MINHA RISONHA ERMANCE
Em 21 de abril de 1857, três dias depois do lançamento de O livro dos espíritos, Rivail e Amélie abriram seu apartamento para uma recepção. A sra. De Plainemaison pediu licença para levar os Dufaux ao jantar. Rico produtor de vinho e trigo — morador de um castelo medieval vizinho ao do imperador Napoleão III —, o sr. Dufaux era conhecido pela ligação com a corte e também pelas proezas de sua bela filha, Ermance, então com 16 anos.
Rivail ouvira falar de Ermance — a “médium historiadora” — e das agruras enfrentadas por sua família, muito católica. Desde os 12 anos, ela era acometida por crises de ausência e, em transe, transmitia mensagens atribuídas a mortos. Preocupado, o pai, ainda em 1853, recorreu a um amigo médico, Clever de Maldigny, estudioso dos “fluidos invisíveis”, e ouviu dele um diagnóstico alarmante. A doença se chamava mediunidade.
Era uma epidemia recente, vinda da América. Uma moléstia mental, altamente contagiosa, que fazia vítimas na Alemanha, na Inglaterra e, agora, na França. O mal atacava, principalmente, as moças sensitivas, mais sujeitas à “ação magnética”. Teria cura?
*
Quinze dias depois, Ermance sofreu mais uma crise nervosa e o pai a levou ao amigo médico, em Versalhes, sem revelar à filha a tal doença misteriosa. Após breve conversa, o doutor Maldigny pôs um lápis entre os dedos da paciente e a enfermeira Rosette pousou as mãos sobre a mão da menina, enquanto balbuciava uma oração encerrada de maneira inusitada:
— Em nome de Deus, venha a nós um espírito bom.
O sr. Dufaux teve de se controlar para não rir da situação insólita. Em seguida, Maldigny, como se estivesse à frente de uma sessão de hipnose, e não de uma consulta médica, instruiria:
— Escreva o que lhe vier à cabeça ou lhe for impulsionado. Nada tema. Escreva o que lhe vier à cabeça, ou ao pulso.
Ermance não conseguiu conter uma risada nervosa enquanto equilibrava o lápis no papel, mas engoliu o riso quando viu o objeto se mover à sua revelia, até escrever:
— Minha risonha Ermance.
Assustada, a menina largou o lápis e se recusou a continuar com a experiência. O médico não tinha dúvidas. Diagnóstico confirmado: mediunidade.
Uma semana depois, o sr. Dufaux recebeu a visita do marquês de Mirville, a quem revelou os sintomas da filha e o diagnóstico do médico. Estudioso do magnetismo e da ação maligna do demônio nos supostos fenômenos mediúnicos, o marquês entregou um lápis à jovem e pediu para ela se submeter a um novo teste.
Ermance relutou. Desde a consulta médica, vivia assustada. Tinha medo de segurar o lápis até mesmo para fazer as lições de casa, e só o fazia com alguém por perto. A insistência do visitante ilustre, porém, a convenceu. Católico fervoroso, o marquês tinha uma hipótese sobre a identidade de quem se comunicaria, caso se comunicasse.
Assim que a menina equilibrou o lápis sobre o papel, ele perguntou:
— Está presente o espírito em que penso? Em caso afirmativo, queira escrever seu nome por intermédio de Ermance.
Após segundos de tensão, a mão da menina se moveu.
— Não, mas um dos teus remotos parentes.
— Pode escrever seu nome?
O comunicante desconversou.
— Prefiro, para teu bem, que meu nome venha diretamente à sua cabeça. Pense um instante.
O marquês apostou alto, para provocar:
— São Luís, rei da França, primo do primeiro nobre de minha família?
Pelas mãos da adolescente, a confirmação:
— Sim, eu mesmo.
Com o perdão de sua majestade — o rei Luís IX, morto seis séculos antes e canonizado pelo papa em 1297 —, era preciso ainda uma evidência.
— Vossa Majestade pode dar-me uma prova de que é realmente nosso grande rei?
E o lápis sustentado por Ermance escreveu:
— Ninguém nesta casa sabe que tu e os teus considerais, em preces, que sou o anjo da guarda de tua família, não é fato?
Certo de estar lidando com o dissimulado satã, o marquês tentou ser tão cínico quanto ele:
— Impressionante. Exato.
Também desconfiado — e também católico —, o pai de Ermance pediu nova evidência:
— Pode Vossa Majestade, santo como é, ditar-me algo de edificante em moral, compatível com a glória religiosa de São Luís?
— Tentarei com prazer.
A menina de 12 anos não se intimidou diante do pai e pôs no papel, com velocidade e tranquilidade impressionantes, uma longa e rebuscada mensagem:
Sê tu, amigo, como um rio benfazejo que derrama por onde passa a fertilidade e a frescura, perdoa a teus inimigos como o Salvador que, quase ao expirar, orou por seus carrascos, dando assim aos homens seu derradeiro exemplo de bondade (...).
Ama teus inferiores na hierarquia social. Não imites os homens tiranos de seus irmãos, nem os que, por seu exemplo, transviam as almas humildes e obscuras que lhe cumpre guiar e proteger neste vale de provações para todos. (...)
