Algures, entre o décimo quarto aniversário de Heather e o Halloween, Mark recebeu mais notícias desagradáveis acerca da sua promoção e resolveu começar a procurar outro emprego. Tinha cometido o erro de contar a Karen, que, como era de prever, ficou preocupada, mas que se pôs completamente do lado dele, contra aqueles rapazotes sabichões e pouco meritórios que passavam a vida a ultrapassá-lo só porque jogavam basquetebol com o patrão e o filho deste. Mark não era uma má perspetiva; o seu CV acompanhava os dez anos de crescimento da empresa e os seus anos de jogging tinham-no conservado magro e tinham, até, feito com que a sua cara grande finalmente assentasse como devia no crânio, dando-lhe um aspeto sóbrio e amadurecido.
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As entrevistas de procura de novo emprego iniciaram-se rapidamente e tinham de ser geridas como um affair, com telefonemas a horas tardias e em restaurantes de periferia, para não alertar o escritório. Mark até ia correr mais cedo para poder marcar algum encontro ao pequeno-almoço, algures no escuro. O vazio da cidade antes da madrugada dava-lhe a oportunidade de ensaiar as suas deixas em voz alta, relembrando as suas vitórias e experiências com respiração ofegante.
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No dia de uma entrevista especialmente promissora, Mark fez uma corrida muito mais longa do que o habitual e, quando regressou a casa, encontrou a luz e a água cortadas. Enquanto considerava o horror de se secar com uma toalha antes de vestir o fato, apercebeu-se de que os despertadores também se tinham desligado e, então, foi acordar Heather, depois Karen, vociferando enquanto se encharcava em água-de-colónia. Karen disse-lhe que tinham sido avisados do corte e que, por isso, não poderiam apresentar queixa e, assim, Mark, furioso e desesperado, foi buscar dois cafés com leite para Heather e para ele. Porque é que ainda estavam no prédio, pensou ele, sentindo o pescoço suado de encontro ao colarinho engomado, e porque é que aquilo tivera de acontecer naquele dia e porque é que ele tinha posto tanta água-de-colónia que a mulher que se encontrava atrás dele no café se tinha posto a espirrar?
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Mark regressou furioso ao apartamento, com os dois cafés a balançar num tabuleiro, a deitar contas às suas parvoíces, incluindo o facto de ter de beber ainda mais café durante a entrevista e, quando ia atravessar a rua em frente ao seu apartamento, o seu apartamento onde Heather o esperava, sentiu-se gelado. Heather estava a olhar para o telemóvel e um dos operários estava a olhar para ela. O olhar provinha de um tipo baixote, de avental de trabalho, e era tão intenso e carnal que Mark atravessou a rua a galope e empurrou Heather para longe, como se estivesse a meter-se entre ela e um automóvel que podia atropelá-la. Heather ficou irritada e confusa, pegou no seu café e, ao começarem a andar, Mark olhou para trás, para o Operário que tinha a cabeça praticamente rapada, com o cabelo que lhe restava de demasiado branco para uma pessoa tão nova, e olhos azuis muito claros, agora desviados para os detritos que estava a recolher à pazada.
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Mark esteve tão distraído durante a entrevista que nem se esforçou grandemente e, apesar de ter recebido uma oferta séria de trabalho, isso não lhe serviu de consolo ao voltar para o escritório, desembrulhar o almoço e, finalmente, ir para casa, já que a ansiedade substituía toda a fome que pudesse ter. Sentia a cabeça a andar-lhe à roda quando se postou do outro lado da rua, sem ter a certeza se estava a agir movido pelo desejo de espiar ou por verdadeira preocupação com a segurança da filha, que estava certamente a sair da escola naquele momento. Fez de conta que estava a falar ao telemóvel quando o Operário desceu com um carrinho de mão, parando casualmente junto ao contentor, até que, num timing perfeito, Heather contornou a esquina e ele, de súbito, recomeçou a trabalhar.
