BALANÇO DE VIDA

Muito menos mágicas eram as sessões sobre o caixa do espiritismo. Em junho de 1865, mais uma vez, Kardec foi a público, em encontro na Sociedade Espírita, para atualizar contas e reagir às insinuações ou acusações de que ficava cada vez mais rico à custa da doutrina.

A doação de 10 mil francos, já declarada em 1860, motivara outros três doadores a contribuir com a causa espírita: quinhentos francos entraram nos cofres da Sociedade em 1862, e donativos de mil e 2 mil francos se somaram a eles no ano seguinte. Total doado: 13.500 francos — o correspondente a pouco mais de quatro anos de aluguel da sede da associação.

Estas eram as contas fáceis de fazer e declarar. As mais complexas — e que mais irritavam Kardec — eram as relacionadas às vendas de suas obras e às assinaturas da Revista Espírita. As vendas superavam, sim, em muito, as estimativas iniciais do autor, mas estavam longe de torná-lo um milionário, como se dizia:

— Basta ter um leve conhecimento de assuntos editoriais para saber que não é com livros filosóficos que se amontoam milhões em cinco ou seis anos, pois sobre a venda de cada exemplar só se recebe o direito autoral de alguns cêntimos.

Os lucros obtidos com a Revista Espírita — esta, sim, de propriedade dele — estariam em queda por dois motivos: o não pagamento de alguns assinantes (muitos deles moradores do exterior) e as distribuições gratuitas, “pelo bem da doutrina”, a quem não tinha condições de pagar.

Mas quanto, enfim, livros e assinaturas rendiam a Kardec? Este número ele não revelava:

— Imaginai as cifras que quiserdes!

Kardec evitava comentar, mas comprara um terreno de 2.666 metros quadrados na avenida Ségur, logo atrás da rua des Invalides. O negócio esgotou seus recursos e ele precisou contrair um empréstimo de 50 mil francos no Crédit Foncier para concluir um projeto que também mantinha em sigilo: o de construir um asilo — com seis pequenas casas — para abrigar seu sucessor (ainda sem nome) e os defensores mais devotados — e mais pobres também — do espiritismo.

De onde vinham os recursos para os investimentos imobiliários? Da venda de suas obras — e ninguém tinha nada a ver com isso.

Os livros eram resultado de esforço seu, de noites maldormidas e fins de semana sacrificados, e a Revista Espírita, ele a mandou imprimir, desde o primeiro número, sem qualquer apoio. E bastava ler cada edição para medir quanto esforço e quanto tempo exigiam dele os textos publicados:

— Não vivo à custa de ninguém. E o que faço com a renda do meu trabalho? Isso é o que mais preocupa certa gente.

Kardec continuava a morar no mesmo apartamento, ao lado de Amélie, sem tempo para quaisquer distrações. Uma vida sem filhos, dedicada a escrever e reescrever artigos e livros, entre viagens de divulgação da doutrina, sessões na Sociedade Espírita e recepção a visitantes que não paravam de chegar de todos os cantos, todos os dias.

O sucesso de O livro dos espíritos e de O livro dos médiuns rendera — e ainda rendia — lucro, mas suas despesas, afirmou, cresceram na mesma proporção de sua responsabilidade e de sua projeção pública como principal divulgador da doutrina. Só para responder a todas as cartas de leitores e líderes de sociedades espíritas, chegava a gastar, do próprio bolso, mais de oitocentos francos por ano:

— Não exagero ao dizer que minhas despesas anuais, que foram crescendo incessantemente, foram triplicadas desde o lançamento do primeiro livro.

Os recursos gerados por suas obras o ajudavam a financiar a dívida para a compra do terreno, a custear despesas extras em favor do espiritismo e a patrocinar as longas viagens de promoção das ideias espíritas. Nenhum franco — garantia — fora gasto com luxos e extravagâncias. Mesmo porque, por conta das dificuldades financeiras da vida de professor, aprendera a viver apenas com o necessário.

Certa nostalgia marcava aquele discurso proferido na sede da Sociedade. Afinal, oito anos já se tinham passado desde o lançamento de O livro dos espíritos e a metamorfose do professor Rivail em mestre Allan Kardec. Ao olhar para trás, entendia melhor por que o início fora tão duro e por que ouvira tantas vezes do Espírito da Verdade os pedidos para que tivesse calma enquanto penava com a falta de dinheiro:

— Não te inquietes; Deus sabe o que te é preciso e saberá provê-lo.

Quantas vezes, enquanto se desdobrava como contador e professor, lera frases como estas nas mensagens endereçadas a ele?

Depois de tanta luta, tinha certeza de que — tivesse dinheiro de sobra no começo da jornada — teria desperdiçado os recursos. Como Jobard, o impaciente, teria investido fortunas em publicidade para propagar o espiritismo, por desconhecer ainda a influência gratuita dos divulgadores mais inflamados: os adversários.

Grato por campanhas espontâneas como a do auto de fé de Barcelona, Kardec avaliava:

— Eles se encarregaram, e se encarregam, de levar nossas ideias adiante. Não pondo grandes recursos à minha disposição, os espíritos quiseram provar que o espiritismo não devia o seu sucesso senão a si mesmo, à sua própria força, e não ao emprego dos meios vulgares.

Semanas antes deste discurso, um amigo perguntara a Kardec sobre o que faria se recebesse um milhão de francos como doação. Sua resposta revelou preocupação com o tempo de vida que ainda teria pela frente, e com a falta de possíveis sucessores a seu redor.

Uma parte desta fortuna, ele reservaria para transformar sua propriedade num retiro espírita. O restante, investiria como “renda inalienável” para manter a instituição, sustentar seu sucessor e os colaboradores, e patrocinar as “despesas correntes” do espiritismo, sem a necessidade de lançamento de produtos eventuais — livros, por exemplo.

— Eis o que eu faria. Mas esta satisfação não me é dada e pouco me importa que o seja a outros. Aliás, sei que, de um modo ou de outro, os espíritos que dirigem o movimento proverão a todas as necessidades em tempo hábil. Eis porque não me inquieto absolutamente por isto e me ocupo do que para mim é o essencial: a conclusão dos trabalhos que me restam por terminar. Feito isto, partirei quando a Deus aprouver chamar-me.

A prestação de contas de 1865 foi também um balanço de vida.