A vida de Mark pouco mudou com a chegada de Heather. No início, quase nada havia que ele pudesse fazer. Karen tratava de tudo, o que fazia sentido, já que de facto ele não podia amamentar a bebé, preferia não mudar as fraldas e estava no trabalho na altura de todos os banhos e de todos os passeios. Mas acabou por descobrir que Karen e Heather viviam numa unidade fechada e que ele estava do lado de fora. As suas tentativas de participar foram frustradas pela sua ignorância e, na realidade, era sempre mais fácil para Karen ser ela a fazer tudo do que ver os esforços inglórios dele para vestir a menina ou preparar o saco para um passeio no parque.

*

Mark não se sentia zangado com Karen, mas sim com ele próprio, considerando a sua relegação para observador como uma extensão das suas carências que, agora, eram igualmente aparentes no escritório. Nos salões das finanças, Mark nunca tinha sido capaz de se mostrar essencial. Embora o seu trabalho fosse correto e ganhasse mais dinheiro do que alguma vez sonhara, Mark via-se a ser ultrapassado por um cortejo de homens sem grandes méritos, cujas competências eram muito mais sociais do que financeiras, e já desistira da ideia de dirigir o departamento ou até de viajar no jato da empresa.

*

Heather era uma bebé linda. O cabelo loiro acabaria por escurecer, mas tinha grandes olhos azuis e, com quatro semanas, já sorria, muitas vezes deliciando-se a bater palminhas com as mãozinhas rechonchudas. Karen vestia-lhe malhas francesas e era de opinião que, embora se tratasse de uma menina, o azul-claro condizia com as suas cores e com o seu temperamento. Heather procurava os olhos das pessoas e conquistava até mesmo o mais empedernido dos nova-iorquinos com os seus gritinhos e as suas risadas.

*

Ela era tão bonita que, quando inevitavelmente se tornava o centro das atenções num parque ou numa loja, os seus recém-conquistados amigos olhavam para Karen, ou para Mark e Karen juntos, e não conseguiam esconder a surpresa por aquela criança pertencer àquelas pessoas. Os pais de Heather nunca se sentiram insultados, mas encolhiam os ombros com humilde orgulho, porque ambos tinham concluído, cada um por seu lado, sem nunca o terem partilhado um com o outro, que o seu eu interior se tinha exprimido através daquela bela criação biológica. Mark até sugeriu a Karen que, se eles eram «tão bons a fazer bebés», talvez devessem ter outro.

*

Por muito que Karen amasse os pais e considerasse idílica a sua infância nos subúrbios arborizados de DC, lembrava-se da maioria desses anos como solitários. Sempre tinha querido um irmão e interrogava-se, dado que a Mãe era tão obcecada com o planeamento familiar, explicando-lhe o que era mesmo antes de ela poder compreender, se ela própria fora um acidente. Durante uns tempos teve um irmão imaginário que era dez anos mais velho e que a levava de carro a lugares como a gelataria e a aula de ballet, mas bastava-lhe ir dormir fora ou vir para casa de boleia com outra família para se lembrar da sorte que tinha em não ter de lutar por tudo e por nada na sua própria casa.

*

Por outro lado, não lutar por nada podia ser uma desvantagem. Karen era, por natureza, facilmente controlada por outras pessoas e hesitante quanto a riscos. Nunca era a primeira a mergulhar na piscina, preferia observar primeiro algumas pessoas a fazê-lo. Além disso, a Mãe voltou a estudar para bibliotecária quando Karen começava a gatinhar e o Pai, um advogado de patentes, foi incapaz de lidar com todos os assuntos domésticos e parentais que iam falhando. Ele adorava o seu trabalho, assumindo frequentemente a criatividade dos seus clientes como se fosse sua. Tinha fantasias de invenção e às vezes interferia, mas na maior parte dos casos gostava era que os vizinhos o vissem entrar e sair de casa com documentos de projetos enrolados debaixo do braço, desenhos esquemáticos de estruturas elétricas e químicas que ultrapassavam a sua compreensão.

