MÚSCULOS QUE RANGEM

Em sessão conduzida pela jovem Ermance Dufaux, também em 1859, São Luís, o presidente espiritual da Sociedade, colocou no papel o seguinte alerta: “Evocai um rochedo e ele vos responderá.”

De acordo com as instruções do conselheiro invisível, era preciso ficar atento aos espíritos levianos, que se divertiam à custa da credulidade alheia e declaravam quaisquer identidades para enganar ou impressionar o público. E era preciso também ficar alerta em relação aos médiuns.

Em seus artigos e palestras, Kardec apregoava duas qualidades indispensáveis aos intermediários das mensagens do além: “desinteresse absoluto” — não só por ganhos materiais, mas também por notoriedade — e seriedade durante as sessões:

É justo desconfiar de todos quantos fizerem dos fenômenos um espetáculo, um objeto de curiosidade ou um divertimento, ou dos que tirem desses fenômenos qualquer proveito, por menor que seja, gabando-se de os produzir à vontade e a qualquer propósito.

Em artigo publicado na Revista Espírita, em abril de 1859, sob o título “Fraudes espíritas”, Kardec alertava o leitor para uma “pequena astúcia” capaz de produzir, por exemplo, sons inexplicáveis atribuídos a espíritos:

Basta colocar as mãos abertas sobre a mesa, suficientemente próximas para que as unhas dos polegares se apoiem fortemente uma na outra; então, por um movimento muscular absolutamente imperceptível, faz-se estalar as unhas com um ruído seco (...). Esse ruído repercute na madeira e produz uma ilusão completa.

Por este sistema, afirmava, seria possível produzir quantos golpes se quisesse, simular batidas de tambor, ditar respostas a perguntas pelo “sim” e pelo “não”, ou pela indicação das letras do alfabeto.

O texto mereceria, quatro décadas depois, a seguinte nota de rodapé da “equipe revisora” responsável pela publicação da Revista Espírita no Brasil:

Não é imperceptível o movimento muscular, nem o ruído é tão semelhante aos golpes internos. Kardec quis prevenir as pessoas inexperientes e demasiado crédulas.

Estava em jogo a credibilidade da comunicação com os espíritos através de movimentos de mesas e “espíritos batedores”. Fenômenos fundadores da doutrina, postos à prova — mais uma vez — por uma comissão de investigadores.

No dia 18 de abril de 1859, a Academia de Ciências de Paris anunciou a descoberta de outra possível causa das pancadas e ruídos misteriosos atribuídos a “espíritos batedores”: músculos rangedores.

A causa inteligente por trás das mesas falantes — e de fenômenos de comunicação como o das irmãs Fox — estaria dentro dos corpos dos supostos médiuns, e não fora deles, numa outra dimensão.

O objeto de estudo inicial dos cientistas, liderados pelo anatomista dr. Schiff, foi uma jovem de 14 anos, “forte e bem-constituída”, afetada por movimentos involuntários e regulares do músculo peroneal lateral direito e por batidas geradas por detrás do “maléolo externo direito” com regularidade e força, segundo artigo publicado na edição de abril do jornal L’Abeille Médicale:

Esse ruído era ouvido no leito, fora do leito e a uma distância bem considerável do lugar onde a moça repousava.

Notável por sua regularidade e pela nitidez dos estados, o ruído a acompanhava por toda parte.

Depois de virar e revirar a moça e auscultar cada um de seus estalos e ruídos secos — semelhantes a “marteladas” —, dr. Schiff sacramentou:

Sob a influência da contração muscular, podem os tendões deslocados — no momento em que entram nas goteiras ósseas — produzir batimentos que, para certas pessoas, anunciam a presença de “espíritos batedores”.

E o mais importante: esses sons poderiam ser produzidos por qualquer um que se dispusesse a deslocar tendões para maravilhar plateias.

Para comprovar a tese, o médico usara o próprio corpo como laboratório e, com a prática, conseguira produzir ruídos “voluntários, regulares e harmoniosos” por detrás do tal maléolo externo e na “corrediça dos tendões do perônio”.

Plateias de até cinquenta pessoas ouviram as “mensagens” transmitidas pelas articulações do médico, “com ou sem sapato, de pé ou deitado”.

