Aos cinquenta e cinco anos, o máximo desinteresse de Mark pela mulher coincidiu com a entrada de Heather na puberdade. Mais tarde Karen apontava-lhe todas as alterações físicas de Heather, mas, na realidade, Mark não reparava em grande coisa para além do facto de Heather estar a ficar mais alta do que a mãe. Aquilo em que na verdade reparou foi que havia desentendimentos entre Karen e Heather, primeiro acalorados e, depois, de um frio de gelo; a tensão que Mark sentia entre elas era tão forte que conseguia eclipsar o desconforto que ele sentia com a mulher. Mark bem via que Karen se achava inútil, enquanto a filha se tornava mais secreta e mais agressiva, mas com Mark – que passava, em geral, menos tempo com Heather – felizmente as coisas não tinham mudado muito.
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O momento dos fins de semana pai-filha foi cancelado mais do que uma vez, mas mesmo que Mark não reagisse, Heather garantia-lhe que haviam de continuar ou que até o compensava com um pequeno-almoço fora de casa durante a semana. E Heather não era tão hostil com ele, embora deixasse de lhe confiar muitas coisas a partir do momento em que Mark se recusou a juntar-se às críticas a Karen. Mark achava que participar nessas discussões era pior do que enganar a mulher e sabia instintivamente que Heather ficava mais bem servida se ele se comportasse como pai e não como amigo ou confidente. E assim falavam de filmes que tinham visto ou sobre quanto a cidade tinha mudado ou, ainda mais importante, sobre as próximas férias que fariam, porque Mark queria integrar Heather em quaisquer planos como uma espécie de investimento emocional, pois não conseguia imaginar nenhuma viagem sem ela.
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Uma manhã Mark descobriu que Heather já não era criança, quando ela pediu uma chávena de café. Karen detestava café e deduziu que a filha queria apenas parecer madura, mas Mark preocupou-se porque pensou que fosse outra coisa. Lembrou-se de que a Irmã tinha começado a sua dieta terminal com café, acabando a beber chávenas de água quente, que a faziam sentir saciada e contribuíam para a sua equação de magreza, que era calorias consumidas medidas em relação ao tempo, o que fazia com que cada momento em que não comesse ela estivesse a ganhar por estar a perder mais um bocadinho do seu horrível ser.
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Finalmente Mark concordou com um café, desde que houvesse algum bolinho a acompanhá-lo, e desistiu totalmente da comparação com a Irmã quando viu a filha comer, percebendo que ela tinha aceitado aquela comida com um prazer que ninguém que sofresse de problemas de anorexia conseguiria fingir. Noutras coisas ela lembrava-lhe a Irmã, especialmente na forma desengonçada de caminhar, mas a filha nunca olhava com nojo para o seu corpo e Mark sabia que, ao contrário da Irmã, que morrera de fome para evitar ter seios, menstruação e homens, Heather seria uma adolescente normal, o que também não era grande conforto.
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Não tardariam a aparecer namorados. Mark tinha-os visto a caminho da escola, alguns com as gravatas com o nó solto, outros de sweatshirts de capuz, a feder a desodorizante de especiarias, com preservativos nas carteiras e sabia que haviam de tentar trepar para cima de Heather, pondo-se depois todos aprumados quando o ouvissem chegar e tratando-o por «senhor». Mark sabia que queria ser avô e claro, vê-la feliz e casada, mas de uma forma ou de outra ela acabaria sempre por sair da sua vida. Mas ele preocupava-se tanto com o futuro próximo que temia estar a desperdiçar os dias especiais do fim de semana a tirar demasiadas fotografias e a recordar os momentos até mesmo quando estes estavam a acontecer.
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Heather aprendeu a fazer um ótimo café, afinando a moagem do grão e lavando a cafeteira com água a ferver, e Karen levantava-se cedo e ia à padaria comprar-lhes pãezinhos, mas acabou por não se sentir bem-vinda e, então, passou a ir ao ginásio. Mark e Heather, ainda meios a dormir, a ingurgitar café e a mordiscar os pãezinhos, rotineira e silenciosamente mas juntos e em paz, pareciam despertar em Karen uma mesquinhez enérgica.