*

Na altura em que a Mãe arranjou trabalho a dirigir a Biblioteca Móvel de Clarksburg, Karen já tinha saído do infantário e passava tantas tardes enfiada num canto a ver a Mãe ler às crianças que, até chegar ao segundo ano, segurava nos livros como se tivesse à frente um público imaginário. Quando os cortes orçamentais ameaçaram acabar com a biblioteca itinerante, a cidade fez um referendo de apoio ao serviço e de repente já não eram só as crianças que acenavam à Mãe e a tratavam pelo nome próprio.

*

Karen detestava partilhar a Mãe e passar tanto tempo com a babysitter, que na realidade era a empregada de limpeza, e acabou por se inscrever numa atividade que a mantinha até tarde na escola. No fim do ensino básico era tão ignorada ao ponto de se sentir autossuficiente e criou uma rotina de se fechar no quarto depois da escola com uma televisão portátil onde conseguia escapar para os mundos saturados de romance ao mesmo tempo que tinha acesso ao seu corpo.

*

Karen disse a Mark que não queria outro filho. Não seria justo para Heather. De facto, no momento em que Heather nasceu Karen soube que lhe dedicaria a sua atenção ininterrupta e cuidaria dela durante tanto tempo quanto lhe fosse possível. Nunca se preocupou em justificar a sua falta de interesse numa carreira ou a sua confiança no sucesso de Mark, porque Heather não era uma criança normal. Talvez se Karen tivesse ostentado a centelha e a magia de Heather, a sua Mãe nunca tivesse voltado a estudar.

*

À medida que Heather se ia transformando numa menininha, a sua beleza tornou-se mais pronunciada, embora de certa forma fosse secundária ao seu encanto e à sua inteligência e, sobretudo, a uma empatia complexa que podia ser profunda. «Porque está a chorar?», perguntou ela do seu carrinho, no metro, aos cinco anos, a uma Mulher que não estava a chorar e que a corrigiu educadamente. Heather continuou: «Não devia estar triste, mesmo se os seus sacos forem pesados. Eu posso levar um.» A Mulher então riu-se nervosamente e sentou-se ao lado de Karen, dizendo que podia tratar das suas coisas, mas que agradecia muito a gentileza. Karen repreendeu levemente a filha, dizendo-lhe que não metesse o nariz onde não era chamada, e deu-lhe um copo-biberão.

*

A Mulher estava a olhar para cima, a fingir que lia os anúncios, quando Heather, que continuava a olhar para ela, afastou o copo dos lábios e disse: «Toda a gente que anda no comboio age como se estivesse sozinha, mas não está.» Nessa altura a Mulher rebentou em lágrimas. Karen não sabia o que fazer e a sua busca de um lenço acabou por se transformar em esfregar simplesmente o ombro da Mulher enquanto esta soluçava e sorria sem jeito, embaraçada. Heather contemplava as duas e, na Rua 77, onde tinham de sair, acenou um adeus à Mulher, agora recomposta, que olhou para Karen e lhe disse que ela devia ser a melhor mãe do mundo. Karen transferiu os créditos para a filha e, embora parecesse modéstia, no fundo ela sabia que Heather estava sempre a fazer coisas daquele tipo e que, de certo modo, ela estava neste mundo para fazer com que as pessoas se sentissem melhor.

*

Para Karen havia muito que fazer todos os dias, mesmo depois de Heather começar a estar todo o dia na escola. Havia exercício e compras, não muito trabalho doméstico que alguém não tivesse feito, atividades e enriquecimentos a descobrir, refeições nutritivas e entretimentos bem pensados a planear e, evidentemente, documentar a maravilha diária de Heather nunca podia ser ignorado. Karen organizava álbuns de recortes, colagens no computador e, com algum esforço, pequenos filmes que podia partilhar na Internet. De início sentiu-se preocupada com a ideia de que de certo modo podia estar a gabar-se, mas quando viu que toda a gente reagia à filha da mesma maneira que ela percebeu que, na realidade, estava a iluminar o dia das pessoas e que talvez essas pessoas, tal como ela, estivessem a aprender muito acerca de si mesmas à medida que viam Heather crescer.