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Mark observava a filha a aproximar-se de casa, ignorante do longo olhar doentio de que estava a ser alvo, e, quando o patife limpou a boca, com o olhar a vasculhar a saia de Heather enquanto ela entrava no prédio, Mark esteve prestes a gritar do outro lado da rua e a ir confrontar o indivíduo, mas, em vez disso, tirou uma fotografia com o zoom do telemóvel e, sem saber bem como, regressou a Central Park, onde tinha começado o dia, com a cabeça cheia de pensamentos agora indizíveis.
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Perguntava a si mesmo se aquele skinhead, baixote e sebento, só teria esperado a filha duas vezes naquele dia ou se seria um ato regular e se aquele olhar de tubarão carnívoro seria algo mais do que simples concupiscência. Podia ser o olhar de alguém que previra ser rejeitado e que odiava aquela miúda toda elegante que se pavoneava por ali, dona e senhora de tudo aquilo que ele não podia possuir. Mark ansiava que fosse apenas desejo aquilo que vira ser dirigido à filha duas vezes nesse dia e, meio tonto, quase caiu em cima de um banco ao tentar recuperar o fôlego, porque o seu corpo deduzira imediatamente o que a mente levara uma hora a compreender: o olhar do Operário fora de tal modo violento e esfaimado que fizera Mark fugir a sete pés.
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Quando Mark voltou para casa encontrou Karen muito satisfeita, porque já havia água quente e luz, como é normal quando a água e a eletricidade são restabelecidas, a preparar o jantar, uma refeição familiar de massa de três cores, o prato favorito de Heather. Mark entrou na cozinha com a gravata desapertada e a camisa encharcada em suor e, ao dirigir-se para o quarto, insistiu com Karen que precisavam de falar. Só muito mais tarde, quando Mark se sentou à mesa para jantar, irritado embora refrescado pelo duche, é que Karen percebeu que ele estivera à espera dela no quarto para conversar a sós. Sentiu a impaciência dele crescer ao longo do jantar, embora ultimamente os jantares se tivessem tornado agradáveis porque Karen aprendera a falar com a filha, introduzindo nas conversas, de forma casual, tópicos como o Radicalismo Islâmico ou o Controlo de Armas.
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Quando a luz do quarto de Heather se apagou, Mark ia a meio de uma garrafa de uísque e Karen fechou a porta do quarto, sentindo alguma apreensão. Lembrava-se do suor e da expressão envergonhada na cara dele ao chegar a casa e deduziu que ele estava prestes a confessar alguma infidelidade ou, mais provavelmente, que perdera o emprego. Afastou-se para um lado da cama, para lhe dar lugar, mas Mark preferiu ficar de pé, e foi muito emocionado que lhe contou numa voz murmurada os acontecimentos do dia.
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Mark titubeava agora, não porque estivesse bêbedo, nem porque tivesse chegado a muitas conclusões em tão pouco tempo, mas porque não sabia que pormenores poderia partilhar sem parecer irracional. Achou melhor não mostrar a Karen a fotografia que tinha tirado com o telemóvel e, assim, só lhe pôde explicar o perigo a que tinha assistido, e para provar o que dizia contou que tinha visto o mesmo olhar numa das estrelas de futebol que o Pai treinava, e que tinha havido dois casos célebres de raparigas mortas e violadas por este jogador algures num colégio do Sul. Mas, quando viu Karen a sorrir enquanto ele lhe contava isto, perdeu as estribeiras. Karen jurou que sorrira porque ficara aliviada e não divertida por as notícias serem estas, mas a verdade é que ela estava mais preocupada com o resultado da entrevista dele do que com o eventual perigo que a filha corria.
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Não havia discussão possível: ou ele ou Karen, se ela achasse que era mais convincente, tinham de falar com o Mestre de Obras e contar-lhe tudo com todos os pormenores, insistindo que o Operário tinha de ser despedido ou, pelo menos, mandado trabalhar para outro lado. Esta declaração firme mereceu finalmente a atenção de Karen, que a analisou e, em seguida, rejeitou esta opção, lembrando a Mark que aquele Operário sabia muito bem onde eles viviam. Mark concordou com ela e sugeriu que fossem à polícia. Dizer o quê, exatamente, contrapôs Karen, pois na verdade não havia factos, nem provas, nem nenhuma razão de queixa além das sensações de Mark, que até à própria mulher pareciam exageradas. Mark concordou de novo e então pediu que se mudassem para um hotel no dia seguinte, enquanto procuravam um sítio onde esperassem pelo fim das obras.