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No Natal, Karen ofereceu a Mark uma máquina de café expresso italiana, de fabrico artesanal, que custou 1200 dólares e trazia instruções em vídeo porque nunca funcionava duas vezes da mesma maneira. Mark ficou entusiasmado e comovido antes de Karen o avisar de que a máquina era demasiado perigosa para Heather poder usá-la e demasiado complicada para Mark e que, como ela era a única que tinha assistido à demonstração, era ela que doravante podia e devia fazer o café para todos. Heather disse: «Céus, isto é patético!» E, pela primeira vez, Mark concordou silenciosamente.
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Passados três anos e meio, Bobby encontrou-se fora dos muros da prisão, mas obrigado a voltar para casa. New Jersey tinha uma política de libertação que não fornecia «dinheiro de saída», nem roupa nova, formação profissional ou deslocações, oferecendo, em vez disso, a inscrição na assistência social e vales de comida, um desconto num bilhete de comboio ou de autocarro e a oportunidade de se registar nos cadernos eleitorais. A Mãe de Bobby foi buscá-lo no Jeep Cherokee do novo Namorado, um antigo mecânico bonitão e bêbedo. Bobby chegou a casa e constatou que a televisão e o computador tinham desaparecido, assim como os eletrodomésticos da cozinha; a alcatifa tinha sido arrancada e uma das casas de banho completamente desprovida das suas loiças. Eles estavam a desmantelar metodicamente a casa, trocando cada objeto por comprimidos que, por sua vez, eram transformados em heroína.
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A Mãe e o Namorado passavam a maior parte do tempo às escuras porque todas as lâmpadas estavam no quarto onde tentavam cultivar marijuana. O antigo quarto de Bobby estava exatamente como ele o deixara, só que agora era o quarto deles, e eles devolveram-lho sem que tivesse de pagar renda durante uns tempos, até chegar o dinheiro da assistência. Os lençóis manchados de sangue e os copos vermelhos descartáveis deram-lhe volta ao estômago quando se enroscou para dormir nessa primeira noite, demasiado cansado para fazer planos além de esvaziar a garrafa de vodca que eles tinham deixado em cima das listas telefónicas que serviam de mesa de cabeceira. Havia um ano que não bebia nada e, à medida que o calor se lhe ia espalhando pelo peito e pela cara, Bobby sentiu-se invadido pela paz de não estar na cadeia e foi com lágrimas nos olhos que escutou o rumorejar das árvores ao vento do fim de inverno mesmo diante da janela do quarto.
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O Agente da Liberdade Condicional de Bobby fez longos discursos animadores sobre como agarrar as oportunidades e estava sempre pronto a dar-lhe 50 dólares ou a pagar-lhe um Big Mac. O Agente era jovem, negro e foi verdadeiramente de grande ajuda quando percebeu que Bobby era um skinhead só na aparência. Até interveio junto do dono da loja de bricolage para que Bobby recuperasse o antigo trabalho, quando verificou que o crime era agressão agravada e não roubo e que Bobby fora libertado em condições positivas.
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Um dia Bobby teve de interromper uma briga entre a Mãe e o Namorado e apareceu com um olho pisado e acabou por revelar ao Agente que, embora a partilha de heroína tivesse dado início ao romance deles, o vício tinha aumentado e obrigava-os a discutir violentamente por tudo e por nada. O Agente disse que Bobby era um sobrevivente e insistiu com ele para que saísse de casa o mais breve possível.
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Bobby tinha-lhe contado coisas a mais, mas o homem preocupava-se realmente com ele e, depois de a polícia ter intervindo semanas depois, dado que outra festa noturna acabara mal, o Agente insistiu para que Bobby começasse a poupar para sair dali. Como se podia esperar que ele «se erguesse das cinzas como uma fénix», perguntou o Agente, «se estava a viver num ambiente tão depravado?». Bobby sabia que isto era verdade e limitou as suas despesas a três pares de calças jardineiras, um bom par de sapatos, o seu terço da renda e um par de garrafas de litro e meio de vodca por semana.
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A loja de bricolage não tinha mudado e o seu contacto com as clientes limitava-se a longas olhadelas quando elas iam à procura de lâmpadas ou de materiais de calafetagem. Do seu poleiro na empilhadora, Bobby via-as a deambular por ali, claramente em busca de homens e sem encontrar nada que lhes servisse, cordas ou luvas ou ele, Bobby. Ele portou-se sempre bem, nunca seguindo sequer nenhuma para lá do parque de estacionamento, e contentava-se com percorrer o velho bairro, escondendo-se atrás de automóveis ou deitando-se à beira do rio para, em espírito, as possuir cruelmente.