*

Nas comunidades que visitava na Internet encontrou tantas mulheres com o mesmo espírito e recebeu tanto encorajamento que qualquer preocupação foi rapidamente desvanecida tanto por alguma mãe veterana como por algum verdadeiro perito. Isto significava que Karen passava menos tempo com as pessoas em geral, mas estava sempre disponível para interagir e, desde o início, quer estivessem a deambular pelo parque, a nadar no clube ou, mais tarde, a jogar ténis, Heather fazia o jogo de Karen, sentando-se e comendo um lanchinho com alguém.

*

A família Breakstone, por pequena que fosse, gastava mais do que a sua parcela de recursos e Mark sentia-se orgulhoso por poder proporcionar-lhes um belo apartamento. Apreciava particularmente o gosto de Karen por veludo, que era utilizado parcimoniosamente, mas que lhe parecia ser um sinal que lhe era especialmente dedicado. A cama deles tinha uma cabeceira de veludo e o conjunto da sala de estar incluía uma poltrona do mesmo material que era a sua predileta nas suas cada vez mais frequentes noites de insónia, preferindo-a ao escritório apainelado onde os móveis eram de couro frio. A poltrona da sala era vermelha, mas no escuro parecia castanha; ele deitava uns dedos de uísque no melhor copo do serviço e podia dormitar ou, pelo menos, não ficar nervoso ao ver nascer o sol ou ao pensar como aquela longa noite lhe traria uma jornada de trabalho insuportável.

*

Uma vez, já noite alta, quando Mark estava a preparar-se para a sua poltrona, lembrou-se de que podia ir ver Heather, agora com sete anos, enquanto ela dormia. Ele nunca estava sozinho com a filha e apercebia-se do ressentimento da mulher quando ele se sentava à mesa de jantar e dizia: «Então, como estão hoje as minhas meninas?» Tinha adotado esta frase porque, quando conversava diretamente com Heather, era sempre Karen que respondia em vez dela ou, então, insinuava-se na conversa. Até mesmo quando Heather estava doente e ele lhe dizia, «Como te sentes, fofinha?», a resposta era dada por Karen. «Está melhor, graças a Deus» ou «Teve um dia horrível». Por isso, nessa noite, quando deu por si no quarto da filha, a olhar para ela, sentiu-se culpado e esquisito quando ela abriu os olhos e lhe sorriu. Não conseguiu explicar por que razão estava ali, por isso limitou-se a sentar-se na cama e a afagar-lhe o cabelo. Finalmente disse: «Porque estás acordada?», e ela respondeu: «Porque não consigo dormir. Devo ser como tu.» Ele passou-lhe a mão pelos cabelos, deu-lhe um beijo na cara e disse: «Onde queres ir nas férias? Podemos ir para qualquer sítio.» E ela respondeu: «Para onde tu fores, Papá.»

*

Nesse ano, em vez de irem para St. Bart’s, Karen e Mark, a pedido de Heather, concordaram em ir a Orlando, desde que pudessem ficar instalados num hotel de luxo que não fosse dominado pelo parque temático. Tinham uma suíte com uma sala para a cama suplementar de Heather e, apesar de a menina estar sempre a descobrir e a trazer amigos, a família divertiu-se com a confusão de miúdos seguida de jantares íntimos. Uma noite, Heather insistiu em ficar no salão de jogos e Mark e Karen encontraram-se sozinhos. Na sua ansiedade embebedaram-se e fizeram amor, mas já estavam a pé e outra vez preocupados por volta das dez horas, quando Heather voltou, conforme o prometido. Havia muito tempo que não faziam amor, com Karen sempre atarefada com as aulas de dança, ténis e piano de Heather e com a insónia de Mark cada vez mais acentuada, o que o arrancava da cama conjugal quase todas as noites.

