ADEUS E BEM-VINDO
Em março de 1862, Kardec foi incumbido de fazer um discurso em homenagem a um dos companheiros da Sociedade Espírita de Paris: o sr. Sanson. O cenário era o cemitério do Père-Lachaise, batizado assim em homenagem ao padre Lachaise, confessor do rei Luís XIV da França. Entre os mausoléus arborizados, Kardec se despediu do amigo e, diante do túmulo ainda aberto, reafirmou a fé na doutrina que dera tanta esperança a Sanson durante longa e sofrida doença:
— Desde muito tempo ele previa o seu fim; mas, longe de se apavorar, o esperava como a hora da libertação.
Vida e morte se entrelaçavam em seu discurso.
— Quem, em presença desse túmulo aberto, não sente um calafrio percorrer as veias, ao pensar que amanhã, talvez, o mesmo lhe acontecerá e que, depois de umas pás de terra, lançadas sobre o seu corpo, tudo estará terminado para sempre, que não pensará, não sentirá, não amará?
Este era o ponto de vista — “pungente e glacial”, segundo Kardec — de quem encarava a morte como o fim. Para os materialistas, Sanson era agora mero cadáver, desprovido de inteligência e emoção, totalmente aniquilado. Para os espíritas, a história era bem diferente:
— Alma do sr. Sanson, que acabais de entrar no mundo dos espíritos, aqui estais entre nós; vedes e nos escutais, pois entre nós apenas se acha o corpo perecível, que acabais de deixar e que em breve será pó.
E foi ao morto que Kardec dirigiu as últimas palavras, enquanto o corpo descia à sepultura:
— Esse corpo, instrumento de tantas dores, ainda está aí, ao vosso lado. Vós o vedes como o prisioneiro vê as cadeias de que acaba de se libertar. Deixastes o grosseiro invólucro sujeito às vicissitudes e à morte e apenas guardastes o invólucro etéreo, imperecível e inatingível pelos sofrimentos.
O discurso de despedida terminaria em clima de boas-vindas:
— Até a vista, caro sr. Sanson. Que possais gozar no mundo onde vos encontrais agora a felicidade que mereceis e que venhas estender-nos a mão quando nos chegar a vez de nele entrar.
Poucas semanas depois, Sanson já estava de volta à Sociedade Espírita, não para levar alguém embora, mas para trazer notícias do mundo de lá, pelas mãos do médium Leymarie:
— Meus amigos, estou junto a vós.
Era o início de uma sabatina, ou melhor, de uma “autópsia intelectual”, como definiria Kardec.
Atormentado pela perda da visão no fim da vida, Sanson nunca enxergara tão bem quanto agora:
— O instante da morte dá clarividência ao espírito. Os olhos não veem mais; mas o espírito, que possui uma visão muito profunda, descobre instantaneamente esse mundo desconhecido, e a verdade lhe aparece de súbito.
Uma verdade que poderia gerar alegria profunda ou dor insuportável ao “morto”, de acordo com seu estado de consciência ou com as lembranças da vida interrompida.
Na longa conversa com os companheiros de doutrina, Sanson daria notícias preocupantes aos que ainda teimavam em não crer. Para eles, o instante da morte seria bem mais penoso do que para os espíritas:
— Aquele que não crê é semelhante a um condenado à pena máxima e cujo pensamento vê o cutelo e o desconhecido.
O testemunho do além ecoava o discurso de outras mensagens transmitidas na Sociedade Espírita sobre o destino reservado aos incrédulos no momento da “passagem”:
— Nos últimos instantes, o incrédulo endurecido experimenta as angústias dos pesadelos terríveis, nos quais se vê às bordas de precipícios, prestes a cair no abismo... Quer chamar alguém e não pode articular o menor som, quer agarrar-se em qualquer coisa, achar um ponto de apoio e se sente escorregando...
Na dúvida, melhor crer. E muitos no mundo todo já criam, a julgar pelo relatório divulgado por Kardec na sessão de abertura do quinto ano de atividades da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, em abril de 1863.