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Professores e artistas tinham começado a instalar-se em Harrison e agora Bobby só tinha de se preocupar em ser roubado pelos drogados lá de casa e guardava 2300 dólares escondidos no forro do casaco. Andava sempre com o casaco vestido e até o levava para a casa de banho quando tomava duche. Às vezes despia-se e deixava correr a água enquanto contava as notas e imaginava mudar-se para onde houvesse raparigas, não apenas rapazes gays e polacos velhos, e, nesse novo sítio, talvez comprasse um carro e alugasse um quarto com um frigorífico pequeno onde pudesse manter frias as suas bebidas para quando estivesse a ver TV.
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No início de julho veio uma tempestade acompanhada de um calor extremo e de uma humidade que fazia tudo murchar, e o facto de Bobby andar de casaco levantou tanta desconfiança que uma noite o Namorado da Mãe introduziu-se pé ante pé no quarto de Bobby e esmurrou-o na cabeça até o seu sono pesado se transformar em inconsciência. Bobby acordou um dia depois encharcado em suor e estonteado, tendo faltado ao trabalho. Tropeçando até à cozinha, foi encontrar a Mãe pedrada, com um olho pisado e o valor de dois dias de droga fechado na mão, que era tudo o que lhe restava do Namorado. Estava tão desorientada que, apesar da dor de cabeça de Bobby, este conseguiu injetar-lhe aquilo tudo e esperar que ela tivesse uma convulsão e desmaiasse antes de a meter na banheira cheia de água e de pegar fogo à casa arrastando a churrasqueira acesa para a sala.
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Numa cama do serviço de urgência, Bobby contou à polícia que tinha acordado na casa cheia de fumo depois de ter sido violentamente espancado e roubado pelo Namorado da Mãe. Tendo investigado ambas as partes em diferentes ocasiões, a Polícia concluiu que aquele era um resultado inevitável. Bobby decidiu não apresentar queixa, o que ajudou o Agente da Liberdade Condicional a reinstalá-lo por uma questão de segurança e Bobby, agora mais sensato, não lhe disse o quanto ansiava ter a oportunidade de matar o Namorado da Mãe nem se gabou do modo como se tinha realmente erguido do fogo.
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Quando viu que Heather, agora com treze anos, estava a mudar, primeiro a crescer e a adelgaçar e, depois, com os seios a começarem a desenvolver-se, Karen deu saltos de alegria preocupada e levou-a a uma loja de sutiãs, revivendo a sua própria adolescência e sendo da sábia opinião que estas mudanças só podiam ser para melhor. Por detrás da cortina de chuveiro transparente que servia de provador na loja de sutiãs de Madame Olga, riram-se como miúdas amigas, a mulher estrangeira a apalpar e a medir Heather para encontrar o número de copa perfeito e incontestável. Karen até comprou um cheque prenda para Heather poder comprar mais sutiãs à medida que crescesse, sem precisar de ir com a velha Mamã atrás.
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Heather recebeu um telemóvel e licença para voltar mais tarde para casa, e até a levaram a Filadélfia para assistir a um concerto de rock cheio de barulho e de drogas. Todavia Karen interrogava-se se a sua preparação magnânima para a rebelião da filha não teria sido precisamente o gatilho da dita rebelião, porque esta explodiu muito poucas semanas depois. As tarefas e os telefonemas eram ignorados, o recolher obrigatório deixou de ser respeitado, produtos de maquilhagem foram roubados e se, no princípio, Heather esqueceu a higiene pessoal, logo caiu no excesso oposto, tomando dois duches por dia.
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No decorrer do ano seguinte, Heather descobriu utilizações catastróficas para o seu poder recentemente adquirido, como, por exemplo, abandonar todas as aulas e deixar de ouvir a voz da Mãe; isto aconteceu tantas vezes que Karen a levou a um otorrino. Uma noite, depois de ter sido repreendida por vir para a mesa com os auscultadores pendurados ao pescoço, Heather foi calmamente para o quarto, bateu com a porta e fez-se um grande silêncio. De repente, toda a conversa passou a conversa fiada, e nenhum tema, nem o tempo, nem as eleições, nem sequer o sal a mais na sopa, merecia uma abordagem de mais de uma palavra.