*

Na manhã seguinte chovia, por isso, enquanto Karen fazia uma massagem, pai e filha foram a uma aula de artesanato e Mark e os outros homens deliciaram-se com os raios de sol criados por Heather com o seu riso e com a sua disponibilidade para ajudar as crianças mais pequenas. Antes de sair do ateliê fizeram rapidamente um colar de missangas para Karen, não fosse esta sentir-se excluída. Mark e Karen embebedaram-se e voltaram a fazê-lo naquela noite, enquanto Heather dormia na sala ao lado, e, de certo modo, não foi tão bom, mas foi seguido por uma longa conversa murmurada acerca do tempo que levavam juntos e do milagre que era Heather. No último dia, os três sentaram-se a uma mesa mais afastada do buffet do pequeno-almoço, com vista para a lagoa artificial, e estavam tão manifestamente felizes que uma mulher que passou insistiu em tirar-lhes uma fotografia para lhes dar.

*

Enquanto a família Breakstone estava de férias, Bobby foi despedido da loja de bricolage. Disseram-lhe que poderia voltar mais tarde e que iam despedir todos os operários apenas para voltar a contratá-los, de modo a escapar a determinada legislação laboral; e Bobby ficou satisfeito por poder gastar algum do dinheiro que tinha ganhado e pensou, até, ir a qualquer sítio. Mas a Mãe tinha rompido com o último namorado e Bobby concordou em fazer-lhe um empréstimo para ela poder alimentar o seu vício, sabendo perfeitamente que nunca mais veria tal dinheiro. Não tinha importância porque, de qualquer forma, onde havia ele de ir, e vaguear por Harrison e Newark seria agradável na primavera, antes de o calor tornar tudo pegajoso. Também se sentia cada vez mais interessado em Chi-Chi, a vizinha do outro lado da rua. O irmão dela era mecânico e disse-lhe que o seu verdadeiro nome era Chiquita e que era mais velha do que Bobby pensava. Eram do México e havia outras coisas que Bobby também ignorava, mas, na verdade, tudo o que queria saber era que ela tinha reparado nele e que estava quase sempre sozinha quando ele passava por ali.

*

Um dia ele saiu para beber uma cerveja e o coração deu-lhe um salto no peito quando Chi-Chi saiu para o alpendre com um vestido azul-claro. Esta era a cor favorita dele e ficava bem à cor castanha da pele dela, e tinha renda à volta do pescoço, quase como uma camisa de noite. Quando ele se aproximou do lado dela da rua, abrandou o passo e fez-lhe um gesto de cabeça. Ela respondeu com um sorriso e ele parou. Nunca tinha parado antes, mas também ela nunca tinha realmente sorrido e, vá-se lá saber como, ela devia ter percebido que aquele azul era a sua cor favorita. Bobby subiu as escadas oferecendo-lhe ao mesmo tempo uma cerveja, mas ela limitou-se a virar as costas, a abrir-lhe a porta de rede e a entrar em casa. Ele seguiu-a rapidamente, mas nessa altura ela parou junto às escadas e pediu-lhe que saísse. Bobby não percebia que tipo de jogo estava ela a fazer, por isso pousou a cerveja e disse-lhe como ela estava bonita e como ele se sentia feliz por vê-la todos os dias. Ela voltou a sorrir, mas Bobby reparou que havia um tremor no rosto dela e era evidente que estava assustada, coisa que o deixou realmente furioso, sobretudo quando ela tentou passar por ele para chegar à porta da rua. Ele agarrou-a e disse-lhe que parasse imediatamente com aquelas cenas. Ela podia assustar-se, se quisesse, mas isso não interessava nada porque ele sabia perfeitamente o que ela queria. Agarrou-a pelo cabelo e pelos ombros, mas ela conseguiu escapar e, pegando num cinzeiro que se encontrava sobre uma cadeira, bateu-lhe com ele na têmpora. Por momentos Bobby viu tudo branco, depois fitou-a. Pegando-lhe no braço e torcendo-o, gritou-lhe: «Sabes quem eu sou?» Ela desatou a chorar e a tentar lutar até que, finalmente, ele lhe bateu no estômago, enquanto continuava a agarrar-lhe o braço, e sentiu o corpo dela a ceder. Ela correu para junto da parede e ele voltou a socá-la, desta vez num dos lados da cabeça. Quando ela caiu inconsciente no chão, ele susteve a respiração e olhou em redor tão em pânico que só mais tarde se lembrou que se estava a masturbar por cima das calças para se acalmar. Pegou na cerveja e correu para casa, onde se fechou no quarto e bebeu meia garrafa de vodca até conseguir adormecer.

