DESPEDIDA E SURPRESA
No dia 2 de dezembro de 1865, Kardec perdeu um de seus aliados mais fiéis: o editor Didier. Integrante da Sociedade Espírita de Paris desde a fundação, em 1858, ele se convertera ao espiritismo logo depois de mergulhar na leitura de O livro dos espíritos — que editou deste o início, em 1857 —, e já se preparava para imprimir a décima quarta edição da obra.
Na véspera de sua morte, participara de uma sessão na Sociedade. No dia seguinte, às seis da tarde, foi fulminado por uma parada cardíaca, no meio da rua, a alguns passos de casa.
A morte seria noticiada com certa ironia no Petit Journal. A má vontade do redator em relação ao espiritismo era tanta que ele não resistiu a fazer o seguinte comentário sobre a conversão de Didier:
Nestes últimos tempos, o sr. Didier editara o sr. Allan Kardec e tornara-se, então, por polidez de editor, ou por convicção, um adepto do espiritismo.
No Grand Journal, o tom maledicente era o mesmo:
Nestes últimos tempos, o sr. Didier era adepto — e o que mais vale ainda — e um fervoroso editor dos livros espíritas.
O pobre homem deve saber agora a que se ater nas doutrinas do sr. Allan Kardec.
Kardec acompanhou o enterro do amigo em silêncio, e ouviu críticas por não ter feito o discurso de despedida. Por que se calou enquanto o corpo descia à sepultura? Por que não aproveitou a ocasião para homenagear o editor e, ao mesmo tempo, proclamar a “verdade espírita”?
Sua justificativa era bastante simples: não queria ser acusado de usar uma cerimônia fúnebre como plataforma de divulgação. Muitos companheiros de Didier — diferentemente dos amigos dos finados Sanson e Jobard — não tinham qualquer ligação com a doutrina e poderiam encarar um discurso espiritualista com reservas ou mesmo irritação.
Se tomasse a palavra, Kardec teria de ser mais comedido do que de costume ao expor sua fé na vida depois da morte e na sobrevivência do espírito. E o comedimento poderia ser perigoso naquelas circunstâncias.
A caminho do cemitério, Amélie concordara com as ponderações do marido. A reticência dele ao longo do discurso poderia ser interpretada como medo ou até mesmo como uma espécie de negação dos próprios princípios. Melhor calar-se do que falar abertamente.
O silêncio à beira do caixão foi recompensado em artigo emocionado na Revista Espírita, em janeiro de 1866, uma homenagem ao “comerciante” em quem se podia confiar de “olhos fechados”. Um homem que encarava, sim, o livro como um negócio, mas nunca com mesquinharia ou parcimônia:
Era grande, largo. Não era o negociante de livros a calcular seu lucro vintém a vintém, mas o editor inteligente, justo apreciador, consciencioso e prudente.
E que lição tirar daquela morte súbita e fulminante? Cuidado! Atenção! De um instante para o outro, podemos ser chamados a prestar contas do “outro lado”:
Nossa vida se mantém por um fio, que pode romper-se quando não esperamos. Assim a morte fulminante adverte aos sobreviventes para que estejam sempre prontos a responder ao chamado do Senhor, para dar conta do emprego da vida que nos deu...
Outro editor admirado por Kardec tornou a semana de luto menos sofrida. Maurice Lachâtre — ainda exilado na Espanha, a salvo da censura de Napoleão III — enviou pelo correio uma surpresa encadernada, com capa de couro e título impresso em dourado: uma edição reluzente do Novo dicionário universal.
Dois belos volumes, com 20 mil figuras gravadas em madeira, ao longo de quatrocentos fascículos. Mais de 400 mil obras tinham sido consultadas na mais vasta pesquisa realizada até então sobre os mais diversos assuntos: mitologia, teologia, história, ciências, física, química, astronomia, invenções, medicina, geografia, marinha, economia doméstica e muito mais.
Kardec ficou pasmo com a qualidade da enciclopédia — que definiu como o “mais gigantesco empreendimento literário de nossa época” — e entusiasmado ao ver a quantidade de parágrafos dedicados à doutrina espírita nos verbetes “Alma”, “Espírito” e “Reencarnação”.
Seu nome — aliás, Allan Kardec — era o primeiro na lista de “cientistas, artistas e homens de letras” consultados por Maurice e sua equipe na preparação da obra. Um destaque festejado pelos admiradores do mestre, que tratou de explicar o motivo de tanta proeminência: a ordem alfabética.
Admirável para ele — isto, sim — era ver o espiritismo detalhado logo após as “teorias de alma” difundidas por Aristóteles, Platão, Leibniz, Descartes e outros filósofos:
Segundo a doutrina espírita, a alma é o princípio inteligente que anima os seres da criação e lhes dá o pensamento, a vontade e a liberdade de agir.
Nada a corrigir.
Unido ao corpo material pela encarnação, o espírito constitui o homem; de sorte que no homem há três elementos: a alma propriamente dita, ou princípio inteligente; o perispírito, ou envoltório fluídico da alma; o corpo, ou envoltório material.
Nenhum reparo.
Uma pena Didier não estar ali, a seu lado, para ver e tocar aqueles volumes. Ou estava?