OS MILHÕES DE ALLAN KARDEC

A uma das acusações Kardec fez questão de responder em artigo publicado na Revista Espírita em maio de 1863. Um padre espalhara entre os fiéis a notícia de que o “inventor do espiritismo” estava milionário graças a doações vindas da Inglaterra, contribuições de sócios, assinaturas de revistas e vendas de livros. O clérigo teria conhecido Rivail, ainda pobre, nas ruas de Lyon, e ficara impressionado ao vê-lo desfilar pelas avenidas de Paris a bordo de uma carruagem imponente puxada por quatro cavalos puro-sangue.

Em sua resposta ao padre — que tratou de proteger sob o anonimato —, Kardec fez duas correções: nascido em Lyon, em 3 de outubro de 1804, nunca chegara a morar na cidade, e a tal carruagem imponente não passava de um fiacre tocado por burros de carga, alugado cinco ou seis vezes por ano, por economia:

Que diria o sr. Vigário se visse meus mais suntuosos banquetes, nos quais recebo os amigos? Achá-los-ia muito magros, ao lado das magras refeições de certos dignitários da Igreja.

O espiritismo — escreveu Kardec — nunca seria um meio de enriquecer, mesmo porque pregava que todos vivessem apenas com o necessário, livres da ganância e da ambição. Outra lição espírita era a de ser fiel a uma das máximas de Cristo: “Não faças a outrem o que não queres que te façam.” Máxima que — Kardec ressaltava — o padre teria traído ao caluniar o próximo.

Na longa resposta ao vigário, Kardec aproveitou para mandar recados, por tabela, a adversários e falsos aliados que se incomodavam com seu sucesso.

Lucros com vendas de livros? Ninguém tinha nada a ver com isso — “qualquer trabalhador tem o direito de vender o produto de seu trabalho” —, mas, para saciar a curiosidade dos detratores, Kardec revelou a renda obtida com a primeira tiragem do livro de estreia:

(...) feitas as devidas contas, esgotada a edição, vendidos uns exemplares, dados outros, rendeu-me cerca de quinhentos francos, como posso provar documentalmente. Não sei que tipo de carruagem poderia ser comprada com isso.

Outro número — também revelado sob a pressão de cobranças e suspeitas — poderia financiar, sim, uma carruagem zero quilômetro: 10 mil francos. Foi este o total recebido por Kardec de um admirador da doutrina. Doação que transferiu a um fundo que batizara de Caixa do Espiritismo, sob supervisão da Sociedade.

Em detalhada prestação de contas apresentada aos companheiros da Sociedade Espírita, Kardec declarou como seria aplicada a pequena fortuna que muitos julgavam inesgotável. Nenhuma doação aos pobres e nenhum gasto com despesas pessoais. Todo o dinheiro seria reservado ao pagamento de seis anos de aluguel da sede da Sociedade, um amplo apartamento localizado num dos bairros mais valorizados de Paris.

Por que alugar um imóvel tão caro? — questionavam alguns associados. Aliás, seria mesmo necessário um imóvel exclusivo para reuniões espíritas? Kardec teve de responder por escrito em carta distribuída aos associados:

Esse apartamento reúne as vantagens desejáveis por suas disposições internas e sua situação central. Nada tendo de suntuoso, é muito adequado.

Seria inviável para ele e Amélie manter a própria casa aberta às visitas que não paravam de chegar, da França e do exterior. Uma média de 1.200 a 1.500 pessoas por ano, que agora encontravam abrigo na sede da Sociedade.

Com cuidados de contador, Kardec justificou, franco por franco, o uso da doação. O custo anual do aluguel do apartamento era de 2.530 francos. A Sociedade pagava 1.200 deste total. Restava, portanto, uma diferença de 1.528 por ano. Ao longo de seis anos, seriam gastos 9.168 francos no total — uma despesa que aumentaria em 900 francos com a compra de móveis e ultrapassaria facilmente os 10 mil com imprevistos e investimentos extras.

Os gastos com viagens subiriam muito em 1862. Para divulgar a doutrina e checar os resultados alcançados, na prática, pelo espiritismo, Kardec iniciara os preparativos para uma longa viagem: 1.158 quilômetros de trem e carruagem por vinte cidades da França, ao longo de seis semanas de chuva, frio e neve, do outono ao inverno. Kardec pagaria com dinheiro do próprio bolso todas as despesas deste tour.

Já não faltava dinheiro: O livro dos espíritos estava na nona edição e O livro dos médiuns chegara à quarta reimpressão dois anos depois de lançado. E ninguém tinha nada a ver com isso.