*

Disse à Mãe que dissesse às pessoas que não estava se alguém viesse procurá-lo. Não fazia ideia se o irmão de Chiquita apareceria nem se ela estava morta. Mas porque tinha ela feito aquilo? Porque eram as tipas bonitas sempre tão burras? Estes pensamentos não lhe saíam da cabeça, apenas interrompidos pelos gritos da Mãe que tentava impedir que os polícias entrassem no quarto dele. A Mãe estava tão preocupada com a sua reserva de droga que se defendeu com valentia, mas Bobby limitou-se a abrir a porta e a sair calmamente, ainda atordoado pelos acontecimentos da tarde. O que era mais difícil de entender era o facto de Chi-Chi o poder acusar, quando eram eles quem vendia OxyContin na própria casa e quando ela tinha um irmão que pesava uns 100 quilos e era bem capaz de ajustar contas com Bobby sozinho.

*

Era a primeira vez que Bobby se encontrava na prisão e mostrou-se tão discreto que até lhe deram alguns antibióticos para a ferida que o cinzeiro lhe abrira na cabeça e que já estava infetada. Chiquita estava viva e o Advogado Oficioso, que Bobby bem via que estava impressionado com ele, riu-se da ideia de o Estado o condenar por assassínio sob forma tentada. As coisas correram conforme o planeado e Bobby pôde observar o tribunal a agitar-se ao seu redor como se se tratasse de uma série de TV. Bobby acabou por alegar assalto e conseguiu demonstrar alguma emoção que soou como arrependimento; antes de seguir para prisão preventiva, o Advogado Oficioso disse a Bobby que a pena era de três e não de cinco anos e que aproveitasse aquela boa oportunidade para mudar de vida. Só quando Bobby entrou na prisão, em Trenton, é que percebeu a sorte que tinha tido: a concussão de Chiquita tinha-lhe varrido da memória que ele tinha estado prestes a violá-la. Tudo aquilo poderia ter corrido muito pior.

*

Ao longo de toda a sua vida, Mark só tinha estado com algumas mulheres e nenhuma delas, com exceção de Karen, tinha sido escolhida ou engatada por ele. Depois de sofrer várias rejeições durante o liceu, incluindo por parte de uma rapariga que rejeitou as suas propostas revelando que a alcunha que a turma lhe dera, «Moonstone» (pedra da lua), não era um jogo de palavras com Breakstone, mas se referia à forma da cara dele, Mark afastou-se da vida social, descobriu a corrida de corta-mato e satisfez-se com as fotografias do livro de curso anual e de catálogos, já que a pornografia era coisa com que não se sentia à vontade.

*

Quando perdeu a virgindade na faculdade, foi uma alegria acordar ao lado de carne verdadeira, e ela foi gentil acerca do seu desempenho; e foram entrando no hábito de se encontrarem, embora ele não se sentisse minimamente atraído por ela. A rapariga não era feia, mas um pouco pesada, e era a primeira de uma série de mulheres com quem ele dormiu antes de Karen e que eram espalhafatosas, impetuosas e atrevidas e que o seduziam com um ar de caridade. O que elas esperavam dele era que ele apoiasse silenciosamente os seus sonhos irrealistas de design de moda ou de colaboração em revistas e que tomasse o partido delas em disputas, sobretudo contra todas as outras mulheres que se mostravam claramente invejosas.