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Karen argumentou calmamente que a obra no exterior ficaria pronta no Dia de Ação de Graças e que já estavam no Halloween e que a ideia de se mudarem nesta fase do jogo parecia um disparate, já que teriam os mesmos inconvenientes que tinham tido havia dois meses. Levou a sério as preocupações dele, mas também sabia que a tensão do apartamento, a procura de emprego e o distanciamento entre ambos o estavam a assustar de uma forma irracional. Admitiu que aqueles problemas também a perturbavam, para não falar no facto de a filha a ignorar, e achava francamente que os operários eram inofensivos e educados e nem sequer sabia de qual falava Mark até este lhe dizer que era branco.
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Mark praguejou, dizendo que tudo aquilo era um disparate, que as obras haviam de durar até à primavera e que tinham ficado no apartamento por causa do bem-estar de Heather, não para tornar a vida fácil de Karen ainda mais fácil, e que ela deixava aquela maldita janela da cozinha aberta para qualquer pessoa apanhar uma pneumonia, e que se estava ali tanto calor talvez o melhor fosse ela mexer o rabo, sair e ir fazer qualquer coisa.
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Karen ficou exaltada. E que mais queria ele, ela não ia agora pôr-se a defender as suas opções de vida perante o próprio marido, nem precisava de lhe dizer tudo o que fez por amor à família, ou que ficaria bem se ele quisesse pôr-se a milhas e ver Heather aos fins de semana, ou que não saía de casa desse por onde desse e que precisamente naquela semana ia começar a auscultar a área da edição, e como é que ele se atrevia a chamar-lhe egoísta quando ela tinha marcado uma consulta num cirurgião plástico para ficar mais jovem e mais sensual para ele?
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Mas, em vez de dizer tudo isto, Karen respirou fundo e disse uma coisa que andava a pensar havia muito tempo: que o interesse de Mark na filha era pouco saudável e muito desconfortável para ela. Tinha dado à acusação um ar de preocupação, mas, ao reparar no ar horrorizado de Mark, tentou arrepiar caminho, o que ainda piorou mais as coisas. Disse-lhe de caras que ela não sabia o que era ser pai e que também ela se preocupava que Heather atraísse os tipos esquisitos, aliás quaisquer tipos, mas que ele, Mark, era um anormal superprotetor da filha e patologicamente ciumento de qualquer homem que se aproximasse dela.
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Mark ficou enojado com a sugestão de Karen e gritou com a hipocrisia dela. Se havia alguém obcecado era ela. Ela é que não conseguia ver mais nada no mundo senão a filha. Pediu-lhe que se mudassem. Gritou-lhe que se não queria fazê-lo por ele, ao menos que o fizesse pela filha, porque Karen por ele nunca fazia nada; ele era sempre o último da lista e ela nem sequer uma chávena de café lhe fazia, a não ser que fosse para impressionar Heather.
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Mark sentiu-se bem por dizer aquilo, mas depois, quando a viu agarrar numa almofada e sair do quarto, desejou poder engolir as palavras. Sentado sozinho na cama desfeita, a raiva voltou-se contra si próprio porque sabia que a culpa daquele ataque medonho era toda dele por ter querido partilhar com ela o verdadeiro perigo. Percebia agora que aquilo era uma emergência e não um pretexto para extravasar a verdade da situação entre eles. As palavras terríveis de Karen provinham claramente da inveja que sentia da proximidade dele com Heather e da vontade de destruir essa relação, e agora o que ele tinha de fazer era ser maior e mais forte. Pediu desculpa a Karen, admitiu que estava a reagir de maneira exagerada e que não mudavam de casa.
