JUMENTOS E BENGALAS
Dissidentes se afastavam, e os adversários atacavam. Nas páginas do jornal Le Moniteur, da cidade de Moselle, notícias alarmantes:
O espiritismo faz perigoso progresso. Invade a alta, a média e a baixa sociedade. Magistrados, médicos, gente séria também se atira a esse erro!
Na sede da Sociedade de Ciências Médicas, o alerta do dr. Philibert Burlet, após analisar seis casos de loucura em hospitais de Lyon, em maio de 1863: o espiritismo causaria alienação mental. Pretensos médiuns seriam apenas lunáticos, e espíritos não passariam de alucinações.
Nos púlpitos das igrejas, párocos cada vez mais inflamados.
Um deles, o combativo padre Lapeyre, da Companhia de Jesus em Paris, dedicou um longo sermão a analisar O livro dos espíritos. Onde se lia caridade, ele identificava a influência das ideias comunistas. Onde se lia igualdade, ele denunciava ameaças à propriedade privada. Onde se lia livre-arbítrio, ele via a supremacia do homem sobre um Deus sem força nem valor. E onde se liam os nomes dos “autores espirituais” da obra — São Paulo, Santo Agostinho, São Lucas, São Vicente de Paula! —, ele via apenas heresia.
Para Lapeyre, o livro atribuído a espíritos superiores teria sido ditado “pelo hábil e astuto diabo”, ávido por ludibriar os ignorantes com a ilusão de que não há inferno nem purgatório, e de que o destino da humanidade estaria, portanto, nas mãos do homem. Um absurdo que só poderia prosperar mesmo naquele século XIX — “da incredulidade e das heresias” —, terreno fértil para a disseminação de perversões como aquela:
— Este século ama tanto a liberdade e vem lhe oferecer o livre exame, o livre-arbítrio, a liberdade de consciência! Este século ama tanto a igualdade... e lhe mostram o homem da altura de Deus! Ama tanto a luz... e de uma penada rasga-se o véu que ocultava os santos mistérios!
Ao padre, só restava ter piedade dos pobres coitados adeptos da nova doutrina:
— Pobres insensatos que vos divertis em falar com os espíritos e pretendeis sobre eles exercer qualquer influência!
E que os fiéis diante dele, na nave da Santa Igreja, se livrassem do mal de folhear O livro dos espíritos:
— Eu não ficaria admirado se, entre vocês, não haja alguns que já foram arrastados à sua leitura. A estes só podemos dizer: depressa! Aproximai-vos do tribunal das penitências! Depressa! Vinde abrir os vossos corações aos guias espirituais!
O que fazer, então, com aquelas obras demoníacas?
— Como São Paulo, faremos uma montanha em praça pública e nós mesmos meteremos fogo!
Como nenhum dos fiéis entregou exemplares de seus livros para a fogueira santa, faltou combustível para o segundo auto de fé, mas não para novos ataques eclesiásticos.
Em sermão na igreja primaz de São João Batista, diante do cardeal arcebispo de Lyon, outro padre respeitado pela comunidade, o reverendo Nampon, decretaria, em outubro de 1863:
— Nada é mais abjeto, mais degradante, mais vazio de fundo e de atrativo na forma do que as publicações espíritas, cujo sucesso fabuloso é um dos sintomas mais alarmantes de nossa época.
Na cidade que batia recordes de conversão à nova doutrina, a cruzada católica contra os livros espíritas era cada vez mais virulenta. O discurso de Nampon não deixava dúvidas.
— Destruam estas obras nefastas; nada perdereis. Com o dinheiro gasto em Lyon com essas inépcias, facilmente se teriam construído mais leitos nos hospícios de alienados, superlotados desde a invasão do espiritismo!
Em outra igreja, em Bugarach, um vigário mais bem-humorado, Pierre Vasin, apelou para uma parábola contada aos fiéis como história real. Dilacerada pela perda do companheiro, uma jovem viúva recorrera aos préstimos de um espírita local. O morto se manifestou pelas mãos do médium para dar uma boa e uma má notícia. A boa: ele acabara de reencarnar e estava bem perto da companheira, a um quilômetro de distância. A má: voltara na pele, ou melhor, no couro do jumentinho de um moleiro conhecido do casal. Movida pela saudade, a viúva correu até a casa do fabricante de farinha e fez uma oferta irrecusável pelo animal surrado. Final da história, segundo o padre:
— Há quinze dias, o ex-finado ocupa um cômodo especial na casa da ex-viúva, cercado de cuidados jamais desfrutados por seus semelhantes, desde que a Deus aprouve criar esta amável raça.
Kardec não achou graça. Quem lesse O livro dos espíritos saberia que espíritos de homens não reencarnam em animais. E quem lidasse, como ele lidava, com a dor de quem perde entes queridos levaria mais a sério o sofrimento de viúvas saudosas.
Outra história, que passou a circular pela França, também exigiria respostas de Kardec. Um suposto participante de reunião mediúnica realizada na sede da Sociedade de Paris revelou a amigos o quanto a sessão fora “marcante” para as cerca de trinta testemunhas. As marcas teriam ficado nos corpos de todos os atingidos pelas pancadas dos espíritos naquela noite. Ele não chegou a ver a bengala, mas sentiu o peso do golpe — que ficara ali, estampado em sua espádua, como prova aos incrédulos.
Por que Kardec não relatava fenômenos como estes — menos edificantes — nas páginas de sua Revista Espírita?
A resposta, segundo ele, era simples: porque este episódio não passaria de invenção. A quem duvidasse, tinha até um álibi: a tal sessão teria acontecido, de acordo com a suposta vítima, no período de recesso da Sociedade Espírita, entre 15 de agosto e 1º de outubro.
Além disso, se fosse mesmo real, Kardec teria revelado o episódio aos seus leitores sem qualquer constrangimento:
Seria um fato capital, do qual não se poderia duvidar; pois, como foi dito, haveria trinta testemunhas levando no lombo a prova da existência dos espíritos!
Como justificar, então, a marca das bengaladas no corpo da testemunha? A vítima que se explicasse:
Ela as recebeu em alhures e, não querendo dizer onde nem como, achou interessante acusar os espíritos, o que era menos comprometedor...
Entre sermões furibundos, jumentos saudosos e bengaladas invisíveis, Kardec ia em frente, e voltava a fazer contas para reagir aos ataques gerados pela devoção dos detratores a uma entidade definida por ele como o “Deus de nossa época”: o dinheiro.