pelo autor – constitui hoje o acervo dos dois volumes de Correspondência, ativa e passiva, de Lima Barreto, lançados pela Editora Brasiliense, de São Paulo.

3 “Cartas de Lima Barreto a Jaime Adour da Câmara”, em O Jornal (suplemento), Rio de Janeiro, 01/08/1948. Ver Correspondência, II, p. 157-172.

4 Vivos e mortos, por Agrippino Grieco, p. 82.

5 “Noticiário”, artigo de Sérgio Milliet, em O Estado de São Paulo, São Paulo, 11/11/1948.

6 O movimento modernista, por Mário de Andrade, 1942, p. 28.

7 “Sobre a carestia”, artigo de Lima Barreto, em O Debate, Rio de Janeiro, 15/09/1917. Ver Marginália, p. 191-194.

8 Apresentação da poesia brasileira, por Manuel Bandeira, 1946, p. 143.

9 O movimento modernista, por Mário de Andrade, 1942, p. 42-43. Os intelectuais modernistas de São Paulo integraram-se, quase todos, depois no Partido Democrático, organismo político do centro democrático, que se bateu pela Revolução de 1930, e mais tarde nos partidos da direita (integralismo) ou da esquerda (comunismo).

10 O movimento modernista, por Mário de Andrade, 1942, p. 41. É bem de ver que, a princípio, não havia o menor sentimento político no movimento. Na longa correspondência entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira, trocada no calor da revolução modernista, não há uma palavra sequer, denunciando outra preocupação que a puramente estética.

11 “O futurismo”, artigo de Lima Barreto, em Careta, Rio de Janeiro, 22/07/1922 (Feiras e mafuás, p. 68).

12 Klaxon, São Paulo, 15/08/1922, p. 17.

13 “Triste Fim de Lima Barreto”, artigo de Di Cavalcanti, em Dom Casmurro, Rio de Janeiro, 24/07/1943.

14 “Anedotário de Lima Barreto”, artigo de Antônio Noronha Santos, em Diário da Manhã, Niterói, 09/10/1942.

15 “O meu almoço”, artigo de Lima Barreto, em A Notícia, Rio de Janeiro, 03/06/1920 (Feiras e mafuás, p. 280-286).

16 Coelho Cavalcanti morreu no hospício em 18/11/1938. Ali fora internado em 1923, um ano depois da morte de Lima Barreto.

17 Carta de Ranulfo Prata, Mirassol, 16/03/1921. Ver Correspondência, II, p. 246.

18 “Até Mirassol” (notas de viagem), série de três crônicas de Lima Barreto, publicada na Careta, Rio de Janeiro, a 23, 30 de abril e 7 de maio de 1921. Ver Marginália, p. 47-54.

19 Depoimento de Edgard Leuenroth.

20 Carta de Monteiro Lobato a Lima Barreto, São Paulo, [s.d.]. Ver Correspondência, II, p. 78.

21 Carta de Lima Barreto a Francisco Schettino, Mirassol, 21/04/1921. Ver Correspondência, II, p. 122.

22 Depoimento do Dr. João Dioclécio Ramos, médico em Mirassol.

23 “O destino da literatura”, conferência de Lima Barreto, em Revista Sousa Cruz, Rio de Janeiro, n. 58-59, outubro e novembro de 1921. Ver Impressões de leitura, p. 51-69.