A morte

Fechou-se o caixão. Houve um pequeno ruído, seco, vulgar, exatamente igual ao de qualquer caixa que se fecha... E foi só!

(Gonzaga de Sá, p. 125)

Para se compreender bem um homem não se procure saber como oficialmente viveu. É saber como ele morreu; como ele teve o doce prazer de abraçar a Morte e como Ela o abraçou.”1 Eis o que nos recomenda o biógrafo de Gonzaga de Sá, ao descrever em poucas linhas a morte do amigo, no instante em que, olhando o mar, colheu uma flor, caiu e morreu. Sigamos o conselho. Vejamos como o romancista “colheu a flor, caiu, e morreu”.2

Foi também inesperada a morte de Lima Barreto, embora sem a solenidade com que se revestira a de Gonzaga de Sá. Estava enfermo, é verdade. Mas a doença não parecia grave assim, para que se pudesse supor tão próximo o desenlace. Pela manhã, Evangelina viera sentar-se à beira da cama do irmão. Tomara-lhe o pulso e a temperatura. O doente não tinha febre, havia passado bem a noite. Mais uns dias de cama – matutou com certeza – e estaria em condições de levantar-se.

A moça estava triste, não pelo irmão, mas pelo pai. João Henriques, sim, tinha as suas horas contadas. Qualquer coisa lhe prevenia que o velho almoxarife estava no fim. E Evangelina desabafou toda a sua angústia, chorando no ombro do irmão. Assim ficaram durante alguns minutos. Depois, voltando à calma, Evangelina fez menção de retirar-se, mas o irmão a deteve um instante mais:

– Quero que me perdoes tudo o que fiz. A minha vida...

Não terminou a frase, com receio talvez de evitar maiores cuidados, para ordenar num tom imperativo:

– Vai ver o nosso pai. Ele não pode ficar sozinho...

À tardinha, Evangelina voltou ao quarto do irmão, que repousava tranquilamente, em meio a uma porção de livros, revistas e jornais, espalhados na cama. Trazia-lhe uma xícara de chá, com torradas. Trocaram poucas palavras, os dois irmãos:

– Está melhor? – perguntou Lima Barreto, pensando sempre no pai.

– Piora a cada momento – foi a resposta. – Não posso deixá-lo. Tenho que voltar à sua cabeceira.

Lima Barreto sentara-se na cama, enquanto Evangelina dispunha a bandeja no travesseiro, que havia colocado sobre as pernas do doente. Uma hora depois, retornando ao quarto, encontraria o irmão morto. Continuava sentado, abraçado a um volume da Revue des Deux Mondes.3

Era dia de Todos os Santos. Chovia muito. Uma chuva miúda e persistente, chuvinha criadeira, escorrendo sem parar pela Rua Major Mascarenhas abaixo. No centro da sala de visitas da Vila Quilombo, armaram o serviço fúnebre. O enterro sairia no dia seguinte, para o Cemitério São João Batista. O escritor pedira que não o enterrassem no Cemitério de Inhaúma. Achava-o feio, “sem aquele ar de recolhimento, de resignada tristeza, de imponderável poesia do Além [...] com um ar sorno de repartição pública”.4 Preferia ser enterrado no São João Batista, longe do subúrbio, em pleno Botafogo, bairro de gente rica, que tanto havia ridicularizado.

À noite, começou a chegar gente para o velório. Gente desconhecida dos subúrbios. Amigos humildes, que participavam do “clâbe”, formado nas mesas do botequim do “Seu” Ventura. Os compadres e os afilhados do romancista vinham até a sua casa humilde, patinhando na lama da ladeira suburbana, para prestar-lhe a última homenagem. “Ele lá estava no seu caixão modesto, dormindo serenamente o seu grande sono”, assim o retrata Enéias Ferraz. “Tinha os olhos bem fechados e nos lábios finos o mesmo imperceptível sorriso da sua vida... A cabeça, tão embranquecida nestes últimos tempos, estava um pouco caída sobre o ombro, como se descansasse realmente.”5

Durante o velório, aparecera um homem com um pequeno ramalhete de perpétuas. Ninguém o conhecia. Curvou-se diante do morto, e espalhou as flores no caixão. O depoimento pertence a Pereira da Silva e deve ser transcrito com as próprias palavras do poeta: “Quando transpusemos a sala em cujo centro jazia o cadáver, o homem correu a espalhar no caixão, votivamente, aquelas perpétuas de um roxo tão expressivo. Depois, mal contendo a comoção, descobriu-lhe o rosto, beijou-o na testa, que ainda recebeu algumas lágrimas. Uma pessoa da família dirigiu-se ao visitante. Quis saber quem ele era.