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O silêncio criou uma tal ansiedade em Karen que, mesmo depois de ter passado um mês a espreitar o telemóvel da filha enquanto esta dormia, os seus temores não conseguiram ser apaziguados. A chegada do período de Heather só foi descoberta algum tempo depois, quando Karen encontrou uma caixa de tampões debaixo do lavatório do quarto de hóspedes, e compreendeu que a validade do discurso lacrimejante que tinha preparado sobre as futuras maravilhas da maternidade e o amor no casamento já expirara havia muito e que só lhe restavam alguns conselhos práticos do tipo de não deitar coisas na sanita.
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Desde o primeiro dia de escola de Heather, Karen demorava-se na zona da saída com as outras mães, todas vestidas com fatos de treino a debater para que café ir ou até se haviam de ir de todo, e as gabarolices eram constantes. Apesar de Karen ser aquela que mais razões tinha de se gabar, continuava a sair daquelas conversas sentindo-se inadequada, inarticulada e desarmada. Também descobriu que, se realmente fossem tomar café ou almoçar, era sempre em grupo e nunca era ela a escolher o restaurante, e as suas tentativas de levar a conversa para algum tópico ou emoção eram sempre ignoradas. E embora soubesse que quando não estava lá era ela que se tornava o tópico da conversa, e que as pessoas que se gabavam estavam era a exprimir as inseguranças que ela, Karen, suscitava nelas, nada disto conseguia afastar o terrível sentimento de ser a terceira, a quarta ou provavelmente a quinta pessoa a mais. Parecia-lhe que o melhor era evitar aquilo tudo e por isso nunca concorreu para a Associação de Pais nem propôs nada além de pratos de papel. Era óbvio que os seus serviços não seriam desejados nem necessários e, previa ela, no fim não seriam sequer reconhecidos.
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As suspeitas de Karen foram confirmadas quando, mesmo antes do término do ensino básico de Heather, uma das mães a convidou para uma sessão de bicicleta ergométrica. Ao aproximarem-se do estúdio, no cruzamento da Rua 83 com a Terceira Avenida, ela sugeriu displicentemente que Mark e Karen garantissem o custo total da festa de patinagem e do jantar e baile da noite de fim de curso. Com um sorriso, argumentou com Karen que sabia que eles eram uma família muito ocupada mas que deviam participar de alguma maneira na vida da escola. Ao fim e ao cabo, não queriam envergonhar Heather, pois não? Karen aguentou até metade do exercício, altura em que o seu ritmo cardíaco ultrapassou o do monitor da bicicleta e saiu, acabando por descobrir que estava a sofrer de um verdadeiro ataque de pânico.
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O novo distanciamento de Heather era por si só insuportável, e até a própria Mãe de Karen se tinha rido de tudo aquilo e disse que Heather ia ficar ótima. Assim, após um breve período de psicoterapia, que previsivelmente se transformou numa discussão irritante sobre a sua própria infância, Karen tornou-se uma pessoa zangada e tristonha. Começou a provocar a filha com regras arbitrárias e castigos excessivos, negando-lhe dinheiro e imitando, até, conversas em que ela fazia os dois papéis e copiava o tom monocórdico da filha. Finalmente, uma noite em que não tinha podido ir dormir a casa de uma amiga como combinado por estar a nevar, Heather apareceu à porta do quarto da mãe e disse, «Sei que não queres que eu tenha amigos porque não tens nenhum e tens medo que te abandone», e depois virou costas. A empatia de Heather tinha amadurecido com o resto da sua pessoa e era agora incisiva a ponto de magoar.
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Karen deixou de dormir e ficava acordada na cama sozinha pois Mark adotara definitivamente o sofá. Sentia o coração apertado com recordações da filha pequenina na cama deles, a arder em febre ou a soluçar em consequência de algum pesadelo ou murmurando para consigo enquanto as bonecas navegavam pelos terrenos do edredão. Uma vez, em Central Park, ao irem buscar os seus cafés gelados ao restaurante perto dos veleiros, Karen deixou cair a mala e o conteúdo espalhou-se pelo cimento. Um jovem casal de turistas franceses começou a ajudá-las a apanhar as coisas e, naquele momento, Heather disse: «Muito obrigada. A minha amiga é um pouco desastrada.» Karen emocionou-se de tal maneira que Heather empalideceu, temendo ter magoado a mãe irremediavelmente. Meu Deus, Heather era tão bonita e Karen estava lá para ela mas deixava-a ser independente e ninguém ria mais e, graças a Deus, Heather era modesta, porque demasiada atenção não tornava as pessoas agradáveis. Só agora é que Karen percebia que havia reagido daquela maneira porque tudo o que sempre quis foi que Heather fosse sua amiga.