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Karen enfiou-se na cama ao lado de Mark, falsamente contrita. Na sua opinião, nada tinha sido resolvido e não sentia remorsos por aquilo que pensava só porque o dissera em voz alta. Lançou-lhe uma olhadela de soslaio por cima do tablet, quando ele se mexeu no sono, sem conseguir acreditar que o homem divertido e adorável com quem se tinha casado se transformara naquele falhado paranoico que nem sequer se apercebia da existência dela. Apagou a luz e pensou no futuro e imaginou ter um amante, talvez um dos pais bem-parecidos que andasse à procura de um namorico, e adormeceu com a mão a repousar inerte sobre o sexo, a consolar-se da mesma forma que fazia quando era criança.
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Mark fingiu estar a dormir enquanto cogitava se devia alertar Heather ou, até mesmo, contar-lhe alguma coisa, mas o afeto entre eles era tão delicado que ele hesitava em perturbá-lo. Pensou que não seria rapto se pegasse nela e a levasse às ilhas Turcas e Caicos para passarem umas férias perfeitas, e talvez Karen percebesse a mensagem e se juntasse a eles. Estava tão arrependido de lhe ter contado! Devia tê-las surpreendido às duas com umas férias súbitas e pagado a alguém que lhes fizesse a mudança, mas agora era tarde de mais e Mark ficou a pensar para onde poderia levar Heather e como poderia atirar lá de cima qualquer coisa bem pesada, uma chave inglesa ou um tijolo, para esmagar a cabeça do Operário.
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No quarto às escuras, Heather lia no telemóvel, como fazia quase todas as noites, pois sabia que os pais ficariam crispados e tensos se pensassem que ela estava acordada. Naquela noite tinha-os ouvido discutir, mas havia anos que aprendera a não ligar, porque as discussões eram sempre acerca dela e nunca levavam a parte nenhuma. O Pai e a Mãe eram especialmente cegos no que tocava a sentimentos. O Pai negava mesmo que os tivesse e a Mãe achava que toda a gente sentia o mesmo que ela. Durante anos Heather não soube que a sua capacidade de ver os sentimentos das pessoas e, até, por vezes, de os sentir, era algo invulgar e, quando descobriu que a crueldade e a indelicadeza que adultos e amigos infligiam uns aos outros não era intencional ou, pelo menos, não era consciente, decidiu alhear-se, assombrada pela mágoa do comportamento humano típico.
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Heather sempre se sentira bonita, distinguia o que era justo e sabia que toda a gente tentava dar o seu melhor, mas ao ver como, em casa, os pais eram diferentes e incapazes de partilhar a felicidade um do outro, questionou-se sobre o que teria ela feito à vida deles. Costumava escutar as discussões dos pais, às vezes esgueirando-se para o quarto deles e escondendo-se aos pés da cama, e rezava para que eles se divorciassem, para que o amor que sentia por eles pudesse, por fim, ser dividido igualitariamente entre um e outro e para que ela pudesse sorrir ao mundo sem se preocupar que Mark ou Karen intercetassem esse sorriso.
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Quando Heather lia sobre o que se passava no mundo doía-lhe o coração, mas ela procurava sempre um ângulo novo em todas as coisas para poder construir um caso de debate que a poderia levar a participar no concurso da Universidade de Stanford em janeiro, o que implicaria uma viagem à Califórnia e a possibilidade de entrar nos concursos nacionais, isto se o Pai não vetasse aquele sonho. Ela adorava participar em debates, viajar, conhecer gente nova, mas optou por pensar em políticas públicas e direito, pois gradualmente tinha percebido que nenhum dos pais estava satisfeito com a respetiva carreira. Jurava a si mesma que tudo faria para evitar essa infelicidade, estudando afincadamente e tentando fazer amigos e não inimigos. Também gostava de ganhar, mas manifestava essa alegria com delicadeza e elegância, mostrando uma preocupação sincera com a verdade e a ética dos factos, apesar de, secretamente, celebrar essa vitória.
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Esta desonestidade preocupava-a, tal como a preocupava o interesse crescente que sentia por si própria. Já há muitos anos que deixara de se preocupar com a possibilidade de o Pai ter um ataque cardíaco quando fazia o seu jogging ou de a Mãe ficar destroçada de tristeza quando ela, Heather, ia para a escola. Mas porque havia de se preocupar com eles? Não mereciam ambos ser ignorados por terem, de forma tão cansativa, exigido dela tanto tempo e tanto afeto? Havia outros pais que se comportavam de forma semelhante, mas os de Heather eram os mais sufocantes e, embora isso exigisse um grande esforço, Heather nunca cometeu a deslealdade de revelar aos outros esse comportamento dos pais, pois sabia que seria uma traição catastrófica se o mundo descobrisse que a família Breakstone não era perfeita.