“Não sou ninguém, minha senhora. Sou um homem que leu e amou esse grande amigo dos desgraçados.”6

A chuvinha continuava a cair. “Lembro-me da cara branca de adolescente afoito de Enéias Ferraz”, recorda Di Cavalcanti, “a olhar para o caixão do seu ídolo. E me lembro também de dois guardas-civis solenes, um deles irmão do morto, montando guarda ao corpo”.7

O caixão fora conduzido até a estação de Todos os Santos, onde esperaria uma boa meia hora o carro fúnebre da Central do Brasil.

É ainda de Enéias Ferraz a emocionante descrição do cortejo da Rua Major Mascarenhas até a gare suburbana. “À tarde, o enterro saiu, levado lentamente pelas mãos dos raros amigos que lá foram. Mas, ao longo das ruas suburbanas, de dentro dos jardins modestos, às esquinas, à porta dos botequins, surgia, a cada momento, toda uma foule anônima e vária que se ia incorporando atrás do seu caixão, silenciosamente. Eram pretos em mangas de camisa, rapazes estudantes, um bando de crianças da vizinhança (muitos eram afilhados do escritor), comerciantes do bairro, carregadores em tamancos, empregados da estrada, botequineiros e até borrachos, com o rosto lavado em lágrimas, berrando, com o sentimentalismo assustado das crianças, o nome do companheiro de vício e de tantas horas silenciosas, vividas à mesa de todas essas tabernas [...].”8

Na cidade, alguns amigos esperavam o escritor. Félix Pacheco, Paulo Hasslocher, Gastão Cruls, Olegário Mariano, José Mariano Filho.9 E o enterro prosseguiu, com o seu pequeno cortejo, até o São João Batista. A chuva não parava.10

No seu leito de moribundo, João Henriques sentira que qualquer coisa diferente ocorrera na casa. Como que recobrando a razão por um instante, perguntara à filha, no dia seguinte:

– Que foi que aconteceu? Afonso morreu?11

Evangelina procurou acalmá-lo, mas em vão. João Henriques tinha os olhos secos e duros. Logo depois, entrava em agonia. Nada mais restava a esperar...

Morreu quarenta e oito horas depois do filho. Foi enterrado na mesma campa. E, no túmulo humilde, eles repousaram para sempre, novamente unidos, na morte como na vida.

Notas

1 Gonzaga de , p. 37.

2 Gonzaga de , p. 43 e 167.

3 “João, não. Afonso Henriques de Lima Barreto”, reportagem de Sílvio Fonseca em Vamos Ler!, Rio de Janeiro, 10/04/1941. Entrevista com Carlindo Lima Barreto, irmão do romancista. Os demais pormenores dos últimos dias foram relatados ao autor deste livro por D. Evangelina de Lima Barreto.

4 “Os enterros de Inhaúma”, artigo de Lima Barreto, em Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 24/08/1922 (Feiras e mafuás, p. 287).

5 “A morte do mestre”, artigo de Enéias Ferraz, em O País, Rio de Janeiro, 20/11/1922.

6 “Soube então”, conta ainda o poeta, “que várias demonstrações semelhantes fizeram a Lima Barreto outras almas reconhecidas”. “Lima Barreto”, artigo de A. J. Pereira da Silva, em A Noite, Rio de Janeiro, 07/11/1922.

7 “Triste fim de Lima Barreto”, artigo de Di Cavalcanti, em Dom Casmurro, Rio de Janeiro, 27/07/1943.

8 Enéias Ferraz, artigo citado na nota 5.

9 Foi José Mariano Filho quem pagou as despesas do enterro.

10 Di Cavalcanti, artigo citado na nota 7. Ainda sobre o enterro de Lima Barreto, um depoimento importante a registrar. É o de Gastão Cruls, em carta a Antônio Torres, de 15/11/1922. “Pobre Lima! Fui ao seu enterro, um pobre enterro que afora Félix Pacheco, Pereira da Silva e mais dois ou três homens de letras, era apenas acompanhado por um bocado daquela humilde gente do subúrbio, que ele descreveu tão bem nos seus romances. Nesta época de exposição e passagem de governo, a sua morte passou quase despercebida e os jornais mal tiveram lugar para lhe traçar apressados necrológios. E dizer-se que agora mesmo se cogitou da ereção de estátuas a Pinheiro Machado e Eça de Queirós!” Antônio Torres e seus amigos, por Gastão Cruls, [s.d.], p. 321-322. Os necrológios sobre o romancista só começaram a aparecer nos jornais a 3 de novembro. Muitos amigos – e entre eles o maior de todos: Antônio Noronha dos Santos – deixaram por isso de comparecer ao enterro.

11 Depoimento de D. Evangelina de Lima Barreto.