RECEITAS DO ALÉM

Kardec estava cansado, ou melhor, exausto. Só os mais íntimos sabiam, mas, no início de 1865, sofrera um acidente cardiovascular grave e ficara de cama por longos dias, acompanhado de perto por Amélie e por um médico invisível: o homeopata Antoine Demeure, morto aos 71 anos, em 25 de janeiro daquele ano.

Os dois não se conheceram em vida, mas se tornaram íntimos quando Demeure passou a se manifestar através dos médiuns da Sociedade Espírita. Cinco dias depois de sua morte, veio a primeira mensagem, uma comunicação festiva sobre a sensação de liberdade do “outro lado”:

— Como sou feliz! Não mais velho nem enfermo. O corpo, esse era apenas um disfarce...

Logo após o distúrbio cardiovascular de Kardec, o médico enviou outra comunicação, em tom bem mais sóbrio e preocupado. Se ele, Demeure, não estivesse por perto quando a pressão de Kardec subiu e seu coração ameaçou parar, o codificador estaria tão “livre” quanto ele no além. Mas aquele não era o momento adequado para esta libertação:

— É preciso, antes de partir, dar uma última demão às obras complementares da teoria doutrinal de que és o iniciador.

Kardec deveria se cuidar para concluir sua missão. Um descuido poderia ser punido pela espiritualidade com rigor, a julgar pelo alerta assinado por Demeure:

— Se, por excesso de trabalho, tu antecipares a partida para cá, serás passível da pena de suicídio involuntário.

Só depois de ler e reler esta mensagem Kardec decidiu se recolher sob os cobertores de seu quarto e abandonar a leitura das cartas e dos livros recém-lançados que lotavam sua caixa postal.

Uma pausa rápida antes de concluir sua nova obra.