OS ALUCINADOS

Com uma definição sucinta, o jornalista abria a reportagem “Uma sessão dos espíritas”, publicada em 2 de agosto de 1860:

São chamados espíritas certos alucinados que, apesar de terem rompido com todas as crenças religiosas de seu tempo e seu país, pretendem se relacionar com os espíritos.

Dias antes ele participara de uma reunião semanal promovida na oficina de um tecelão da cidade, entre quatro teares verticais.

Vinte e cinco pessoas acompanharam o desempenho da médium — ou “sibila”, como definiu o repórter —, mulher do anfitrião. Sentada à mesa, caderno aberto à sua frente, pena de ganso à mão — “e não uma pena metálica, pois os espíritos têm horror aos metais”, explicava o jornalista —, a médium colocou no papel respostas às mais diversas questões.

A primeira pergunta partiu de um jovem soldado intrigado com o fato de nunca ser convocado para as batalhas em marcha na Crimeia e na Itália. Oito dias antes de cada missão, era designado para outros postos. Por quê?

A “Inspirada” — era assim que o anfitrião e os convidados a chamavam — equilibrou a pena sobre o papel e pediu ajuda ao invisível:

— Meu Deus, fazei-me a graça de nos esclarecer nesse assunto.

Instantes depois, a pena colocou a seguinte frase no papel, lida em voz alta pela “sibila”:

— É que estais destinado a viver para instruir e esclarecer vossos irmãos.

Recém-chegado dos campos de batalha, um sobrevivente da guerra lançou outra pergunta:

— O espírito do meu pai me acompanhou e protegeu nos combates?

— Sim.

O repórter se aproximou do soldado e perguntou quando o pai dele havia morrido:

— Meu pai não está morto.

Em seguida, um jovem tecelão da cidade descreveu a seguinte cena: noites antes, sua mãe fora despertada por um toque misterioso em seu rosto. Assustada, pediu ajuda ao marido e ao filho, que vasculharam a casa — onde também funcionava a oficina — em busca de algum visitante inoportuno (ratos, por exemplo). De repente, um dos teares começou a funcionar na extremidade do salão, e logo as outras máquinas se juntaram à primeira numa sinfonia aterradora.

Qual era a explicação?

Mais uma vez a pena de ganso deu a resposta, lida pela médium:

— É o vosso avô, que vem pedir preces.

— É isso mesmo. Pobre velho!

A família, católica, ainda não mandara rezar as missas prometidas.

Outro espectador buscava razões para as constantes aparições de cometas nos céus da França. Seriam sinais do apocalipse?

A resposta veio rápido:

— Sim, e em 140 anos o mundo não mais existirá.

A sessão terminou com uma questão bem mais pessoal, lançada por uma espectadora que, segundo estimativas do repórter, deveria ter entre 40 e 50 anos:

— Meu espírito já foi encarnado? Quantas vezes?

A pena de ganso matou a curiosidade da visitante:

— Foram três vezes. Na primeira vez, foste filha natural de respeitável princesa russa; na segunda vida, filha legítima de um trapeiro na Boêmia; e, nesta terceira, tu o sabes...

O jornalista não deu detalhes sobre a nova encarnação da ex-nobre, mas encerrou a reportagem com uma pergunta — “Não seria bom impedir que pobres loucos ficassem ainda mais loucos?” — e com certa nostalgia das fogueiras da Inquisição:

Outrora a Igreja era bastante poderosa para impor silêncio a semelhantes divagações. Talvez ela maltratasse bastante, é verdade, mas sustava o mal.

Kardec ficou indignado ao ler o artigo. Um dos parágrafos que mais o incomodou era o que definia o perfil dos adeptos da doutrina:

(...) são, geralmente, operários, pois ali não recebem facilmente os que, pelo seu exterior, denunciam muita inteligência.

Os espíritos só se dignam manifestar-se aos simples.

Desta vez, estimulado por Amélie, Kardec escreveu uma carta para a Gazette de Lyon e pediu direito de resposta. Eram muitas as correções a fazer:

•  A quase totalidade dos espíritas — 5 ou 6 milhões, pelas suas contas já atualizadas — pertenceria às “classes mais esclarecidas da sociedade”: médicos, advogados, magistrados, homens de letras, altos funcionários, oficiais de todas as patentes, artistas, cientistas, negociantes, “pessoas que levianamente colocais entre os ineptos”.

•  Os operários de Lyon deveriam merecer muito mais respeito e gratidão de seu conterrâneo. “Esqueceis que são esses mesmos operários que fazem a prosperidade de vossa cidade pela indústria?”

•  Sobre o desempenho da “sibila”, Kardec foi bem mais sucinto: ela nunca usou “penas de ganso” em suas comunicações, e a maioria das perguntas e respostas citadas no artigo seriam “pura invenção”, segundo relatos de seus informantes.

•  Sim, ele reconhecia. Os espíritos, às vezes, proferiam absurdos. E mais: cometiam grosserias e impertinências. Se o jornalista tivesse lido O livro dos espíritos, saberia por quê: ao deixar o corpo, o espírito não se despojava, imediatamente, de todas as imperfeições:

É provável que aqueles que dizem coisas ridículas como espíritos as disseram ainda mais ridículas quando estavam entre nós.

Eis porque não aceitamos mais cegamente o que vem da parte deles do que o vem da parte dos homens.

Em setembro de 1860, mês seguinte à nova polêmica, os espíritas lionenses ofereceriam um jantar a Kardec. No discurso de boas-vindas ao “zeloso propagador da doutrina espírita”, o anfitrião Guilhaume agradeceu a perseverança do homenageado, “escolhido para espalhar a luz”.

Todos os convivas ali eram gratos a O livro dos espíritos por pelo menos quatro razões, enumeradas na saudação inicial: felicidade de se sentirem melhorados; “coração mais leve, livre da cólera e da vingança”; coragem para enfrentar os reveses da vida; e disposição para o exercício da caridade, “não mais uma palavra vã”.

Um belo discurso assinado por um comerciante, filho e neto de tecelões.