MANUAL DE INSTRUÇÕES
Em janeiro de 1861, Kardec anunciou o lançamento de uma nova obra: O livro dos médiuns, um guia prático destinado aos interessados em desenvolver as aptidões mediúnicas, decifrar os mecanismos de comunicação com o além ou desvendar fraudes por trás de supostos intercâmbios sobrenaturais.
Se O livro dos espíritos era uma obra filosófica, este era um manual de instruções. O subtítulo, mais uma vez, buscava ser o mais esclarecedor e atraente possível:
Guia dos Médiuns e dos Evocadores — Ensino especial dos espíritos sobre a teoria de todos os gêneros de manifestações, os meios de comunicação com o mundo invisível, o desenvolvimento da mediunidade, as dificuldades e os tropeços que se podem encontrar na prática do espiritismo... constituindo o seguimento d’O livro dos espíritos.
Em um dos capítulos do novo livro — intitulado “Do charlatanismo e do embuste” —, Kardec listava uma série de artifícios usados por falsos médiuns para trapacear. No topo do ranking de manifestações mais enganadoras, estariam, segundo ele, os fenômenos físicos — “porque impressionam mais a vista do que a inteligência”.
Levitações, giros de mesas, pancadas inexplicáveis, aparições — era preciso estar atento ao risco de farsas em espetáculos como estes, sujeitos ao “emprego de tramoias e do compadrio”:
A fraude se insinua por toda parte e sabemos que, com habilidade, até mesmo uma cesta pode ser dirigida à vontade, com todas as aparências dos movimentos espontâneos.
O único antídoto contra tanta enganação seria, de acordo com Kardec, a análise do conteúdo — e do propósito — das comunicações do além. Muitas mensagens, insistia, estariam muito acima das capacidades ou conhecimentos de determinados médiuns:
Reconhecemos que o charlatanismo dispõe de grande habilidade e vastos recursos, mas ainda lhe não descobrimos o dom de dar saber a um ignorante, nem espírito a quem não o tenha...
Outro cuidado fundamental aos que quisessem percorrer este território nebuloso — e tão sujeito a farsas — era o de agir como um observador cuidadoso das circunstâncias e do comportamento dos envolvidos em cada manifestação do “mundo invisível”:
Julgamos que se deve desconfiar de quem quer que faça desses fenômenos um espetáculo ou objeto de curiosidade e de divertimento, e que pretenda produzi-los à sua vontade (...).
O verdadeiro espiritismo jamais se dará em espetáculo, nem subirá ao tablado das feiras.
Kardec estava preocupado com a quantidade de curiosos ávidos por testemunhar maravilhas do outro mundo, e ficava impressionado com o número de pessoas dedicadas a repousar os dedos sobre uma mesa, na esperança de vê-la girar, ou a equilibrar o lápis sobre o papel, na expectativa de vê-lo preencher páginas em branco com mensagens do além. Um prato cheio aos oportunistas e um risco à credibilidade da doutrina.
Era preciso muito estudo para entender os limites e objetivos desse intercâmbio — ele afirmava, com frequência cada vez maior, em conversas com médiuns ou candidatos a médiuns.
Todos carregaríamos, sim, o “gérmen da mediunidade” dentro de nós, mas nem todos estariam aptos a emprestar seu corpo e sua voz aos mortos. Kardec, por exemplo, nunca conseguiu fazer contato direto com espíritos, sem a intervenção de médiuns. Por quê? Uma passagem do novo livro comparava a mediunidade a dons artísticos:
As regras da poesia, da pintura e da música não fazem que se tornem poetas, pintores ou músicos os que não têm o gênio de alguma dessas artes.
Era preciso estudar a fundo a nova ciência e a nova filosofia e era preciso também tomar cuidado com os homens... e com os espíritos — ele repetia.
A confiança cega nessa superioridade absoluta dos seres do mundo invisível tem sido, para muitos, a causa de não poucas decepções. Esses aprenderão à sua custa a desconfiar de certos espíritos, tanto quanto de certos homens.
Em reunião na sede da Sociedade, a 5 de abril de 1861, Kardec exigiria assiduidade e perseverança dos companheiros de doutrina, e condenaria, mais uma vez, a presença de ouvintes eventuais nas sessões:
— A verdadeira convicção só se adquire pela leitura, pela reflexão e por uma observação contínua, e não assistindo a uma ou duas sessões, por mais interessantes que sejam.
A estratégia estava funcionando. A cada dia, aumentava o número de espíritas convertidos não graças ao testemunho de fenômenos mágicos, mas ao estudo de O livro dos espíritos.
— Eis por que dizemos: estudai primeiro e vede depois, porque compreendereis melhor.
No longo discurso aos companheiros de Sociedade, Kardec não recorreria a conselhos espirituais ou a mensagens do além para defender seus pontos de vista:
— Antes de instruir os outros, quisemos nós próprios nos instruir. O espiritismo é uma ciência e, como qualquer outra ciência, não se aprende brincando.
Além disso, era preciso tratar com respeito os visitantes invisíveis:
— Tomar as almas que se foram como assunto para distração seria faltar ao respeito a que fazem jus: especular sobre sua presença e sua intervenção seria impiedade e profanação.
Protegido dos olhares curiosos, um novo espírito logo se manifestaria, por escrito, na sede da Sociedade Espírita.