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E por muito que Karen odiasse a perda daquilo que tinha sido, o que realmente odiava era ver Mark colher a recompensa de todo o trabalho duro que ela fizera, exagerando os conflitos dele com a filha quando, em geral, eles gostavam da companhia um do outro, de tomar o café juntos e de fazer compras e Mark deixava-a fazer tudo o que ela queria.
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O verdadeiro problema para os Breakstones começou quando um gestor de fundos de investimento, casado e com dois filhos, comprou a penthouse. Tencionavam esventrar todo o apartamento e propuseram aos seus novos vizinhos assumir os encargos do imóvel durante seis meses se estes permitissem a instalação de uma calha de descarga desde a futura cozinha até a um contentor colocado no pátio durante as demolições. A administração do prédio, obstrucionista como de costume, propôs um compromisso aos mais recentes e muito generosos moradores e o gestor de fundos de investimento acedeu a aproveitar aquele período de incomodidade para custear também a recuperação das fachadas. Os elevadores fervilhavam de ciúmes e desconfianças, o edifício não tardou a ficar coberto de andaimes e quase todas as famílias optaram por sair de casa.
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Mark sabia que, durante o dia, Karen seria a mais afetada pelas obras, mas a sua sugestão de subalugar um andar mobilado na Casa Carlyle revelou que Karen não estava minimamente interessada numa mudança tão drástica embora temporária, e atarantava-a a ideia de ter de mandar desviar o correio. Permaneceram, pois, no prédio, com a opção de sair se houvesse cortes de água ou de eletricidade ou se o barulho constante se tornasse muito difícil de suportar. Heather não teve voto na matéria, mas ambos se convenceram de que estavam a sacrificar o seu próprio conforto para que ela pudesse ter a estabilidade necessária à vida e ao bem-estar de uma adolescente.
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Mark era um apreciador da beleza do outono em Nova Iorque, embora depressa se tivesse tornado evidente que aquele outono ia ser tão sinistro como o mais longo dos fevereiros. No dia a seguir ao Labor Day1, Mark recebeu um memorando desanimador sobre as bonificações de fim de ano e, uma semana depois, a batalha das obras foi travada e perdida. O pior de tudo foi que Heather tinha começado o nono ano e inscrevera-se, entusiasmada, no grupo de debates e as suas tardes e fins de semana estavam sempre ocupados com ensaios e concursos, por vezes fora da cidade.
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Ela era boa naquilo e estava a tornar-se politizada e argumentativa, se bem que o seu encanto natural fizesse com que tudo o que dizia parecesse razoável. Continuava a ter bom feitio e a falar pelos cotovelos com ele, mas andava completamente obcecada e ele detestava que ela levasse o café na garrafa térmica luxuosa que Karen lhe tinha comprado e que viajasse para Chicago, Buffalo e Dallas nos pequenos aviões interurbanos. O que Mark mais detestava eram as noites de hotel, cheias de pândegas com equipas mistas, sendo que cada deslocação destas era marcada por incidentes que nunca envolveram Heather mas miúdas mais velhas, álcool e um vaivém entre quartos.
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Heather garantia-lhe que os rapazes continuavam a irritá-la e que preferia a sua escola de meninas onde ninguém precisava de esconder a sua inteligência e a sua ambição para arranjar um namorado, e Mark viu que todas as ideias de Heather eram profundamente refletidas e apresentadas como posições para serem defendidas. Mark começou a ler jornais para estar à altura dela, pois muitas vezes as opiniões dele eram antiquadas e baseadas em estatísticas havia muito tempo desmentidas. Adorava aquelas novas conversas intelectuais, por muito acaloradas que fossem as discussões, porque muitas vezes sentia-se diminuído pela lógica dela e, ao mesmo tempo, cheio de orgulho por uma rapariga educada naquele mundo, naquelas escolas, ter uma tão profunda empatia económica.
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O único tema tabu era o prédio, porque Heather sentia-se excitada com as mudanças, mas Mark ficava furioso com aquela calamidade de barulho e pó, sentindo-se culpado. Era ele o responsável por Heather e a Mãe sofrerem aquilo tudo, porque nunca tinha ganhado o dinheiro suficiente para comprar a penthouse ou, mais grave ainda, porque nunca tinha conseguido que se mudassem para a Quinta Avenida, onde estes problemas não existiam e onde se podia ver o Central Park e recordar apenas os prazeres da infância.