O número de associações aumentava a cada dia, e em todo o canto. Argélia, Itália, Áustria e México já sediavam associações dedicadas à ciência espírita e à bandeira hasteada por Kardec: caridade.
Oitenta e sete membros fixos pagavam as cotas anuais da Sociedade em Paris, além de sócios honorários residentes no exterior. Este número poderia ser bem maior se o presidente da instituição reduzisse o rigor na seleção dos associados — atitude que se recusava a tomar, embora as pressões continuassem. Nas conversas com os companheiros e em artigos publicados na Revista Espírita, Kardec não se cansava de repetir:
Teria sido fácil dobrar, e mesmo triplicar esse número (de sócios), se visássemos receita. (...) Mas a relevância da sociedade nada tem a ver com o número de sócios, mas com as ideias que estuda, elabora e divulga.
Estas ideias, segundo a avaliação do mestre, nunca tinham sido tão consistentes:
Já não são, como outrora, pequenos fragmentos de moral banal, mas dissertações, nas quais as mais altas questões de filosofia são tratadas com amplidão e profundidade.
Pelas mãos de médiuns cada vez mais produtivos — e mais instruídos —, vinham mensagens assinadas por personalidades como Voltaire e Santo Agostinho sobre temas como fé, caridade e perdão.
Galileu também se manifestara, para divulgar seus Estudos uranográficos, através de um médium ainda em formação: o jovem astrônomo Camille Flammarion, futuro fundador da Sociedade de Astronomia da França. Os primeiros esboços dele como intermediário do além, no entanto, eram nada reveladores:
— Uma paisagem de horizonte sem fim, tufos de árvores sob as quais sentimos a vida subir na seiva, um prado esmaltado de flores perfumosas e coroado pelo sol: a isto se chama natureza.
Muito mais impressionante era sua obra de estreia, publicada em 1862, quando Flammarion, 20 anos recém-completados, ainda estudava no Observatório de Paris: A pluralidade dos mundos habitados. Um best-seller que, em muitos pontos, avalizava as revelações sobre a vida em outros planetas divulgadas por Kardec e já proclamadas em outras obras e seitas desde a Antiguidade.
Num dos trechos, Flammarion citava as descrições do “bom padre” Atanásio Kircher em Viagem extática celeste, publicado no século XVII. Ao sair de seu corpo, ele chegara a Saturno e ficara espantado com os habitantes locais: velhos melancólicos em roupas lúgubres, com tochas fúnebres à mão. Muito mais vibrantes eram os moradores de Vênus, com suas vestes de cristal tilintando ao som de liras e címbalos.
Flammarion defendia, sim, a pluralidade dos mundos e se aproximava cada vez mais de Kardec. Caberia a ele, aliás, 38 anos mais jovem, o discurso de despedida ao mestre na cerimônia de seu enterro. Entre os túmulos do cemitério, o astrônomo definiria o homenageado como “o bom senso encarnado”, uma definição repetida por todos os seus admiradores desde então.
Mas esse dia demoraria a chegar e Kardec ainda trabalharia duro para estar à altura dos que o viam como um pesquisador incansável, sempre pronto a duvidar das “verdades” atribuídas ao além.
Era preciso, repetia, lutar para discernir o verdadeiro do falso e o racional do ilógico no emaranhado de mensagens psicografadas: “Os espíritos estão longe de possuir a soberana ciência e podem se enganar.”
Os médiuns também. E quanto mais escreviam e mais se multiplicavam, mais trabalho davam ao mestre. Muitos reagiam mal às críticas do autor de O livro dos espíritos. Kardec não se conformava e desabafava em conversas com Amélie e com os companheiros mais sensatos:
Como discutir comunicações com médiuns que não suportam a menor controvérsia, que se melindram com uma observação crítica e acham mau que não se aplaudam as mensagens que recebem, mesmo aquelas inçadas de grosseiras heresias científicas?
Kardec criticava e era alvo também de críticas, cobranças, suspeitas e acusações.