ATESTADOS DO ALÉM

Outra mensagem — esta, sim, divulgada por Kardec — tratava de um tema mais íntimo: sua saúde. Em 23 de abril de 1866, o médico homeopata Demeure voltou a se manifestar através de um dos médiuns da Sociedade Espírita, o sr. Desliens, para receitar repouso ao paciente estressado, saudado por ele como “meu caro mestre e amigo Allan Kardec”:

— Precisas de repouso, as forças humanas têm limites que o desejo de que o ensino progrida te leva muitas vezes a ultrapassar. Estás errado, porque, agindo assim, não apressarás a marcha da doutrina, mas arruinarás a tua saúde e te colocarás na impossibilidade material de concluir a tarefa que vieste desempenhar neste mundo.

Demeure não falava apenas como médico. Era porta-voz de uma equipe preocupada:

— Sou aqui o delegado de todos os espíritos que tão poderosamente têm contribuído para a propagação da doutrina, mediante suas sábias instruções.

A nova prescrição do além seria lida com alívio por Amélie, já cansada de pedir calma ao marido, enquanto ele sofria diante dos artigos a redigir, livros a escrever e críticas a rebater, entre viagens, visitas e palestras sem fim.

Aos 62 anos, Kardec queria acelerar o trabalho, lançar novos livros e fazer novas revelações antes que fosse tarde demais e seu tempo na Terra se esgotasse. Um engano, segundo o porta-voz dos espíritos:

— De que serve correr? Não te dissemos muitas vezes que cada coisa virá a seu tempo e que os espíritos prepostos ao movimento das ideias sabem fazer que surjam circunstâncias favoráveis?

Uma das principais fontes de tensão de Kardec naquele momento se amontoava diante dele, sobre a escrivaninha: uma pilha de mais de quinhentas cartas ainda sem resposta. Demeure o tranquilizou:

— A superabundância é um bem e não um inconveniente. (...) A imensa correspondência que recebeis é para vós uma fonte preciosa de documentos e de informações.

E o que fazer com tantas cartas? Nada. Arquivar. Os remetentes, informados agora da exaustão do destinatário, entenderiam.

Desta vez, Kardec publicou a mensagem do dr. Demeure na Revista Espírita e, respaldado pelo médico do além, pediu desculpas aos “correspondentes” pela falta de respostas. Os aliados teriam de se conformar.

Para não correr o risco de ser punido por “suicídio involuntário”, Kardec rendeu-se ao descanso e, na noite de 24 de abril, foi surpreendido por um sonho misterioso.

Ao passar por uma rua desconhecida, deparou-se com um grupo de homens entretidos com uma conversa quase inaudível. No canto de uma parede, logo atrás, viu uma inscrição em letras miúdas, brilhantes como fogo, que se esforçou para decifrar: “Descobrimos que a borracha enrolada sob a roda faz uma légua em dez minutos pela estrada (...).”

A frase foi desaparecendo, pouco a pouco, antes de Kardec ter tempo de concluir a leitura. Ao acordar, ele trazia uma série de interrogações:

— O que significaria aquela borracha capaz de fazer uma légua em dez minutos? Seria a revelação de alguma nova propriedade desta substância? Ela desempenharia algum papel na locomoção? Querem pôr-nos no caminho de nova descoberta? Mas por que, então, se dirigiram a mim, em vez de a especialistas, com tempo para realizar os estudos e experiências necessários?

As respostas viriam do além. Não através do sumido Espírito da Verdade, mas em nova mensagem assinada pelo médico Demeure:

— O que vistes são encarnados que se ocupam, em diferentes partes do mundo, de invenções destinadas a aperfeiçoar os meios de locomoção. Uns têm pensado na borracha, outros em outras matérias. Mas o que existe de particular neste sonho é que quiseram chamar-vos a atenção, como objeto de estudo psicológico, para a reunião, num mesmo lugar, de espíritos de diferentes homens dedicados ao mesmo fim.

Estas reuniões de trabalho aconteciam com frequência quando os homens deixavam seus corpos, durante o sono, para se encontrar, em espírito, em diferentes pontos do planeta. Ao despertarem depois destas longas confabulações sobre descobertas e invenções em comum, voltavam a desenvolver suas pesquisas, longe uns dos outros.

Kardec revelou seu sonho em reportagem na Revista Espírita.

Premonição?

Não. Para os adversários, mera ignorância. Em 1840, Charles Goodyear já descobrira o processo de vulcanização da borracha; cinco anos depois, os irmãos Michelin patentearam o pneu para automóvel; e, em 1847, Robert Thompson inserira, pela primeira vez, câmaras de ar em pneus de borracha maciça.

Revelação?

Sim, de acordo com os aliados. Afinal, só vinte anos depois deste sonho, a partir de 1888, o pneu passaria a ser fabricado em larga escala na Europa e nos Estados Unidos.

Nem mesmo em sonho Kardec estava livre de polêmicas.

E foi enquanto tentava descansar que leu um novo artigo assinado por um dos principais críticos do espiritismo, Bertram Bechamel, publicado no jornal Office de Publicité, de Bruxelas, em junho de 1866. O jornalista examinara o armário dos irmãos Davenport e assistira a uma de suas exibições no Círculo Artístico e Literário.

As mãos amarradas da dupla, os sons dos violões e pandeiros saídos de dentro do armário, tudo o entediara: “Preparativos demorados, ruído aborrecido, tudo pouco divertido. E nada de espírito, nem no singular nem no plural.”

E foi com esta mesma melancolia que ele leu O livro dos espíritos:

Seu estilo não vale o de Bossuet e, salvo as citações feitas das obras dos homens ilustres, o livro é pesado e, por vezes, comum.

Segundo o jornalista, haveria tanta presença de espíritos na obra de Kardec quanto no armário dos Davenport.

Nem o pseudônimo adotado pelo professor Rivail foi poupado de críticas. De acordo com o colunista, o autor de O curso prático e teórico de aritmética e outras obras didáticas “faria muito melhor” se usasse o nome de batismo.

Kardec reservou tempo para responder ao ataque público e, logo no início, demonstrou estar bem-informado sobre seu adversário:

Permita-me perguntar-te por que assinas teus artigos como Bertram, em vez de Eugène Landois — o que nada depõe contra suas qualidades pessoais, pois sabemos que és o principal organizador da creche da Saint-Josse-Tennoode.

O que importava — apesar de todas as críticas — era a constatação de que, como gostava de repetir, o espiritismo estava no ar e, de vez em quando, arrebatava adversários ferrenhos como o sr. Bertram.

No jornal Le Siècle, por exemplo, o jornalista Louis Jourdan — aquele que, quatro anos antes, exigira respeito à sua falta de fé — assinou, no mesmo mês, uma carta de despedida ao filho que acabara de morrer:

Eu te sinto vivo, de uma vida superior à minha, meu Prosper; e quando soar a minha última hora, eu me consolarei em deixar os que amamos juntos, pensando que vou encontrar-te e nos unirmos. (...)

Percebemos um ponto luminoso, para o qual marchamos resolutamente; esse ponto é aquele onde vives, meu filho, junto a todos aqueles que amei aqui embaixo e que partiram antes de mim para a vida nova.

Transtornado pela dor, Jourdan preferia lutar pelo direito de crer.