MISSÃO PERIGOSA

Rivail trabalhava duro para se recuperar de uma série de baques financeiros, iniciada muitos anos antes. Em 1834, teve de vender sua parte no colégio que fundara, o Instituto de Ensino Rivail, por causa de uma dívida acumulada por seu tio, sócio capitalista, viciado em jogos. Recebeu 45 mil francos pelo negócio e decidiu confiar toda a soma — pequena fortuna na época — a um amigo investidor. Meses depois, este amigo faliu e perdeu tudo, inclusive o dinheiro de Rivail.

Para pagar as contas, o professor passou a cuidar, durante o dia, da contabilidade de três empresas (entre elas, o teatro Les Folies Marigny) — que lhe rendiam cerca de 7 mil francos por ano — e a escrever, durante a noite, gramáticas e aritméticas, enquanto preparava cursos, corrigia provas... e também se arriscava no terreno teatral.

Poucos alunos ou colegas de ensino do compenetrado professor Rivail sabiam, mas uma versão abreviada de suas iniciais — H. Rivail — estampara, em 1843, os cartazes de uma peça intitulada Une passion de salon (Uma paixão de salão), comédia romântica de um ato, com treze cenas ligeiras, escrita a quatro mãos com o jovem dramaturgo Léonard Gallois.

O “salão” citado no título da obra era o Louvre. Nas galerias do museu, o protagonista da peça — o jovem e um tanto insolente Félicien — fora arrebatado por uma paixão fulminante. O alvo de tanto furor: uma jovem retratada numa das telas em exposição. Para se aproximar de sua paixão, contratou os préstimos do renomado pintor responsável pela obra-prima, sem saber que o alvo de sua cobiça era irmã do artista ambicioso. Tudo muito divertido e romântico, mas nada lucrativo.

A situação financeira do casal de educadores só piorou quando Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão I, venceu as eleições presidenciais em 1848, com o apoio decisivo do partido clerical. Logo após a vitória abençoada pelo Vaticano, um novo projeto de lei sobre o ensino entrou em votação, sob a supervisão do ministro da Instrução Pública e dos Cultos, o conde de Falloux, aliado do papa e defensor intransigente do poder da Igreja Católica em matéria de disciplina, fé e educação.

Após a aprovação da nova lei, as escolas católicas passaram a receber todo o apoio do clero e do novo presidente — logo autoproclamado imperador Napoleão III, com as bênçãos dos bispos e cardeais. Com recursos financeiros quase ilimitados, 257 escolas secundárias católicas foram fundadas de 1850 a 1852, enquanto as laicas fechavam as portas.

Nas instituições de ensino do Segundo Império, o mestre tornou-se, cada vez mais, um subordinado do sacerdote. Párocos passaram a fiscalizar as escolas, e professores foram forçados a recitar o catecismo e a zelar pela moral cristã em sala de aula, independentemente da fé — ou da falta de fé — de seus alunos.

Quem se recusasse a seguir as novas regras — e a prestar juramento de fidelidade ao novo imperador — era demitido. Mais de oitocentos mestres foram afastados de suas funções logo após o golpe de Estado. Ao discípulo de Pestalozzi só restou abandonar o magistério depois de trinta anos de ensino.

Durante todo o tempo, Amélie esteve ao lado do marido e, com o suporte do pai, tabelião e próspero proprietário de terras, ajudou Rivail a complementar a renda mensal obtida com a venda dos livros pedagógicos — cada vez mais escassa no novo regime — e com os bicos como contador.

O apoio material prometido pelo guia espiritual seria, portanto, muito bem-vindo.

Pouco antes da providencial aparição de seu protetor, o professor cogitara abandonar o terreno espinhoso das investigações do além. Só não foi em frente porque reencontrou o velho amigo Carlotti e recebeu de suas mãos nada menos do que cinquenta cadernos repletos de mensagens.

O calhamaço de textos escritos a lápis veio da casa do sr. Roustan, na rua Tiquetonne, número 14, pelas mãos de outra sonâmbula — ou melhor, médium: Ruth Japhet, então com 19 anos.

Difícil recusar uma oferta daquelas em pleno processo de pesquisa. Rivail aceitou o presente e a responsabilidade delegada por Carlotti: avaliar, condensar e organizar o material reunido ao longo de cinco anos de sessões conduzidas pelo linguista e um grupo de colaboradores ilustres — o professor e lexicógrafo Antoine Léandre Sardou, o futuro membro da Academia Francesa Saint-René Taillandier, o livreiro Pierre-Paul Didier e o filósofo Tiedeman-Marthèse, primo-irmão da rainha da Holanda.

