FAZENDO AS CONTAS
Kardec iniciou o ano de 1869 fazendo contas. Na falta de estatísticas oficiais, tentava definir o número de espíritas espalhados pelo mundo. De acordo com seus cálculos, os Estados Unidos concentrariam a maior quantidade de adeptos: cerca de 4 milhões. A Europa abrigaria um milhão de espíritas, 600 mil deles residentes na França. O total no mundo chegaria a 6 ou 7 milhões — estimava. Números que fez questão de festejar em discurso na Sociedade Espírita:
Mesmo que fosse só a metade, a história não oferece nenhum exemplo de uma doutrina que, em menos de quinze anos, reuniu tal número de adeptos, disseminados pela superfície inteira do globo.
O Brasil também integrava essas estatísticas. O Rio de Janeiro sediara, em 1865, o primeiro grupo de estudos e divulgação da doutrina espírita. Membros da colônia francesa instalada na corte, unidos a integrantes das elites e classes médias da cidade, lideravam o movimento.
A partir da farta correspondência recebida de todos os cantos, Kardec arriscava também uma espécie de censo sobre o espiritismo. A doutrina seria seguida por mais homens (70%) do que mulheres, a maioria deles instruídos, de classe média, com baixo número de iletrados. Entre os profissionais liberais, os médicos homeopatas eram maioria, seguidos de perto por engenheiros e professores. Em seguida, ao lado de representantes de consulados, padres católicos! Os sempre temidos — e combativos — jornalistas ocupavam a oitava posição no ranking de adeptos do espiritismo, lado a lado com arquitetos, pintores e cirurgiões.
Outro número curioso — ou provocativo — também despontava deste censo informal: 50% dos seguidores espíritas seriam “católicos romanos livres-pensadores, não ligados ao dogma”.
O jornal parisiense La Solidarité deu crédito e destaque a estes percentuais na edição de 13 de janeiro de 1869. Kardec festejou o tratamento respeitoso dado pelo periódico a seus números. O texto soava como música a seus ouvidos já fatigados:
Há espíritas em todos os graus da escala social. A grande maioria dos espíritas se encontra entre pessoas esclarecidas e não entre os ignorantes. O espiritismo se propagou por toda a parte, de alto a baixo na escala social.
Outros três pontos fundamentais defendidos — ou assumidos — por Kardec ao analisar a propagação do espiritismo também ecoavam em La Solidarité:
A aflição e a infelicidade são os grandes recrutadores do espiritismo, em consequência das consolações e esperanças que ele dá aos que choram e lamentam.
O espiritismo encontra mais fácil acesso entre os incrédulos em matéria religiosa do que entre as pessoas que já têm uma fé consolidada.
Logo depois dos fanáticos dogmáticos, os mais refratários às ideias espíritas são as criaturas cujos pensamentos estão concentrados na posse e nos prazeres materiais.
Kardec ficou impressionado com o artigo. Poucas vezes a imprensa dera tanto crédito a suas teses, esperanças e impressões. O jornal só não avalizou todos os números divulgados pelo codificador porque os considerou modestos. Kardec tinha se esquecido de incluir a Ásia em suas contas:
Se pelo termo espírita entendem-se as pessoas que creem na vida de além-túmulo e nas relações dos vivos com as almas dos mortos, há que contá-los por centenas de milhões. A crença nos espíritos existe em todos os seguidores do budismo e pode-se dizer que ela constitui a base de todas as religiões do extremo Oriente.
Kardec, é claro, concordava com cada linha desta retificação. O texto era um alento para ele, ainda soterrado pela avalanche de cartas a responder e ansioso por dar início à transição tão planejada.
Em abril de 1869, publicou na Revista Espírita uma nota intitulada “Aviso muito importante”. Chegara a hora.
A partir de 1º abril, o escritório de assinaturas e de expedição da revista passaria a funcionar em novo endereço: rua de Lille, número 7. Esta seria também a sede do mais novo estabelecimento ligado à Sociedade Espírita de Paris: a Livraria Espírita, entidade sem fins lucrativos, administrada por espíritas, cuja renda se reverteria integralmente à Caixa Geral do Espiritismo.
Neste mesmo dia, 1º de abril, Kardec e Amélie se mudariam, finalmente, para a Villa Ségur, número 39, logo atrás da rua des Invalides. Ali seriam erguidos o asilo, a biblioteca e o museu tão sonhados... Seriam.