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O segredo mais difícil, aquele que o mundo nunca deveria ver, era a melancolia que vivia mesmo debaixo do seu sorriso. Heather sabia que tinha de se libertar dela ou substituí-la por gratidão, e fá-lo-ia de bom grado, se não se desse o caso de ser tão bom sentir-se triste. O momento do dia de que mais gostava era entre pousar o telemóvel na cómoda e adormecer a ouvir o ruído do trânsito e a pensar em cada buzinadela solitária, tão ocasional, e em todos os adultos e nos lugares para onde iriam e a razão por que teriam tanta pressa.
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Heather gostaria de escrever estes pensamentos todos, mas sabia que um diário era algo que ia muito além do grau de privacidade que a Mãe toleraria e, assim, guardava-os dentro dela ou, às vezes, murmurava-os sentada diante do espelho pendurado na porta do quarto. Entre os livros que a Mãe lhe dava e as inúmeras aulas na escola, se bem que um pouco embaraçada, ela sentia-se preparada para o ataque de hormonas que estava prestes a acontecer e tomava nota de tudo. Achava que o cabelo precisava de algumas madeixas, que tinha um dente torto e, apesar de ainda ser muito cedo para ter a certeza, parecia-lhe que não teria problemas de borbulhas, o que era uma bênção.
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Heather juntava-se às outras raparigas nas queixas sobre estar gorda ou ter as maminhas a alturas diferentes, mas estava cada vez mais consciente de que a sua figura alta, de pernas compridas, cintura estreita e peito quase de copa C era rara, se não ideal, e começava a sentir tudo o que isso significava quando via revistas, ou andava pela rua, ou apanhava alguma olhadela dos operários das obras sempre que ela entrava ou saía do prédio.
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Apercebia-se agora de que o grande desejo das amigas era serem vistas, e fazerem-se de atrevidas era a melhor maneira de provocarem os pais e conseguirem um certo tipo de atenção. Heather não sabia ao certo quanto interesse deste tipo conseguiria aguentar e só alinhava com as amigas para não ser tomada por bebé ou ser objeto de ainda mais inveja por acrescentar a pureza à sua lista de perfeições. E assim, tal como elas, começou a utilizar todos os momentos longe da vista dos pais, à ida ou à vinda da escola ou no Central Park ou, até, escondendo-se na cobertura do prédio, para falar alto ao telemóvel, fumar cigarros e mascar pastilha elástica, maquilhar-se e vestir roupa mais justa, incluindo alterações temporárias ao uniforme da escola (do tipo enrolar a saia na cintura para ficar mais curta na bainha), e roubar blusas justas nos perdidos e achados, de forma a acentuar o busto. Servia-se até das fantasias das amigas com os rapazes de cara de menina que cantavam as músicas que elas adoravam e os cenários em que eles as levavam para lugares escuros e as beijavam e, tal como elas, estava aberta à ideia de ser beijada apaixonadamente, mas assustava-a o que poderia vir a seguir e não se sentia preparada para qualquer outra coisa.
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Heather detestava não conseguir falar com a Mãe como antigamente e não percebia por que razão tudo se tinha tornado tão complicado, mas essa era a realidade e Heather ficava doente com a maneira falsamente displicente da Mãe quando tentava desajeitadamente suplicar alguma intimidade. Heather conseguia perceber a ânsia da Mãe em conhecer o mais pequeno pormenor sobre o despertar sexual da filha, de forma a poder chorar e partilhar e exercer controlo com uma condescendência embaraçosa.
