FELIZ ANO-NOVO
No último dia de 1865, o respeitado jornal La Discussion, dedicado a política e finanças em Bruxelas, reservou uma página inteira à “palavra da moda”: espiritismo. O artigo intitulado “O espiritismo segundo os espíritas” foi lido por Kardec como uma espécie de presente de ano-novo.
Nunca um jornalista demonstrara tanto respeito pela doutrina espírita. O texto começava com um resumo das insinuações e acusações de sempre:
Alguns pretendem que o espiritismo é o truque do armário dos irmãos Davenport. Outros afirmam que não passa da magia e da feitiçaria de outrora. Segundo as comadres de todos os bairros, os espíritas têm palestras misteriosas com o diabo.
Enfim, lendo-se os jornais, fica-se sabendo que os espíritas são todos uns loucos ou, pelo menos, vítimas de certos charlatães, chamados médiuns.
O jornalista colecionou estas definições, mas não se contentou com elas. Para entender melhor o que tanto se debatia — e se atacava —, recorrera a um amigo simpatizante da doutrina, disposto a encarar os fenômenos mágicos. Queria ver as mesas girarem, os cestos escreverem e os médiuns entrarem em transe para dar voz aos mortos.
Não viu nada, mas escutou o amigo falar. E tratou de colocar no papel, sem críticas nem ironias, as frases ditas pelo companheiro espírita. Música para os ouvidos de Kardec:
O espiritismo não é, como creem vulgarmente, uma receita para fazer as mesas dançarem. O espiritismo é uma ciência, ou melhor dito, uma filosofia espiritualista, que ensina a moral. Não é uma religião, desde que não tem dogmas, nem culto, nem sacerdotes, nem artigos de fé. Sua doutrina se firma sobre a prova certa da imortalidade da alma. É para fornecer esta prova que os espíritas evocam os espíritos de além-túmulo.
Kardec leu todo o texto em busca de erros e não encontrou uma vírgula fora do lugar. Pela primeira vez, fez questão de escrever à direção de um jornal para agradecer.
Nem todos os leitores do jornal ficaram tão felizes assim. Muitos enviaram cartas à redação para protestar e checar se o La Discussion havia se transformado em tribuna do suspeito espiritismo.
A resposta da publicação soou como música, mais uma vez, para Kardec. Daquele dia em diante — afirmava a direção em editorial — o jornal destacaria especialistas para escrever sobre espiritismo, assim como o fazia com finanças, política, arte, ciência e literatura. E quem seriam estes especialistas?
As questões do espiritismo serão tratadas por espíritas, como as de arquitetura por arquitetos, a fim de que não nos qualifiquem de cegos raciocinando sobre as cores e que não nos apliquem as palavras de Fígaro: “Precisavam de um calculista e tomaram um dançarino.”
Se esta moda pegasse na França, a vida de Kardec seria bem mais leve.