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Duas semanas depois do início dos trabalhos de reconstrução, Karen começou os preparativos para a festa dos catorze anos de Heather, fazendo muitas visitas desnecessárias a várias pastelarias e restaurantes para uma inspeção pessoal. Depois de ter feito reserva em dois lugares diferentes mandou um SMS à filha com o objetivo de saber se ela preferia jantar num restaurante francês ou num italiano. Passados poucos minutos, Karen percebeu que a resposta não estava prestes a chegar e dirigiu-se para Lexington Avenue em passo estugado, compondo mentalmente outros SMS onde dizia que tinha feito reserva para quatro se, por acaso, Heather quisesse trazer alguma amiga, que mais valia não jantar em casa por causa do pó, que não queria fazer festas nenhumas lá em casa e que mais poderia acrescentar, era Heather que fazia anos, queria jantar ou quê?
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Quando Karen entrou de rompante no apartamento, o calor extremo proveniente da cave não tinha sido ajustado ao tempo quente impróprio da estação e ela foi rapidamente para a cozinha, onde abriu de par em par a janela que tinha fechado por causa do barulho, jurando que nunca mais voltava a fechá-la. A luz ainda entrava na cozinha, porque o prédio vizinho ficava demasiado próximo para poderem instalar andaimes e, enquanto retomava o fôlego, Karen pousou as mãos no peitoril baixo e, inclinando-se na janela, olhou lá para baixo de uma altura de dez andares, contemplando as possibilidades espetaculares de uma mudança permanente.
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Reconheceu o ataque de pânico e, depois de ter engolido dois anti-histamínicos com um copo de vinho branco, sentou-se à mesa da cozinha e fez a segunda lista da sua vida, uma coluna intitulada «Razões de Existir» e outra «Razões de Não Existir». Estaria Heather ainda no topo das positivas? Finalmente acabou por se acalmar e pôs-se a pensar noutras perspetivas, como a de recomeçar a trabalhar em publicidade ou de fazer uma plástica aos seios e aos olhos. Sabia que estes projetos a ajudariam a ultrapassar a adolescência de Heather e que esta atitude de independência, por muito falsa que fosse, a prepararia para quando a filha amadurecesse e voltasse para ela. Ao analisar o papel também percebeu que Mark estava ausente de ambas as razões.
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Quando saiu de Harrison, Bobby tinha juntado quase 1200 dólares, parte proveniente do subsídio por morte concedido pelo Estado e outra parte de uma coleta feita na loja de bricolage em jeito de condolências pela triste morte da Mãe. Com a ajuda do seu Agente de Liberdade Condicional, Bobby procurou um trabalho novo num lugar diferente e instalou-se num motel que aceitava permanências prolongadas em North Bergen, perto da área denominada Rotas 1 e 9. Era um bom lugar para arranjar trabalho, pois tratava-se de uma autoestrada federal sem portagens que desembocava perto do túnel Holland, o qual estava transformado numa garagem decrépita e num armazém de ferramentas da cidade de Nova Iorque. Seguiu o conselho do funcionário de uma loja que tinha rejeitado o seu pedido de trabalho e postou-se no parque de estacionamento juntamente com outros homens, uns mais jovens e outros menos jovens, à espera que alguma carrinha de passagem os contratasse por 50 dólares ao dia. Ser jovem e forte não bastava para garantir ser selecionado, então começou a imitar os mexicanos, que sorriam sempre com um ar muito grato mesmo que não estivessem felizes e que nunca partilhavam as suas cervejas matinais e que falavam espanhol à frente dele como se ele não estivesse ali.
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Todos os dias, incluindo aos fins de semana, Bobby ia para a fila, o que fez com que começasse a trabalhar regularmente e a economizar dinheiro, e talvez pudesse vir a fazer parte permanente de uma equipa em Manhattan. Nunca tinha estado muito tempo em Manhattan, para além de eventuais visitas de escola e da ida ao circo, e o trajeto excitava-o, a partir do momento em que a cidade aparecia ao longe, até que faziam a curva e saíam do túnel e ele via, de repente, muito próximos os enormes prédios. O plano da cidade era tão organizado, em blocos tão perfeitamente alinhados, cada caixa de aço contendo uma caixa de vidro; até os automóveis eram quase idênticos, pretos e quadrados. A parte favorita de Bobby vinha depois de passarem pelo parque frondoso com os polícias a cavalo, quando podiam acelerar o suficiente e ele sentia o ritmo cadenciado das ruas cruzando as avenidas que proporcionavam rápidos vislumbres de céu.