O artigo detalhava estes testes e destacava também outros casos, como o de uma jovem internada no Hospital São Luís pelo pai, que se autodenominava “pai de um fenômeno” e já fazia planos de ganhar dinheiro com o dom da filha em apresentações públicas. A jovem, segundo o pai coruja, carregaria um pêndulo no ventre.

O prodígio, entretanto, foi desvendado após breves exames. Bastava a paciente fazer um ligeiro movimento de rotação na região lombar da coluna vertebral para produzir estalos fortes — audíveis a até 25 pés de distância. Ela controlava o ritmo e a potência dos sons com a contração dos músculos da base da coluna.

Diante de “evidências” como estas, os especialistas da Academia de Ciências avalizaram o parecer do dr. Schift e deram por encerradas as investigações sobre os bastidores ocultos das “comédias espíritas”: “Os charlatães relacionaram estes fenômenos singulares a causas sobrenaturais para explorar a credulidade pública.”

Kardec publicou o diagnóstico dos investigadores na Revista Espírita, em junho de 1859, e levantou as seguintes questões:

•  Por que anfitriões bem-nascidos e bem-criados reuniriam visitantes em suas casas em salões da Europa e dos Estados Unidos para fazer músculos estalarem durante duas ou três horas seguidas, sem nenhum lucro? Seria necessária uma forte dose de vontade de mistificar e divertir o público para submeter o próprio corpo a exercícios tão cansativos.

•  Os tendões martelariam as goteiras ósseas, mas teriam de ir muito mais longe. Os “músculos rangedores” bateriam também nas portas, nas paredes, nos tetos, em todo o canto e — dotados de um poder insuspeito — ergueriam mesas maciças, com mais de cinquenta quilos, sem as tocar, e as fariam andar por toda a sala, abrir, fechar e flutuar no espaço sem apoio.

•  O charlatão usaria seus músculos para imitar o som do martelo, responder “sim” ou “não”, ditar frases inteiras ao som de pancadas vinculadas ao alfabeto. Mas e quando os músculos respondem a questões sobre assuntos desconhecidos pelo farsante? E quando ditam sonetos e partituras musicais sem que os embusteiros tenham quaisquer dons para a poesia ou a música?

Em longo artigo, Kardec recorreu à ironia mais uma vez para protestar: “Na verdade, senhores médiuns, os senhores não suspeitavam de que houvesse tanto espírito em seus calcanhares!” E prosseguiu:

Segundo o célebre cirurgião, todo toc-toc, todo pan-pan que de boa-fé faz arrepiar aqueles que os escutam; esses ruídos singulares, esses golpes secos, vibrados sucessivamente e como que cadenciados, sinais certos da presença dos habitantes do outro mundo, são simplesmente o resultado de um movimento imprimido a um músculo, um nervo, um tendão!

Quase trinta anos depois dessa polêmica, a 21 de outubro de 1888, Maggie Fox confirmaria, em parte, as teses ósseo-musculares do dr. Schiff. Ao subir no palco da Academia de Música de Nova York para revelar a origem das batidas mais investigadas da história do espiritualismo moderno, diria diante de uma multidão de jornalistas:

— As batidas são simplesmente o resultado de um controle perfeito dos músculos da perna abaixo do joelho, que governam os tendões dos pés e permitem a ação das articulações e dos ossos do calcanhar, que normalmente não são conhecidos.

Confissão que, meses depois, no entanto, renegaria, atribuindo-a a pressões de “poderosos católicos”, suborno de um dono de jornal e desejo de se vingar da irmã mais velha, Leah, com quem media forças há anos.

Morto dezenove anos antes, Kardec não estaria mais a postos para defender a doutrina nem agradecer aos adversários, como fizera ao longo de discursos, debates e artigos como este, endereçado aos “antagonistas” na Revista Espírita em março de 1859:

Não há um só de seus artigos [escritos pelos adversários], mais ou menos espirituosos, que não tenha produzido a venda de alguns de nossos livros e que não nos tenha proporcionado alguns assinantes.

Obrigado, pois, pelo serviço que nos prestam involuntariamente.