O ESPIRITISMO INDEPENDENTE

A pilha de cartas a responder sobre a mesa aumentava e Kardec era obrigado a dar prioridade às mensagens mais preocupantes. De dentro de um dos envelopes, saiu, em fevereiro de 1866, a notícia sobre o projeto de um grupo de adeptos da doutrina: o lançamento de uma publicação periódica intitulada Journal du Spiritisme Indépendant.

Independente de que ou de quem? — Kardec se perguntou, e logo encontrou a resposta:

Espiritismo independente é o espiritismo liberto não só da tutela dos espíritos, mas de toda a direção ou supremacia pessoal, de toda a subordinação às instruções de um chefe, cuja opinião não pode fazer lei, desde que não é infalível.

Só faltava o nome de Kardec no lugar da palavra “chefe”.

Estava tudo muito claro. O Journal du Spiritisme Indépendant daria voz a um grupo de espíritas empenhado em se libertar da influência de mentores espirituais e da supervisão do mestre.

Nas reuniões promovidas por esses amotinados, já não se evocavam visitantes invisíveis.

O estudo da doutrina — das ciências, religiões e filosofias em geral — era conduzido pelos vivos e não pelos mortos. Cabia a eles chegar às próprias verdades, sem submissão a médiuns sempre falíveis, sujeitos a enganos e autoenganos, e a espíritos suspeitos e, muitas vezes, superficiais.

Kardec leu e releu a carta, repleta de críticas às “banalidades da moral” repetidas por espíritos incapazes de revelar novas verdades:

Discutiremos entre nós, buscaremos e decidiremos, em nossa sabedoria, os princípios que devem ser aceitos ou rejeitados, sem recorrer ao assentimento dos espíritos.

Confrontado por tantos ataques, o mestre mergulhou a pena no tinteiro e escreveu, a jato, uma longa resposta aos dissidentes. A irritação e o cansaço marcaram vários parágrafos de sua carta:

Algum dia nos fizemos passar por profeta ou messias? Levares a sério os títulos de sumo sacerdote, de soberano pontífice, mesmo de papa, com que a crítica houve por bem nos gratificar? (...)

Se outros puderem fazer melhor do que nós não iremos contra porque jamais dissemos: “Fora de nós não há verdade.” (...)

Há instruções que nós damos? Sim. Mas ninguém é forçado a se submeter a elas. Devem lamentar-se de nossa censura? Jamais citamos pessoas, a não ser quando devemos elogiar, e nossas instruções são dadas sob forma geral, como desenvolvimento de nossos princípios, para uso de todos. (...)

Se pudesse — e se conviesse —, poderia tirar da gaveta a mensagem de cinco anos atrás sobre sua sucessão. Aquele texto em que o “autor espiritual” o definia como o escolhido e — mais — como o “único em evidência” na condução da doutrina. Mas o que significaria esta revelação para quem questionava o saber e o poder dos espíritos?

Kardec produziu sua resposta sempre no coletivo — como “nós” — e, mais uma vez, atribuiu aos espíritos a responsabilidade pela doutrina.

Mas que espíritos? — questionavam os insurgentes na carta-manifesto. Como garantir que Santo Agostinho, São Luís e outras sumidades fossem mesmo os autores das mensagens escritas nas sessões da Sociedade? Como afirmar, sem quaisquer dúvidas, que todos aqueles textos não fossem obras dos próprios médiuns?

Em sua mensagem aos editores do Journal du Spiritisme Indépendant, o autor de O livro dos espíritos não pediu para que os detratores explicassem como jovens simples como as irmãs Baudin foram capazes de pôr no papel textos elaborados, com informações inacessíveis a elas.

Que duvidassem à vontade!

Certamente não podemos saber, por uma prova material, se o espírito que se apresenta sob o nome de Pascal é realmente o do grande Pascal.

Às favas a preocupação com a autoria: “Que nos importa se diz boas coisas?”

E às favas também os deslizes ortográficos e gramaticais identificados em mensagens psicografadas assinadas por grandes nomes da filosofia e da ciência:

Cabe-nos pesar o valor de suas instruções não pela forma da linguagem — que se sabe por vezes marcada pelo cunho da inferioridade do instrumento (o médium) —, mas pela grandeza e pela sabedoria dos pensamentos.

Em sua longa carta-resposta, Kardec afirmou que os espíritas rebelados podiam, sim, renegar sua liderança — ele nunca obrigara alguém a segui-lo —, mas seria um erro fatal renegar os espíritos. Um risco para a doutrina:

As comunicações dos espíritos fundaram o espiritismo. Repeli-las depois de as haver aclamado é querer derrubar o espiritismo pela base, tirar-lhe o alicerce.

Se o espírita rejeitasse as mensagens dos espíritos, agiria como um cristão que desprezasse as lições de Cristo, sob o pretexto de que sua moral era idêntica à de Platão:

Foram nessas comunicações que os espíritas encontraram alegria, consolo, esperança. É por elas que compreenderam a necessidade do bem, da resignação, da submissão à vontade da vida; graças a elas, já não há mais separação real entre eles (os vivos) e os objetos de suas mais ternas afeições (os entes queridos mortos).

Enquanto escrevia, Kardec se acalmava, mas a paz durou pouco. Meses depois, um desses dissidentes ganhou força e projeção com nome e sobrenome: J.-B. Roustaing.