TRAIÇÕES
Até lá seriam anos de provações, bem de acordo com o roteiro traçado pelo Espírito da Verdade. Ao lançar O livro dos espíritos e assumir a identidade de Allan Kardec, Rivail se preparou para contra-ataques da ciência, da imprensa e da Igreja.
Já no texto de introdução da obra, antecipou-se às críticas para desafiar os antagonistas. Não por acaso intitulou seu petardo como “Refutação de várias objeções” — título a ser eliminado na segunda edição do livro.
Queiram os detratores lançar o olhar justo sobre os adeptos da crença espírita e hão de ver se entre eles só se acham ignorantes, e se o número imenso de homens de mérito e respeito que a abraçaram lhes permitirá legá-la ao rol das crendices de gente à toa. Deles, pelo caráter e pelo saber, vale talvez bem a pena dizer-se: uma vez que tais homens afirmam, é preciso que haja ao menos alguma coisa.
Contra os cientistas que renegavam os fenômenos espíritas, Kardec lançou duas acusações: preconceito contra “coisas desconhecidas” e apego estreito à própria especialidade, sem considerar novas causas e novos efeitos:
O homem que tem uma especialidade nela incrusta todas as suas ideias. (...) Por isso consultarei de bom grado e com toda confiança um químico sobre uma análise química, um físico acerca de energia elétrica e um mecânico sobre a força motora; mas os doutos me queiram permitir (...) que eu dê tanta atenção à opinião negativa deles sobre o espiritismo quanto dou ao julgamento de um arquiteto sobre uma questão da música.
As primeiras reações indesejáveis vieram logo após a publicação do livro, e de onde o professor menos esperava: dos próprios colaboradores. Ao lançar sua obra — ou, melhor, a obra dos espíritos superiores —, Rivail não dera qualquer crédito às irmãs Caroline e Julie Baudin, a Ruth Japhet e a outros médiuns também consultados.
Ruth Japhet não se conformou. Pelas suas contas, três quartos do livro se deviam à sua mediunidade e a seus manuscritos, e a omissão a seu nome era, portanto, inadmissível. Em desabafo ao escritor russo Alexandre Aksakof, Ruth se queixaria de não ter ganho sequer um exemplar do livro e de não ter recebido seus manuscritos de volta quando os pediu ao professor.
Aksakof faria estas revelações em artigo publicado no jornal The Spiritualist Newspaper, em 1875. Rivail — morto seis anos antes — não pôde se defender, nem através de mensagens mediúnicas.
Dezoito anos depois da publicação de O livro dos espíritos, Ruth ainda estava inconformada com a falta de crédito e de consideração, mas em nenhum momento de sua entrevista renegou a comunicação com os espíritos nem a autenticidade das mensagens atribuídas ao além.
Aos amigos e colaboradores mais próximos, Rivail dera a seguinte explicação para a omissão dos nomes das médiuns no livro: queria preservar a identidade delas para poupá-las de exposição desnecessária. Além disso, a autoria da obra deveria ser atribuída aos espíritos e não aos intermediários — até mesmo para evitar riscos, como a vaidade e o orgulho, daninhos a quem se propusesse a servir de canal desinteressado com o além.
A julgar por uma das mensagens dos espíritos a Allan Kardec, impressa na primeira edição do livro — e também suprimida da segunda —, a relação do professor com o invisível ia bem além das intermediações de Ruth e assumia contornos um tanto invasivos:
— Estaremos contigo todas as vezes que o pedires e tu estarás também às nossas ordens sempre que te convocarmos.
Em anotações pessoais — reveladas após sua morte, em Obras póstumas —, Rivail daria novos detalhes sobre esta parceria com o outro mundo:
Mais de dez médiuns prestaram concurso a esse trabalho. Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas e muitas vezes retocadas no silêncio da meditação, foi que elaborei a primeira edição de O livro dos espíritos.
Ao ser ignorada, desprezada ou simplesmente preservada por Rivail, Ruth Japhet talvez tenha se livrado dos riscos enfrentados por suas colegas americanas mais famosas: as irmãs Fox, consideradas por muitos as “precursoras do espiritualismo moderno”. A celebridade custou caro para elas.