*

Mark permanecia nostálgico e começou a odiar o ato sexual com qualquer uma destas mulheres, pelo que entrou celibatário no mundo do trabalho, esperando que tanto o seu salário como o que a idade lhe fizesse à cara viesse a atrair outro tipo de mulheres. Só aceitava, como experiência para criar alguma ligação, encontrar-se depois do trabalho com os maliciosos ex-atletas do seu escritório. A pedido, anunciava os seus sucessos com aquelas mulheres desesperadas, mas também os seus recuos, nunca se declarando a ninguém e considerando o prémio final do sexo uma coisa alienante quando conquistado com falsas intimidades. Tinha plena consciência de quanto Karen tinha mudado a vida dele, havia já tantos anos. Na realidade, lembrava-se muitas vezes disso desde que a nova Estagiária, uma rapariga asiática de vinte e seis anos, tinha começado a perguntar-lhe como queria o café.

*

Eram tão poucas as mulheres no escritório de Mark que qualquer presença feminina se tornava objeto de fantasia; além disso a Estagiária tinha um MBA, um daqueles novos tipos de raparigas que, erradamente, achavam que falar de modo grosseiro e explícito era um imperativo feminista. O seu modo de falar não lhe granjeou qualquer poder, pelo contrário, fazia dela uma espécie de cão brinquedo para os quadros superiores, que a mandavam ir buscar café enquanto lhe criticavam as roupas com mensagens gráficas instantâneas. É evidente que Mark não participava nisto, mas sentia-se igualmente intrigado e, às vezes, excitado, a ponto de imaginar a Estagiária quando Karen e ele faziam amor.

*

O caminho para o quarto de Mark e Karen estava cada vez mais cheio de obstáculos apesar da promessa, depois de Orlando, de passarem mais tempo nos braços um do outro. Tinham começado por marcar uma determinada noite de namoro, embora ambos acabassem por se deparar com obstáculos, Mark com o trabalho e Karen com Heather, agora com doze anos, que precisava de toda a sua atenção à vida académica e social da sua ultrachique e feminina escola preparatória.

*

Apesar do facto de Heather continuar a ser popular e uma excelente aluna, Mark concordava com Karen que a filha devia ter aulas complementares em todas as disciplinas para além de todas as suas outras variadas lições. Este calendário era esgotante para Karen, mas permitia-lhe controlar as amizades de Heather que exigiam verdadeira atenção, visto que Heather não era crítica com as pessoas, o que fazia com que frequentemente estas abusassem dela; e não era raro que alguma menina com poucos princípios se aproveitasse dela para se projetar socialmente ou como simples caixa de ressonância dos seus dramas egocêntricos. E, assim, enquanto a noite de namoro se ia desvanecendo, Karen ia-se desculpando e Mark fingindo-se frustrado, mas compreensivo, embora se sentisse aliviado, pois, se não pensasse na Estagiária, o seu desempenho deixaria muito a desejar.

*

Um dia a Estagiária fechou a porta do escritório de Mark e desatou rapidamente num pranto, perguntando o que fazia ela de errado e porque ninguém a levava a sério. Ele sentiu a onda de calor que lhe subiu à cabeça transformar-se em suor e pôs-se a gaguejar até que ela se recompôs e, limpando os olhos, murmurou que ele era a única coisa boa naquele lugar estúpido e saiu. Mark percebeu que a sua reação às palavras dela tinha sido digna, mas também percebeu o que realmente tinha acontecido e que poderia tirar partido dos sentimentos dela algures num futuro próximo, com pouco receio de se ver rejeitado.

