O FABULOSO HILLAIRE
Um conselho que Kardec repetiria, por escrito, a um dos médiuns em evidência na época: o simplório camponês Hillaire, morador da pequena cidade de Sonnac. Na presença dele, mesas e cadeiras se moviam no ar, e objetos de todos os pesos e tamanhos flutuavam sobre as cabeças de espectadores estupefatos.
Para os admiradores, não havia dúvidas: Hillaire era um prodígio comparável ao impressionante médium escocês Daniel Dunglas Home, capaz de levitar a metros do chão, em plena luz do dia. Para os incrédulos, ele poderia, sim, ser comparado a Home, mas por sua capacidade de ludibriar os incautos e ganhar dinheiro com seus truques.
Admirador de Home — a quem dedicara uma série de artigos elogiosos na Revista Espírita —, Kardec acompanhou com atenção os feitos de Hillaire e os riscos que o rondavam. Em cartas enviadas ao autor de O livro dos espíritos, o médium relatara o sonho de lotar teatros maiores do que sua aldeia e manifestara o desejo de se encontrar com o mestre em Paris.
Kardec manteve distância. Em vez de marcar um encontro, enviou ao jovem admirador uma carta repleta de advertências. Era preciso tomar cuidado com o orgulho, a vaidade e a ambição. Misturar mediunidade e dinheiro seria um erro grave. O jovem deveria continuar no campo e abandonar os projetos de sair pelo mundo em turnês teatrais. Ele poderia, sim, prestar grandes serviços à causa do espiritismo, mas em sua terra, ao lado da família e dos amigos.
Contrariado, Hillaire interrompeu a correspondência e, em pouco tempo, ganhou mais destaque ainda — agora nas páginas policiais dos principais jornais de sua cidade e arredores. Seu patrocinador mais devotado, o abnegado comerciante espírita Vitet, denunciara o “médium” por fraude ao flagrar os fios invisíveis que ele e sua mulher usavam nas “sessões de transporte” atribuídas a espíritos. Indignado, Vitet foi à polícia e à imprensa para exigir a prisão dos farsantes — Hillaire e sua cúmplice — e a devolução imediata de suas doações.
O “médium” fugiu da cidade, e Kardec recebeu em casa mais uma carta sobre seus “prodígios”. Um pedido de socorro assinado por Vitet. Na correspondência, a vítima pedia ajuda ao diretor da Revista Espírita e a seus leitores para localizar os foragidos e levá-los à cadeia:
É preciso tirar-lhes todos os recursos, a fim de que sejam castigados pela justiça dos homens. Espero também que a justiça desse Deus de misericórdia os castigue também, pois fazem um grande mal ao espiritismo. Oro a Deus para que sejam descobertos.
Kardec leu a carta, mas, em vez de publicá-la, sentou-se à escrivaninha para produzir uma resposta urgente. Em vez de defender a punição, pediu para a vítima perdoar o farsante:
Não é uma contradição de vossa parte dizer que orais ao Deus de misericórdia para fazer com que os culpados sejam presos? Dirigir-lhe semelhantes preces é ofendê-lo, é esquecer-se de que ele disse: “Sereis perdoado como tiverdes perdoado aos outros.”
Em vez de dar apoio a Vitet, condenou sua indiscrição:
Tanto por caridade, quanto pelo interesse que dizeis ter pela doutrina, deveríeis ter feito o que estava em vosso poder para evitar o escândalo. Pela repercussão que destes a estes fatos, fornecestes armas aos inimigos.
Vitet recebeu a carta e foi mais indiscreto ainda: anexou a resposta do principal líder da doutrina espírita ao processo movido contra Hillaire. O texto seria lido em voz alta, em pleno tribunal, quando o acusado, finalmente preso, fosse a julgamento, em fevereiro de 1865.
Vinte testemunhas deram depoimentos em favor dos fenômenos protagonizados por Hillaire. Representantes da Sociedade Espírita local defenderam a realidade do “mundo espiritual” e a lógica da doutrina, independentemente de fenômenos físicos. Um juiz, o sr. Jaubert, também deu seu parecer. Ele já presenciara, ao lado de amigos, levitações e transportes realizados “à luz das lâmpadas e do dia”, como os descritos por quem assistiu aos espetáculos de Hillaire. Nem tudo era mistificação... Fraudes operadas por um homem não poderiam desmoralizar toda uma doutrina.
O tribunal declinou da competência de apreciar “todos os transportes e outros fatos medianímicos” atribuídos ao réu, mas — diante do testemunho indignado do sr. Vitet — condenou o médium a um ano de prisão e multas, de acordo com os artigos 336, 337 e 338 do Código Penal.
Apesar da condenação, o final do julgamento foi festejado pelas lideranças espíritas — e por Kardec também:
O espiritismo não saiu apenas são e salvo desta prova: dela saiu com as honras da guerra. É verdade que o tribunal não proclamou a realidade das manifestações de Hillaire, mas, ao afirmar ser incapaz de avaliar os fenômenos, não as declarou fraudulentas.
Em carta publicada desta vez na Revista Espírita, em março de 1865, Kardec agradeceu aos correligionários pela defesa do espiritismo e declarou a crença nos poderes de Hillaire, ou melhor, em sua “notável faculdade”. Ele teria sido arrastado ao desvio e interrompido sua missão apenas por fraqueza. E quem seríamos nós para julgá-lo?
Não podemos condená-lo nem absolvê-lo! Só a Deus pertence o julgamento por ele não haver cumprido a tarefa até o fim. Irmãos, estendamos-lhe a mão de socorro e oremos por ele!
Nenhuma palavra sobre Vitet.