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Heather recusava-se a abordar o assunto, apesar de saber que o facto de ela andar numa escola de meninas tranquilizava a Mãe porque isso significava que, dessas meninas, eram muito poucas as que já faziam sexo e que todos os rapazes que Heather conhecia eram tão tímidos quanto ela ou estavam mais interessados nas tais poucas meninas que já faziam sexo. Heather nunca falaria disto à Mãe porque isso só serviria para abrir a porta à conversa sobre o monólogo mais perturbador que se travava na cabeça de Heather e que era o mal-estar cada vez maior que sentia por aquilo que eles eram e pelo muito que tinham.
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O código postal deles ficava praticamente na posição número um da lista das zonas mais ricas do país e o Pai dela não fazia nada e a Mãe nada fazia e o apartamento deles não era gigantesco, mas estava desnecessariamente cheio de luxos e veludos, e eles gastavam de mais e deitavam fora coisas de mais e, pior ainda, não se ralavam nada com isso. Quantas ilhas tropicais podiam eles visitar continuando a ignorar a pobreza larvar que existia para lá da cerca do resort? Os pais dela não eram más pessoas, mas viviam na ilusão dos donos da verdade, achando que mereciam tudo o que tinham.
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Ela tinha tentado alertar cada um deles à vez para a injustiça das respetivas posições, mas nenhum reagiu nem ripostou e, individualmente, ambos se referiram a ela como sendo o bem mais precioso: a coisa que o dinheiro não podia comprar. Heather sabia o que os pais queriam dizer com isto, o amor que estavam a exprimir, mas sabia também que eles estavam envenenados com a doença da riqueza, que os transformara em meias-pessoas que tinham máquinas de café e caixas registadoras no lugar onde devia estar o coração.
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Heather sabia que também ela estava infetada por aquilo e lutava por dominar o seu desejo avassalador de comprar coisas e de gastar e de se recompensar por fazer coisas banais. E foi por isso que, na altura em que a maioria dos vizinhos deixou o prédio e chegaram os camiões, ela decidiu vencer o seu forte impulso para o conforto e para o luxo e aceitar todos os inconvenientes das obras como uma punição por aquela vida imerecida. Resistiu até a portar-se como uma menininha mimada e não se juntou às queixas quotidianas, embora cheias de razão, do Pai, coisa que para ela foi difícil, na medida em que era muito desagradável estar sempre a ser vigiada por aquele Operário à entrada do próprio prédio.
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De qualquer forma, era uma coisa embaraçosa de dizer ao Pai e sabia que a Mãe, como de costume, estaria a milhas de tudo porque uma vez, quando estavam à procura de um embrulho e o Porteiro tinha saído, Heather havia sugerido que perguntassem ao Operário que trabalhava na entrada e a Mãe não fazia ideia nenhuma de quem ela estava a falar. Heather esclareceu que se tratava do único branco e que, apesar de o seu cabelo prateado estar cortado tão rente que ele parecia careca, não o era, e que tinha a pele macia, a queixada firme e os olhos azul-claros de um jovem.
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Não podia dizer à Mãe que todos os dias se interrogava cada vez mais acerca dele, de onde viria e como seria, e como era possível que ele fosse o mais bem-parecido de todos e estivesse a trabalhar em turnos de dez horas nos últimos dois meses, a renovar o prédio onde moravam, sem que a Mãe tivesse sequer reparado nele? Talvez, pensou Heather, a Mãe tivesse reparado nele se ele olhasse para ela como olhava para Heather, sobretudo daquela vez (ou vezes) em que os olhos de ambos se tinham encontrado e ela se sentira como se estivesse nua no meio da rua.
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Teria certamente incomodado a Mãe, tal como, no princípio, tinha incomodado Heather. Tinha-a incomodado e, depois, insultado, fazendo-a pensar em tudo aquilo a que os homens se achavam com direito, sendo que nada os autorizava a olhar para as mulheres e a perturbá-las daquele modo. Mas a verdade é que ele só olhava para ela e nunca tinha olhado para a Mãe e, com o tempo, Heather soube que, de certo modo, ele a via inteira, na totalidade.
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Tanto quanto Heather sabia, ele estava ali fora todos os dias e ela não podia contar à Mãe que, nos dias em que ele não estava, se interrogava se ele se teria esquecido dela. Não conseguia explicar por que razão isto já não a incomodava absolutamente nada e porque é que quase todas as noites pensava na pequena interação que tinham tido e imaginava-o (ou à ideia que tinha dele) e compreendia que o seu olhar posto nela, e mais ainda a tentativa de não olhar para ela, lhe dava uma dorzinha morna no estômago que depois descia por ela abaixo.