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Nos passeios, em contrapartida, Bobby sentia-se nervoso ao ver tantas pessoas que passavam por ele sem o olhar de frente, o que lhe recordava as suas primeiras semanas na prisão. Somando-se a esse desconforto, estavam os cheiros, não o cheiro a gasóleo ou a lixo, mas o cheiro constante a odor humano, como se a pele e o hálito de todos aqueles desconhecidos fedessem a cebola e a vómito. O constante vaivém de transeuntes e o caos generalizado do novo local de trabalho tornavam impossível a Bobby defender-se desses odores, isto sem falar nas senhoras idosas que lhe atiravam à cara perguntas idiotas e que traziam nas mãos sacos de plástico cheios de merda de cão ainda quente. O fedor a naftalina e a decrepitude humana enojava-o de tal maneira que ele se escondia no apartamento esventrado do último andar, geralmente por cima do terraço, para ficar sozinho com a vista e com o cheiro do material de isolamento.
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Foi no seu posto no telhado que, num fim de tarde, Bobby sentiu pela primeira vez um leve aroma que lhe fez entornar o café e inalar. O nariz e os pulmões encheram-se-lhe de repente de uma mistura de cigarro, sabonete e sangue que explodia de uma rapariga alta e magra que falava ao telemóvel; o fumo do cigarro enrolava-se em torno dos seus cabelos castanhos que lhe davam pelos ombros e era como se ela estivesse em chamas. Para qualquer outra pessoa o tempo teria certamente parado, mas Bobby não tinha qualquer noção de tempo. Para ele as coisas eram interessantes ou enfadonhas e, no que se referia a pessoas, estas eram ameaçadoras ou excitantes.
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Bobby observou-a, sabendo que ela pensava estar sozinha no telhado enquanto puxava para baixo a saia escocesa a fim de cobrir melhor as coxas macias e chupava rebuçados de mentol, preparando-se para regressar ao apartamento. Bobby olhava para a rapariga e sentia um desejo tão intenso que pensou que ia desmaiar ou ejacular.
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A carrinha saiu nessa noite exatamente às cinco horas, o que significava que naquele dia não voltaria a ver a rapariga, mas não tinha sido difícil descobrir quem ela era, pois no prédio só viviam naquele momento duas ou três famílias e o correio era posto numa mesa no átrio demolido. Chamava-se Karen ou Heather Breakstone, vivia no décimo andar e gostava de catálogos e revistas que trouxessem perfumes.
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Bobby fez a viagem de regresso num estado de emoção, amaldiçoando-se por não ter tirado uma fotografia com o telemóvel enquanto tentava reconstruir mentalmente a cara e o corpo dela e, quando chegou a casa, foi procurar uma fotografia de qualquer rapariga que pudesse imaginar que era ela. O mais próximo que conseguiu encontrar foi o retrato de uma cheerleader numa revista pornográfica, mas que não tinha aquelas mamas perfeitas, nem as coxas compridas e macias cortadas pela saia escocesa, nem aquela penugem na face que, à luz do sol, fazia parecer que tinha sido polvilhada com pó de ouro.
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Bobby não tinha sentido qualquer alívio quando matou a Mãe. Limitara-se a deixá-la ir, e os seus atos foram tão práticos e normais que mesmo pegar fogo à casa não lhe causara satisfação. As suas necessidades tinham sido negadas durante tanto tempo que agora se haviam transformado numa espécie de zumbido permanente de desejo, como se tivesse uma mola constantemente esticada através dos seus membros.
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Um vislumbre da rapariga era tudo o que ele almejava ter todos os dias ou tudo aquilo que lhe era permitido, porque o contacto visual com os locatários não era autorizado, especialmente no que tocava a Bobby, de cujo cadastro tinham sido informados. A primeira solução que encontrou foi espreitá-la através de um pedaço esquecido de espelho, mas depois aperfeiçoou a técnica, achou ele, tirando fotografias e fazendo vídeos no telemóvel, o que ainda era perigoso, e ele recusava-se a pôr em risco este trabalho com medo de não voltar a vê-la de todo. Começou a observá-la através do cheiro, inalando a névoa de perfume que pairava à porta de casa dela e no lixo do apartamento, o lixo dela em particular, com as bolinhas de algodão, as cotonetes e outras coisas plenas do aroma do ferro. Sabia que nunca se poderia arriscar a entrar no apartamento, mas às vezes comia o seu almoço no andaime em frente ao quarto dela, a espreitar o cenário real das suas ideias cada vez mais específicas.