*

Mark foi para casa mais cedo e instalou-se na cozinha até Heather e Karen finalmente chegarem. Elas tinham ido jantar a seguir a um jogo improvisado de ténis depois da aula de Heather e ele não conseguiu controlar o volume da sua voz quando disse a Karen que não tinha comido nada e que não voltaria a tolerar ser a última coisa na cabeça dela, que aquilo era uma família e que ele fazia parte dela e por que raio não podia ele jantar ou jogar ténis com Heather?

*

Heather assistiu da sala de estar, com os olhos cheios de lágrimas – embora a tivessem mandado sair – e Karen, que nunca tinha pensado em nada disto, teve um ataque de remorsos e prometeu que as coisas iriam mudar. Propôs a solução de transformar a manhã de sábado num tempo pai-filha e declarou que tinha sido negligente. Naquela noite Mark teve um sonho em que a Estagiária e Heather estavam a almoçar com ele no automóvel, que ia a grande velocidade, e que Heather de repente abria a porta e saltava para fora do carro.

*

Na manhã seguinte, Mark percebeu que a idade não melhorara o seu aspeto. O cabelo continuava no sítio, mas tinha engordado e, quando finalmente descobriu a balança de Karen – que calculava a massa gorda, verificou que tinha engordado onze quilos em relação ao que pesava no liceu e que a maior parte dessa gordura se tinha instalado nas bochechas e na papada. Decidiu recomeçar a correr, com o benefício de ver desaparecer as suas ideias sobre a Estagiária e, com exceção dos primeiros dias da primavera, quando Central Park ficava atulhado de rapariguinhas pálidas e seminuas, de deixar de ter quaisquer veleidades sexuais, terminando os dias exausto e calmo.

*

A maior satisfação de Mark tornou-se o seu dia de fim de semana sozinho com Heather. As suas idas ao cinema, aos museus ou às compras eram sempre memoráveis, porque aconteciam coisas engraçadas com Mark, como ser pisado por um cavalo perto do Hotel Plaza, e Heather, com o seu sorriso natural e a sua energia de miúda endiabrada, criava sempre algum entusiasmo entre os estranhos e era raro ambos saírem de qualquer sítio sem que alguém lhes oferecesse alguma coisa.

*

Poucos dias depois de ter chegado à Prisão Estadual de New Jersey, Bobby foi submetido a análises psicológicas obrigatórias e recrutado pelo gangue dos supremacistas brancos depois de estes descobrirem o seu apelido polaco. Os supremacistas raparam-lhe o cabelo e espancaram-no, à laia de iniciação. A princípio não entendeu que devia limitar-se a apanhar os murros, pontapés e cabeçadas do grupo de seis skinheads e ripostou, com toda a sua força a jorrar num frenesim de golpes que espantaram os outros. Finalmente perdeu os sentidos quando um deles se lhe sentou em cima do peito, mas a chuva de socos fizera-o sentir pela primeira vez o seu corpo, e a visão da sua ereção involuntária no momento em que desmaiou concedeu-lhe alguma distância respeitosa e a alcunha de «Tesão» que perdurou durante toda a sua estada.

*

Bobby não tinha paciência para o gangue, sobretudo porque o seu principal tema de conversa não era a supremacia racial, mas a lei. Nenhum deles achava que devia estar ali, pelo menos pela razão que realmente os levara à prisão, usavam palavras como «encarcerado» e eram até mais previsíveis do que as pessoas do exterior. Ouviu, por mero acaso, certas informações que lhe deram a certeza de que se ele tivesse matado Chi-Chi não estaria ali a cumprir nenhum tempo de prisão, já que ela era a única testemunha e, de facto, ele não tinha deixado qualquer vestígio de esperma e não tinha cadastro, exceto absentismo escolar, vadiagem e uns furtos em lojas quando era menor. Sabia agora que devia tê-la matado e, depois, levado algumas coisas para que parecesse roubo, livrando-se depois dessas coisas no lixo em vez de as vender ao recetador, por muito valiosas que fossem. Todas as outras conversas do gangue eram queixas, sempre as mesmas, que Bobby achava patéticas, pois ele até gostava da comida e do trabalho que fazia na lavandaria, onde às vezes se podia enrolar nos lençóis quentes.

