AMÉM
O ano de 1864 começou, aliás, com uma mensagem assinada por João, o evangelista, na Sociedade Espírita de Paris. Coube à médium Costel psicografá-la. Na saudação endereçada aos operários, o companheiro de Jesus conclamava os trabalhadores a aderirem à doutrina divulgada por Kardec:
— Sede espíritas: tornar-vo-eis fortes e pacientes, porque aprendereis que as provas são uma dádiva assegurada do progresso.
A julgar pelo tema da nova obra do autor de O livro dos espíritos, os evangelistas estavam sobrecarregados naquele período. Enquanto auxiliavam Roustaing na redação dos quatro evangelhos, faziam serão na casa de Kardec, às voltas com os retoques finais de Imitação do evangelho segundo o espiritismo, livro rebatizado, três anos depois, como O evangelho segundo o espiritismo.
Na introdução, uma explicação capaz de provocar arrepios em padres, bispos e vigários em geral: ditada por diferentes espíritos através de diversos médiuns dos mais variados países, de acordo com o método de “controle universal do ensino dos espíritos”, a obra pretendia esclarecer passagens nebulosas dos textos sagrados. Ou em outras palavras, ainda mais afiadas:
Muitos pontos dos evangelhos, da Bíblia e dos autores sacros em geral são ininteligíveis, parecendo alguns até irracionais, por falta da chave que faculte se lhes apreenda o verdadeiro sentido.
A chave agora estava disponível: o espiritismo.
Caberia à nova doutrina traduzir a essência moral dos evangelhos e traçar, assim, o “roteiro infalível para a felicidade vindoura”, com o máximo de objetividade, em linguagem livre de figuras alegóricas e parábolas místicas.
O principal objetivo do livro, segundo Kardec, era ambicioso: oferecer ao leitor um “código de moral universal, sem distinção de culto”. Chegara a hora de todos compreenderem, por completo, as principais lições de Cristo, reveladas pela nova ciência: o espiritismo.
Pela primeira vez, Kardec classificava, por escrito, a “doutrina dos espíritos” como a terceira revelação da lei de Deus, depois do antigo e do novo testamentos. E a fonte de todas as informações que revelava não era um homem, sujeito a falhas e aos próprios dogmas e interesses. Não. A fonte era outra:
O espiritismo é fruto do ensino dado, não por um homem, mas sim pelos espíritos, que são as vozes do céu, em todos os pontos da Terra, com o concurso de uma multidão inumerável de intermediários. É, de certa maneira, um ser coletivo, formado pelo conjunto dos seres do mundo espiritual, cada um dos quais traz o tributo de suas luzes aos homens (...).
Blasfêmia!
Uma depois da outra.
Título do segundo capítulo: “Meu reino não é deste mundo” — palavras de Jesus, identificadas por Kardec como prova da vida futura, em outros planos. Título do terceiro capítulo: “Há muitas moradas na casa de meu Pai” — palavras de Cristo, que, segundo Kardec, comprovariam a coexistência de mundos paralelos e habitados no espaço infinito. Título do quarto capítulo: “Ninguém poderá ver o reino de Deus se não nascer de novo” — demonstração, para Kardec, de o quanto a reencarnação já era um dogma para os judeus, sob o nome de ressurreição.
Frases assinadas por Santo Agostinho, São Luís, Lázaro, Fénelon, pelo bispo de Argel e pelo cardeal Morlot — depois de mortos — pontuavam a obra em meio a citações de Isaías, São Mateus, São Marcos e São Lucas, e a exortações assinadas pelo Espírito da Verdade, como esta: “Espíritas! Amai-vos, este o primeiro ensinamento. Instruí-vos, este o segundo.” E prosseguia:
Eis que do além-túmulo, que julgáveis o nada, vozes vos clamam: “Irmãos! Nada perece. Jesus Cristo é o vencedor do mal, sede os vencedores da impiedade.”
Na epígrafe, uma afirmação sem a assinatura de qualquer espírito: “Não há fé inabalável senão a que pode encarar a razão face a face, em todas as idades da humanidade.”
Em abril de 1864, o livro já estava à venda em toda a França, devidamente anunciado na Revista Espírita: “Esta obra é para uso de todos. Cada um pode aí colher os meios de conformar sua conduta à moral do Cristo.”
No mês seguinte — no primeiro dia de maio — a Igreja Católica deu um veredito sucinto sobre a terceira revelação: incluiu todas as obras publicadas por Allan Kardec no índex da sagrada congregação. Os cristãos deveriam manter distância destes livros, contrários aos princípios bíblicos.
Kardec reagiu ao veto com uma nova comemoração em assembleia na Sociedade:
— A essa notícia, a maioria das livrarias apressaram-se em pôr essas obras em mais evidência.
Alguns livreiros se intimidaram, sim, mas, em vez de se livrarem dos livros, tomaram o cuidado de retirá-los das prateleiras e de colocá-los atrás do balcão, à disposição dos interessados em conhecer obras tão polêmicas.
A reação da Igreja não foi nenhuma surpresa para Kardec. Poucos meses antes da publicação de Imitação do evangelho segundo o espiritismo — em 9 de agosto de 1863 —, ele recebera, também pelas mãos do sr. D’Ambers, uma comunicação preocupante sobre a repercussão do evangelho espírita:
— O clero clamará a heresia, porque verá que neste livro atacas firmemente as penas eternas e outros pontos sobre os quais apoia sua influência e seu crédito.
Quando esta mensagem foi escrita, o médium não tinha qualquer informação sobre o conteúdo da obra ainda em elaboração. Kardec manteve o tema do livro em sigilo até o momento da publicação. Um cuidado que tomara para confirmar se as mensagens sobre o novo projeto vinham mesmo dos “mortos”.
A depender dos avisos do além, os ataques seriam muitos, mas a polêmica valeria a pena mais uma vez:
— Os espíritas verão seu número aumentar, em razão desta perseguição, sobretudo ao ver os padres acusarem de demoníaca uma obra cuja moralidade brilhará como um raio de sol...