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Tentava manter-se calmo enquanto ia aprendendo os hábitos, rotinas e horários daquilo que percebeu ser uma família pequena. O Pai e a Mãe da rapariga, o Porteiro, os amigos dela e até o Mestre de Obras pareciam organizar as suas vidas em torno da presença dela, tal como Bobby fazia. As pessoas esperavam por ela ou iam atrás dela durante um quarteirão, e toda a gente parava para a ver passar. Ele observava-os a todos pelo canto do olho, como se estivesse a espreitar uma telenovela, e a natureza da rapariga tornava-se cada vez mais clara, mesmo à distância, porque a vida da família se desenrolava em grande parte na rua.
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Heather, como Bobby agora lhe chamava mentalmente, depois de ter encontrado um envelope quadrado e brilhante vindo de uma coisa chamada Fundação da Fibrose Cística endereçado à Sra. Karen Breakstone, era esperta com as pessoas, tal como ele, Bobby, era, nomeadamente com os pais; ternurenta com o Pai de cara de bebé e forte com a Mãe de peito pesado. Mas Bobby percebeu que Heather era muito diferente dele em todas as outras coisas, era risonha e confiante, bondosa com as amiguinhas gordas, a falar delicadamente ao telemóvel e até a deitar as migalhas do brioche no passeio para os passarinhos. Era uma pessoa que irradiava vida, mesmo quando estava sozinha, ou pensava que estava.
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É evidente que só um vislumbre dela nunca era suficiente e, felizmente, à medida que os dias iam arrefecendo, as pernas dela, arrepiadas de frio, eram muitas vezes enfiadas em calças de treino largas na cintura e um dia, tendo ela parado junto ao alpendre, as calças revelaram umas cuequinhas azul-bebé quando ela se debruçou. Bobby viu isto de junto do contentor do lixo, mas não teve tempo de sacar do telemóvel. Não foi preciso porque, como se obedecendo à vontade dele, quando Heather atravessou a rua a correr para ir ter com o Pai, virou-se e lançou uma olhadelazita a Bobby, os olhos de ambos encontraram-se por instantes e, enquanto os ruídos da cidade caíram do céu e se fez silêncio, ele tentou lembrar-se de como se sorria.
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Agora Bobby sabia tudo o que precisava de saber e sabia, também, que os seus planos eram demasiado modestos e que tinha de ir bem mais longe do que apenas fechá-la num quarto e possuí-la de todas as formas e feitios, de alto a baixo, em várias poses e posições. Desse por onde desse, ia ter de matar Heather para desta vez não ser apanhado, mas só pensava na altura em que, com treze anos, tinha ido à igreja católica com uma assistente social. Lembrava-se de que, quando tomou a hóstia e o vinho, sentiu-os transformar-se realmente em qualquer coisa na sua boca, como um fumo de cocaína ardente, e depois correu para casa numa raiva de destruição, rebentando pelo caminho caixas de correio e caixotes do lixo, chegando até a partir o para-brisas de um automóvel só com o punho nu. Teve então a certeza de que a sua força e poder provinham daquele pedacinho mínimo de Deus que tinha comido, e durante meses tentou voltar a comungar, mas a assistente social tinha sido transferida e Bobby era demasiado tímido para entrar sozinho numa igreja.
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Nessa noite, no seu quarto de motel, Bobby deitou-se rígido na cama, a olhar para a cara dela no telemóvel, sabendo que, agora que os seus olhos se tinham encontrado e porque ela era tão preciosa para todos, ela seria a sua hóstia e o seu vinho. Perguntava a si mesmo em que tipo de luz branca se transformaria se a possuísse ainda de mais maneiras depois de a ter estrangulado devagarinho. Bobby tomaria todos os bocadinhos de Heather e eles seriam um só dentro dele e ele poderia ser o princípio e o fim de todas as coisas.
1 Feriado nacional americano celebrado na primeira segunda-feira de setembro, equivalente ao Dia do Trabalhador. (N. da E.)