DEPOIS DA MORTE
As semanas seguintes foram conturbadas. Para conduzir a Sociedade de Paris, foi eleita uma comissão com sete representantes aprovados por Amélie: Levent, Malet, Canaguier, Ravan, Desliens, Delanne e Tailleur passaram a se desdobrar para dar conta de todas as tarefas acumuladas, sozinho, por Kardec. Malet assumiria a presidência da Sociedade, mas o comando — de fato — seria exercido pela viúva.
Na Revista Espírita de maio de 1869, um artigo intitulado “Caixa geral do espiritismo — decisão da senhora Allan Kardec” não deixava quaisquer dúvidas quanto ao poder dela à frente do espólio do marido.
Como “única proprietária legal das obras e da revista”, segundo definição da publicação, Amélie anunciou as primeiras decisões — algumas delas divergentes do projeto de transição proposto por Kardec.
Em vez de doar toda a renda da venda dos livros à Caixa Geral do Espiritismo, ela preferiu destinar ao fundo, uma vez por ano, o “excedente dos lucros provenientes dos livros espíritas e das assinaturas da revista”. Um tesoureiro ficaria responsável pela administração da verba, sob a supervisão da Comissão Diretora.
A inauguração do Museu Espírita também teria de esperar. Oito quadros de grandes dimensões fariam parte do acervo inicial, de acordo com os planos de Kardec: retratos do mestre, cenas da vida de Joana d’Arc e telas inspiradas em Jesus e seus apóstolos. Amélie, porém, decidiu guardar, num depósito, seis destas telas até providenciar um local apropriado, “comprado com os fundos provenientes da Caixa Geral”.
A viúva passou a fiscalizar também a qualidade e a consistência dos artigos a serem publicados na Revista Espírita. Cada texto deveria ser aprovado pela Comissão Central e sancionado por ela — uma decisão que incomodara muitos dos antigos colaboradores de Kardec.
O que ele, Kardec, teria a dizer sobre estes novos rumos? Alguma mensagem específica à sua mulher e aos companheiros de doutrina, enviada através dos médiuns da Sociedade? Algum novo conselho sobre os caminhos a seguir ou evitar nesta luta diária pela divulgação do espiritismo?
As primeiras mensagens do mestre demorariam a chegar, e só viriam à tona no segundo semestre de 1869, nas páginas da Revista Espírita. Nada muito específico nem prático:
— Há muitos séculos as humanidades prosseguem de maneira uniforme a sua marcha ascendente através do espaço e do tempo. Há universos e mundos, como povos e indivíduos...
Nenhuma revelação sobre a vida nova no além. Nenhum comentário pessoal. Nenhuma manifestação de saudade nem de arrependimento.
A julgar por um dos trechos publicados, Kardec preferia, depois de morto, manter distância das decisões práticas do dia a dia:
— (...) nós vos deixamos o julgamento das próprias intenções, para só apreciarmos os resultados.
Nenhuma mensagem assinada por Kardec avalizaria — ou renegaria — outra decisão tomada pelo comitê e aprovada por Amélie: a de transferir, em março de 1870, seus despojos mortais para o Père-Lachaise, o cemitério de Balzac, Chopin, Molière, Proust e outras celebridades em Paris. A simplicidade do túmulo original daria lugar a um mausoléu imponente — ou melhor, a um dolmen —, com direito a busto de bronze do homenageado, esculpido pelo premiado artista Charles-Romain Capellaro.
Kardec teria aprovado este projeto? Em artigo na Revista Espírita, publicado em junho de 1869 sob o título “Pedra tumular do Sr. Allan Kardec”, o redator anônimo deu a resposta:
É bem evidente para nós, como para todos os que o conheceram, que o sr. Allan Kardec, como espírito, não se interessa de modo algum por uma manifestação deste gênero, mas o homem se apaga — neste caso — diante do chefe da doutrina.
O importante, segundo os projetistas do mausoléu, seria consagrar aos restos mortais de Kardec um “monumento imperecível”.
Duas inscrições gravadas no granito homenageavam a trajetória do professor cético, discípulo de Pestalozzi, que mudara de vida e de nome para dar voz aos espíritos.
Na face dianteira do pedestal — logo após a definição “fundador da filosofia espírita” —, uma sequência de frases que Hippolyte Léon Denizard Rivail costumava repetir aos alunos: “Tout effet a une cause. Tout effet intelligent a une cause intelligente. La puissance de la cause est en raison de la grandeur de l’effet.” (Em tradução livre: “Todo efeito tem uma causa. Todo efeito inteligente tem uma causa inteligente. O poder da causa corresponde à grandeza do efeito.”)
E na borda frontal do granito, um resumo da essência da doutrina: “Naitre mourir renaitre encore et progressser san cesse. Telle est la loi.” (“Nascer, morrer, renascer ainda e progredir sem cessar. Tal é a lei.”)
Em pouco tempo, o túmulo passaria a atrair visitantes de todo o mundo, inclusive do Brasil, país que mereceu destaque especial na Revista Espírita cerca de sete meses após a morte de Kardec. Na edição de outubro, um artigo festejava o lançamento, em julho de 1869, do primeiro periódico dedicado à doutrina espírita em terras brasileiras: o Echo d’Além Túmulo, jornal bimestral, com sessenta páginas, editado em Salvador, na Bahia, sob a direção do abolicionista Luiz Olympio Telles de Menezes:
É necessário uma grande coragem, a coragem da opinião, para lançar num país refratário como o Brasil um órgão destinado a popularizar os nossos ensinamentos.
Era impossível imaginar, no fim do século XIX, que um país tão católico se tornaria, no século seguinte, a capital do espiritismo no mundo, berço de um dos discípulos mais devotados de Allan Kardec: Chico Xavier, o médium que escreveu mais de quatrocentos livros e renegou a autoria — e os direitos autorais — de todos eles. “Eu não escrevi nada. Eles, os espíritos, escreveram”, repetiria até morrer, aos 92 anos, na cama estreita de seu quarto acanhado na cidade de Uberaba, em Minas Gerais, admirado por milhões de brasileiros e atacado por outros tantos.
Difícil prever também, naquela época, em meio ao luto pela morte de Kardec e às incertezas sobre sua sucessão, o quanto a doutrina sofreria perdas e abalos, na Europa e nos Estados Unidos, sem a vigilância e a militância do mestre.
Seis anos depois de morrer, Kardec estaria no centro de uma nova polêmica, mas sem direito à defesa, no episódio conhecido como o “processo dos espíritos”.