QUE SE ABRAM AS CORTINAS
Desta vez, Kardec preferiria não entrar em polêmica. Tinha muito trabalho a fazer nas cidades onde era bem-vindo. Depois de descansar da maratona do ano anterior, arrumou as malas de novo para atender a convites feitos pelos aliados de Bruxelas e da Antuérpia. Por todo canto, nos bairros mais populares e nas regiões mais nobres da Bélgica, eram inauguradas novas associações espíritas dedicadas não aos “sonhos da magia e da aparição de espíritos”, mas à caridade.
Em um destes centros, batizado de A Fraternidade, os sócios se uniram para oferecer roupa e comida aos necessitados, e patrocinar uma creche para famílias de operários. Em outro grupo, o Amor e Caridade, associados percorriam bairros da periferia para dar apoio espiritual e material em visitas semanais.
Kardec festejou a “revolução em marcha” na região e se rendeu também a um fenômeno típico da fase definida por ele como “jardim de infância do espiritismo”. Ele já tinha assistido a prodígios de muitas mesas e cestos encantados, mas nunca testemunhara mesa mais ligeira — e mais habilidosa — do que a de um médium de Antuérpia.
Os ditados do além vinham a jato através dos três pés da mesa. Cada um ecoava uma série de letras do alfabeto: o pé número um, do A ao H; o dois, do I ao P; e o três, do Q ao Z. Três assistentes se desdobravam para contar as pancadas e convertê-las em letras — cada um atento a um dos pés. Uma pancada, letra A, duas pancadas, letra B, e assim sucessivamente, de acordo com o velho método.
Havia, porém, uma novidade neste processo já um tanto ultrapassado: as palavras se formavam de trás para a frente. Eram ditadas ao avesso e geravam textos de até vinte linhas em menos de quinze minutos, diante de testemunhas perplexas.
Kardec, que já não se impressionava com fenômenos como este, trataria de dividir seu entusiasmo com os leitores da Revista Espírita na edição de outubro de 1864:
Esta divisão de letras, aliada à cooperação de três pessoas que não se podem comunicar, à rapidez do movimento e à indicação das letras em sentido inverso, tornam a fraude materialmente impossível.
Em Bruxelas, testemunhou outra manifestação extraordinária. Sem que ninguém evocasse qualquer espírito, a médium, lápis à mão, pôs no papel a seguinte frase, escrita com letras trêmulas e graúdas: “Arrependo-me, arrependo-me. Latour.”
Sete pessoas acompanharam a cena, ou melhor, uma sequência eletrizante. Logo depois de escrever as primeiras palavras, a médium largou o lápis e entrou em transe. Com as feições crispadas, mãos enrijecidas, olhos arregalados de terror, passou a dar voz ao recém-chegado: um criminoso executado na guilhotina.
O que Latour via e sentia do outro lado atemorizou a todos.
— Piedade! Que é a guilhotina perto do quanto sofro agora? Nada. Esse fogo que me devora é pior; é uma morte contínua, é um sofrimento que não deixa trégua nem repouso. E minhas vítimas estão aí, em volta de mim, me mostram suas feridas... Me perseguem com o olhar. E este mar de sangue? E este ouro manchado de sangue? Tudo sangue. Ei-las essas pobres vítimas; elas me imploram... E eu, sem piedade, firo... Firo... Firo sempre. O sangue me embriaga.
O inferno era ali.
Kardec transcreveu o pedido de socorro do criminoso arrependido e o divulgou como um alerta geral. Melhor fazer o bem para não se arrepender depois.
Esta seria a mensagem central de seus discursos em Bruxelas e Antuérpia.
O descrente poderia duvidar de tudo — da mesa eletrizante e da médium transtornada —, mas não poderia questionar a caridade.