*

Não é que Bobby gostasse da prisão, mas esta era organizada e aprendeu muito lá. Devido a um lapso nas diligências burocráticas e à falsa suposição de que Bobby insistiria num médico branco devido à sua filiação no gangue, levou meses até que o dossiê dele fosse analisado e a perceber-se que ele devia ser examinado por um psiquiatra. Isto passou-se numa sala que tinha um tapete azul, coisa que entusiasmou Bobby depois de tanto linóleo e cimento. A sua ideia era abordar aquilo como fazia com as senhoras assistentes sociais, contando a sua verdadeira história e tentando fazê-las chorar. Mas o Doutor era bonito como uma estrela da TV e relativamente novo e terra a terra, e Bobby percebeu que ele estava com medo.

*

Fez perguntas a Bobby sobre a vida dele, sobre como se sentia em relação a si mesmo e o que o fazia feliz, e Bobby contou a versão mais triste que conseguiu imaginar, baixando os olhos no final das frases e mencionando os seus passeios pelas margens do imundo rio Passaic. A maioria das perguntas do médico incidira sobre o que Bobby pensava das outras pessoas. Bobby queria dizer a verdade, que o mundo exterior lhe lembrava um jardim zoológico onde os animais viviam em cima da própria merda e ele se limitava a observá-los com pena e curiosidade enquanto eles guinchavam uns com os outros, mas, em vez disso, respondeu que não pensava nada sobre o assunto.

*

Então o Médico tornou-se direto e duro e pôs-se a sugerir algumas coisas que Bobby, tentando sacar mais informação, fingiu não entender. O Médico disse que Bobby era esperto e sabia que era esperto e era um miúdo bem-parecido que gostava de mentir porque era mais fácil. Provavelmente o Médico estava a tentar tornar Bobby violento, sobretudo quando se levantou e disse que o jogo tinha acabado e que Bobby deveria deixar de pensar que estava acima de qualquer dinâmica social e que percebia perfeitamente o modo como as pessoas se comportavam, mas isso não contava para nada na sua vida porque ele não pensava que tivesse de obedecer ao mesmo tipo de regras. Finalmente o Médico sentou-se para enfatizar as suas palavras e disse: «Se não consegue mudar, então controle-se. Você pode fazer tudo o que quiser.»

*

Bobby saiu da sessão feliz e excitado com a antecipação de algo, a ideia de poder finalmente ser aquilo que na realidade era. Tanto fazia ser a sobremesa de outra pessoa, um belo carro visto num jornal ou a miúda de biquíni que estava ao lado do automóvel, tudo agora o punha constantemente excitado só de pensar nas coisas que poderia ter. O que o Médico tinha dito era tudo verdade para Bobby; ele era tão inteligente que as pessoas o aborreciam de morte, e era uma luz brilhante entre elas, dotado com todos os poderes do céu, capaz de as violar e matar sempre que quisesse, porque era para isso que estavam neste mundo.

*

Durante a única visita da Mãe, depois de a ter convencido de que não tinha dinheiro, perguntou-lhe se ela sempre soube que tipo de pessoa ele era. Tentou explicar, com a maior clareza possível, quão inteligente, poderoso, etc. ele era, mas interrompeu a explicação ao ver que ela estava a ficar confusa. E assim ficaram ali sentados em silêncio na sala de visitas. De repente, a Mãe olhou para ele fixamente antes de dizer: «Quem diabo julgas tu que és?» Bobby acolheu a pergunta tal como tinha acolhido os milhares de bofetadas na cara que ela lhe dera, sorrindo em resposta, porque não valia a pena fazer outra coisa.