Muitas das mensagens reunidas nos cadernos traziam respostas a questões já tratadas por Rivail nos encontros com as irmãs Baudin, e ajudaram o professor a confirmar ou corrigir determinadas informações. Com fôlego renovado e com o apoio dos amigos, ele passou a frequentar também as sessões da rua Tiquetonne.

A revisão final dos textos do além foi conduzida ali em diálogos com o invisível intermediados por Ruth Japhet, lápis à mão ou à cesta, veloz e certeiro.

Numa dessas sessões, em 30 de abril de 1856, Rivail levou um susto. A cesta se voltou em sua direção — como se apontasse o dedo para ele — e o lápis colocou no papel uma mensagem enigmática: “Quanto a ti, Rivail, a tua missão aí está: és o obreiro que reconstrói o que foi demolido.”

No dia 12 de junho de 1856, o Espírito da Verdade voltou a se manifestar, agora pela escrita de outra médium, Aline C., e Rivail aproveitou para pedir detalhes sobre a missão ainda nebulosa. Desta vez, tudo ficou mais claro... e mais assustador. Caberia a ele organizar e divulgar uma nova doutrina, capaz de revolucionar o pensamento científico, filosófico e religioso. Tanta responsabilidade — e tanta honra — preocuparam ainda mais o professor.

— Dize-me, peço-te, é uma prova para o meu amor-próprio?

Ele queria, sim, contribuir para a “propagação da verdade” — disse —, mas havia uma distância grande, e talvez perigosa, entre o papel de simples trabalhador e o de “missionário em chefe”. O Espírito da Verdade confirmou a missão e recomendou discrição máxima a seu protegido:

— Nunca fales da tua missão: seria a maneira de a fazeres malograr-se. Ela somente pode justificar-se pela obra realizada e tu ainda nada fizeste. Se a cumprires, os homens saberão reconhecê-lo, cedo ou tarde, visto que pelos frutos é que se verifica a qualidade da árvore.

Ainda havia muito, ou melhor, tudo a fazer, e os riscos de fracasso eram grandes.

— Não esqueças que podes triunfar, como podes falir. Neste último caso, outro te substituirá, porquanto os desígnios de Deus não assentam na cabeça de um homem.

Rivail questionou:

— Que razões me fariam fracassar? Seria a insuficiência das minhas aptidões?

Ele guardaria — e releria — a longa resposta até o fim da vida:

— A missão dos reformadores é repleta de obstáculos e perigos. Previno-te de que a tua é rude, pois se trata de abalar e transformar o mundo inteiro. Não suponhas que te baste publicar um livro, dois livros, dez livros, para em seguida ficares tranquilamente em casa.

Seria preciso sair do gabinete e ir ao campo de batalha:

— É necessário que te mostres no conflito. Ódios terríveis serão açulados contra ti, implacáveis inimigos tramarão tua perda; ver-te-ás a braços com a malevolência, com a calúnia, com a traição mesma dos que te parecerão os mais dedicados; as tuas melhores instruções serão desprezadas e falseadas; por mais de uma vez sucumbirás sob o peso da fadiga.

A julgar pelas previsões do protetor espiritual, a vida do professor seria marcada por uma sucessão de sacrifícios: do repouso, da tranquilidade, da saúde e da própria vida.

Para lidar com tantos perigos e sacrifícios, o Espírito da Verdade recomendou ao discípulo uma série de cuidados e qualidades: humildade, modéstia, desinteresse, coragem, perseverança, devotamento, abnegação, firmeza inabalável, prudência e tato, para não comprometer o sucesso com atos ou palavras intempestivas.

Mas nem tudo estava perdido. Rivail tinha direito, sim, de recusar esta missão nada tentadora.

— Tens o teu livre-arbítrio. Cabe a ti usá-lo como entendes. Nenhum homem está constrangido a fazer fatalmente uma coisa.

Rivail leu as “cláusulas” do contrato e assinou embaixo. Ou melhor, disse em alto e bom som, diante das testemunhas presentes:

— Aceito tudo sem restrição.

Dez anos e meio depois, ao reler esta mensagem, Rivail confirmaria, ponto a ponto, cada alerta do guia. Sua vida estava prestes a mudar radicalmente com a publicação de O livro dos espíritos.