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Ela queria falar com ele. Queria dizer-lhe que ela não era como a Mãe, que ela via toda a gente e que sabia que ele era horrivelmente forçado a comportar-se como um servo. Ela não o trataria com a condescendência da herdeira mimada que frequentava uma escola privada e que vivia ali sem que nada lhe faltasse. Ela não podia fazer mais do que imaginar as privações e as circunstâncias que levavam uma pessoa a uma vida daquelas e perguntava a si própria se ele seria inteligente, qual seria o som da voz dele e se alguma vez ela conseguiria fazer alguma coisa pelos pobres deste mundo. Nunca poderia dizer à mãe que um dia ela, Heather, seria absolutamente ela porque agiria com o coração e daria tudo, incluindo a si própria se fosse necessário, para que alguém pudesse beneficiar de tudo aquilo que a família tinha acumulado sem esforço durante anos. O que ela queria realmente dizer ao Operário é que ela o via.
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«A minha Mãe já está em casa?»
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Bobby ouviu a voz, soube quem era e não pôde acreditar que estivesse tão próxima. Levantou os olhos, incapaz de responder e viu o vento a atirar-lhe uma madeixa de cabelo para a boca e observou-a a afastá-la dos lábios cheios com um dedo dobrado na perfeição. Por fim, conseguiu articular, «Ainda não», e provavelmente ficou a olhar durante demasiado tempo antes de se lembrar que devia sorrir-lhe, e ela devolveu-lhe o sorriso, entrando no prédio passado uns instantes com a saia a balançar-lhe de encontro ao rabo espetado.
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Nessa noite Bobby reviveu cada um dos segundos do encontro. Tinha tido tantas partes e ambos se tinham comportado melhor ainda do que o que ele esperava, porque não só ela lhe tinha falado, como o tinha incluído como cúmplice num plano para fazer algum disparate enquanto a Mãe estava fora. Bobby tentou não levar as coisas mais longe, mas a sua imaginação transportou-o para o quarto dela, para onde ela o tinha convidado, e viu-se a penetrá-la e a sentir que, por dentro, ela era como o quimono da Mãe dele.
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Na semana anterior tinha sido o Halloween e Bobby sabia que não podia usar uma máscara, mas gostava quando os adultos se mascaravam e escondiam as suas caras parvas e, sobretudo, gostou de ver Heather vestida de gatinho, com uma bolinha preta na ponta do nariz como se o tivesse encostado a uma porta suja. Ele tinha-se endireitado quando ela vinha em direção a ele porque lhe doíam as costas à conta do muito que se esforçava no trabalho para não perder o emprego. Apesar disso, o seu corpo ficou calmo e os músculos descontraíram-se naturalmente quando a viu. Era possível, pensou, que se estivessem a habituar um ao outro. Decidiu naquele dia, quando ela passou por ele toda de preto, que só havia um verdadeiro teste e que era ela falar-lhe e provar-lhe o seu valor, fugindo ao mundo dela e pedindo-lhe para entrar no dele.
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E agora que ela lhe tinha falado, a sua felicidade, surpresa e tesão eram maiores do que nunca. Tinha tido esperança de que ela o desejasse ou, no caso contrário, forçá-la-ia, mas, quando ela falou, ele viu que ela se controlava a si mesma e que ele não tinha poder sobre ela. Heather era obviamente diferente, ainda mais do que antes ele conseguira perceber. Seria então possível que possuí-la fosse menos do que aquilo que ele queria? A morte dela às suas mãos seria uma coisa fabulosa e Bobby tinha pensado que esse seria o destino de ambos, mas de repente viu as coisas como elas eram: temporárias. Tudo o que tinha imaginado se alterou e, agora, queria que ela viesse ter com ele por si mesma e mal podia esperar pela manhã seguinte para ver a atitude dela e, então, o que aconteceria se ela realmente desaparecesse?