CARTA AO PRÍNCIPE

No fim do ano, Allan Kardec recebeu uma longa carta, repleta de interrogações, assinada por um leitor ilustre: um príncipe. As questões eram tão relevantes — e a origem do documento, tão nobre — que Kardec decidiu publicar a correspondência na primeira edição da Revista Espírita em 1859.

Tomou apenas o cuidado de preservar a identidade do remetente, identificado por ele como Príncipe G., para evitar polêmica desnecessária, e perigosa. Na carta, o príncipe católico endereçava uma série de perguntas sobre o mundo invisível ao autor de O livro dos espíritos:

Os espíritos podem guiar-nos mediante conselhos diretos nas coisas da vida? Os espíritos podem revelar o futuro? Qual poderá ser a utilidade da propagação das ideias espíritas?

Kardec dedicou tempo e atenção especiais a esta terceira questão. Era preciso ser hábil e convincente para provar ao príncipe que a nova doutrina não representava qualquer ameaça à fé cristã — muito pelo contrário.

No poder desde 1846, o papa Pio IX estava prestes a iniciar uma campanha contra o que definia de “falso liberalismo”. A lista de ideologias condenadas incluía o panteísmo, o racionalismo, a maçonaria, o judaísmo e outras crenças “dadas como cristãs a tentar explicar a Bíblia”.

Kardec mediu cada palavra em suas respostas:

Se considerarmos a moral ensinada pelos espíritos superiores, veremos que é toda ela evangélica; basta dizer que prega a caridade cristã em toda a sua sublimidade (...).

Ao reconduzir os homens aos sentimentos de seus deveres recíprocos, o espiritismo neutraliza o efeito das doutrinas subversivas da ordem social.

Na longa carta de Kardec, eram muitos os argumentos dedicados a demonstrar o quanto o espiritismo seria um aliado poderoso no combate à “chaga do materialismo”, cada vez mais em alta desde a Revolução Francesa. Ao comprovar a existência da alma e sua imortalidade — e atestar que todo homem é recompensado ou punido de acordo com os próprios atos, pelo bem ou pelo mal —, a nova doutrina ajudaria a formar uma sociedade mais justa e consequente.

Pela lógica da “causa e efeito”, e por seus princípios científicos, o espiritismo estaria atraindo, segundo ele, cada vez mais materialistas para suas fileiras:

(...) dá religião aos que não a possuem; fortifica-a nos que a têm vacilante, consola pela certeza do futuro, faz suportar com paciência e resignação as tribulações desta vida e desvia o pensamento do suicídio.

É por isso que os que penetraram em seus mistérios se sentem felizes.

Para estes o espiritismo é a luz que dissipa as trevas e as angústias da dúvida.

Kardec não contou ao príncipe, mas também recebia cartas de quem se apavorava com a possibilidade de estar condenado à vida eterna e submetido a um ciclo sem fim de castigos e recompensas morais. Estas mensagens — que cobravam o direito à morte ou ao “descanso eterno” — o surpreendiam, mas o melhor era poupar sua alteza de preocupações tão plebeias.

Outra carta que entusiasmou o velho professor foi enviada pelo dr. Morhéry, cientista dedicado, há mais de vinte anos, a um estudo sobre a “natureza fluídica e biodinâmica” dos germes. Ao ler os artigos da Revista Espírita, o médico passou a enxergar ligações entre o mundo invisível das bactérias e o dos espíritos.

Ele tinha participado de sessões de mesas girantes e saiu dos encontros convencido da realidade das manifestações espirituais e da importância daqueles fenômenos: “Compreendi que chegara o momento em que o mundo invisível ia tornar-se visível e tangível.”

Em sua carta, o médico previa que, em breve, o homem daria razão ao cientista Gay-Lussac, formulador da lei da dilatação dos gases, para quem expressões como “corpos invisíveis ou imponderáveis” deveriam ser substituídas por definição mais precisa: “corpos imponderados”... ainda.

Kardec fez questão de divulgar a correspondência na Revista Espírita, em fevereiro de 1859 — com autorização de Morhéry, “doutor em medicina” —, e de acrescentar um agradecimento ao ilustre remetente: “Nele a convicção não é fé cega, mas raciocinada. É a dedução lógica do sábio que não pensa saber tudo.”

Mas faltava pouco para a Academia de Ciências da França emitir um parecer bem diferente sobre os médiuns e seus prodígios — fenômenos que atraíam cada vez mais curiosos e estudiosos à sede da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, agora de mudança para um novo endereço, mais amplo, à rua Montpensier, 12, no Palais-Royal.