O QUE É O ESPIRITISMO?
Mas, afinal, o que seria o espiritismo? Para responder esta pergunta e reagir também às críticas e suspeitas mais comuns contra a doutrina, Kardec lançou, em julho de 1859, uma espécie de cartilha intitulada O que é o espiritismo?
Doutrina, ciência, filosofia, religião? A resposta — assinada por Kardec e não delegada aos espíritos — viria logo na introdução:
O espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática, envolve as relações entre nós e os espíritos; como filosofia, compreende todas as consequências morais que emanam dessas relações.
Para quem achou longo, um resumo ainda mais conciso:
O espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal.
Já no primeiro capítulo, Kardec pôs no papel, em formato de perguntas e respostas, diálogos que costumava travar com curiosos que batiam à porta da Sociedade em busca de provas da presença de espíritos. Alguns desses visitantes se apresentavam como adversários da doutrina, prontos a se converter diante de fenômenos irrefutáveis:
Visitante — (...) se conseguísseis convencer-me, conhecido que sou como antagonista de vossas ideias, isto seria um milagre eminentemente favorável à causa que defendeis.
A.K. — Lamento-o, caro senhor, porém não tenho o dom de fazer milagres. Julgais que uma ou duas sessões bastariam para adquirirdes convicção? (...) Eu precisei de mais de um ano de trabalho para ficar convencido.
O diálogo terminava com um argumento que dividia opiniões e causava polêmica entre os próprios fundadores da Sociedade:
A.K. — (...) além disso, não realizo sessões públicas e parece-me que vos enganastes sobre o fim das nossas reuniões, visto não fazermos experiências com o objetivo de satisfazer a curiosidade de ninguém.
Desde o início, companheiros de Kardec defendiam a abertura das sessões como tática de difusão do espiritismo. Pressionado, ele chegou a pedir para se afastar da presidência da associação — pedido rejeitado pelos sócios.
A inclusão desse diálogo em O que é o espiritismo? servia também como uma mensagem aos possíveis dissidentes: a sociedade deveria ser encarada como um centro de estudos e não como palco de fenômenos para propaganda da doutrina. E não adiantava insistir.
O que é o espiritismo? funcionou como canal para uma série de recados, diretos e indiretos, dirigidos aos antagonistas da doutrina, de “dentro” e de “fora” dos círculos espíritas.
No texto de abertura, Kardec tomou o cuidado de rejeitar os créditos de fundador, criador ou inventor da filosofia espírita, e de atribuir aos colaboradores invisíveis o mérito pela nova ciência:
Diz-se a filosofia de Platão, de Descartes, de Leibniz; nunca se poderá dizer a doutrina de Allan Kardec (...). O espiritismo tem auxiliares de maior preponderância, ao lado dos quais somos simples átomos.
Uma série de duelos entre Kardec e os mais diversos personagens pontuava o livro.
Com a palavra, o Visitante Crítico:
VC — Não acrediteis que minha opinião se tenha formado levianamente. Vi mesas girarem e produzirem sons como de pancadas; vi pessoas escreverem o que, segundo diziam, lhes ditavam os espíritos; estou convencido, porém, de que nisso há charlatanismo.
A.K. — Quanto vos cobraram para mostrar-vos essas coisas?
VC — Nada.
A.K. — Ora, aí tendes charlatões de uma espécie singular. Até o presente não se tinha ainda visto charlatões desinteressados.
O Padre:
P — A religião ensina tudo isso (caridade, fraternidade, moral...); até agora foi suficiente. Qual é hoje a necessidade de uma nova doutrina?
A.K. — Se a religião ensina o bastante, por que há tantos incrédulos, religiosamente falando?
E também o Visitante Cético:
VC — O espiritismo tende, evidentemente, a fazer reviver as crenças fundadas no maravilhoso e no sobrenatural; ora, no século positivo em que vivemos, isto me parece difícil, porque é exigir que se acredite nas superstições e nos erros populares, já condenados pela razão.
A.K. — O sobrenatural desaparece à luz do facho da ciência, da filosofia e da razão (...). Sobrenatural é tudo o que está fora das leis da natureza. O positivismo nada admite que escape à ação dessas leis; mas, porventura, ele as conhece a todas? (...) O espiritismo amplia o domínio da ciência e é nisto que ele próprio se torna uma ciência.
Mas e as provas irrefutáveis? Entre várias evidências, Kardec citava, no novo livro, os prodígios de um médium vidente, testemunhados por ele e outros privilegiados:
Será por efeito sonambúlico que certo médium desenhou, um dia, em minha casa e na presença de vinte testemunhas, o retrato de uma jovem, morta havia dezoito meses e a quem ele não conhecera, retrato reconhecido pelo próprio pai da jovem, presente então à sessão?
No texto, Kardec preservou a identidade do jovem. O nome dele era Adrien.