O texto fazia também referências ao “anjo rebelado” e aos “abismos eternos”, bem de acordo com os dogmas católicos, antes de encerrar em clima fraternal: “Paz a ti e a teus! Particularmente a Ermance. Luís.”
Depois de ler e reler a mensagem, o marquês dividiu suas impressões com o preocupado anfitrião. Duas hipóteses: os dogmas católicos professados por ele e pelo sr. Dufaux teriam sido transmitidos, em processo telepático, à jovem sugestionada, em estado sonambúlico; a inata inteligência de Ermance e sua educação cristã teriam gerado o texto (com ou sem consciência da autora).
Mas essas eram as explicações educadas. O marquês de Mirville continuava convicto de que tudo não passava de obra de satã.
*
Uma obra que cresceria, capítulo por capítulo, pelas mãos miúdas de Ermance, até gerar o livro intitulado Vida de Luís IX, escrita por ele mesmo. Uma autobiografia póstuma repleta de informações sobre os bastidores do poder real no século XIII, conhecido como o “século de ouro de São Luís”.
Ao ler os capítulos escritos a jato pela filha, o pai venceria as desconfianças iniciais. Pela linguagem refinada e pelos detalhes históricos, aquele só podia ser mesmo o admirável rei santificado. A convicção do sr. Dufaux foi tanta que decidiu publicar o livro em 1854. Uma decisão que abalou as suas até então cordiais relações com a corte.
A Comissão de Imprensa identificou críticas veladas ao imperador Napoleão III em determinados trechos da obra e considerou o livro, atribuído a um santo morto, uma afronta à Santa Sé. O texto teve a circulação proibida e Ermance foi convocada a confessar seus pecados e a atribuir os escritos a satanás.
Ao se recusar a renegar a fé nos espíritos, a menina passou a ser vista como uma herege pela própria imperatriz e teve cassados os direitos a sacramentos básicos como a confissão e a comunhão.
Tanta censura e perseguição preocupavam Kardec. O livro dos espíritos corria riscos em Império tão católico. Mas ele ficou mais tranquilo ao ouvir do sr. Dufaux, durante o jantar, novas revelações sobre o caso. Parte da corte se afastara, sim, de sua família, mas, para surpresa do próprio Dufaux, Napoleão III demonstrara mais compreensão... e curiosidade.
O imperador fez questão de abrir as portas de seu castelo à senhorita Dufaux. Recepcionada no Palácio de Fontainebleau, a menina, lápis à mão, enfrentou um novo desafio diante de sua majestade e de uma comissão de nobres: responder a uma pergunta mental feita pelo anfitrião.
Segundo o pai orgulhoso, a resposta — assinada por Napoleão Bonaparte, tio de Napoleão III, e mantida em sigilo — convenceu o imperador, pelo estilo e pela profundidade, e também pelo fato de que ninguém na sala sabia a pergunta.
Nove meses depois, Ermance publicaria seu segundo livro: A história de Joana D’Arc, ditada por ela mesma.
O livro começava com uma mensagem da santa acusada de feitiçaria e queimada viva, aos 19 anos, nas fogueiras da Inquisição no século XV. Era um alerta a médiuns como Ermance, que atraíam cada vez mais admiradores:
Deus encarregou-me de cumprir uma missão junto aos crentes que favoreceu com o mediunato. Quanto mais recebem graças do Altíssimo, mais correm perigos, e esses perigos são bem maiores porque têm origem nos próprios favores que Deus lhes concede.
As faculdades das quais desfrutam os médiuns lhes atraem os elogios dos homens; as felicitações, as adulações; eis a pedra de tropeço.
Esses mesmos médiuns que deveriam sempre ter presente na memória sua incapacidade primitiva a esquecem; eles fazem mais: o que devem a Deus atribuem a seu próprio mérito. O que acontece então? Os bons espíritos os abandonam...
O obra, desta vez, foi liberada sem cortes pelo imperador.
Quatro anos depois, em 1861, a exemplo do que ocorrera a Joana D’Arc, exemplares do livro queimariam numa fogueira alimentada pela Igreja Católica, junto com volumes de O livro dos espíritos e de outras “obras heréticas”, no episódio conhecido como auto de fé de Barcelona.
Kardec sabia: precisava caminhar com cuidado nesse território onde espíritos eram esconjurados como demônios por líderes da Santa Sé. A presença de Ermance e o apoio de seu pai, tão bem-relacionado, dariam mais segurança ao velho professor, convocado ao combate pelo Espírito da Verdade.
Três dias depois daquele jantar com os Dufaux, Kardec foi apresentado a Ermance e testemunhou, ao vivo, o que já tinha lido e ouvido antes. A beleza da jovem o impressionou tanto quanto a velocidade de suas mãos enquanto botava no papel uma mensagem assinada por “Luís” e endereçada ao “distinto Allan Kardec”. Um texto curto com duas recomendações sucintas: “coragem e cautela na nova missão”.
Kardec ainda não sabia, mas ele e “Luís” estariam lado a lado em um novo projeto.