KARDEC NO BANCO DOS RÉUS
Em janeiro de 1875, a Revista Espírita, sob a direção de Pierre-Gaëtan Leymarie e supervisão de Amélie, abriu suas páginas a uma série de “fotografias de espíritos”, produzidas em estúdio pelo fotógrafo Édouard Buguet e pelo jovem médium americano Alfred Firman.
Uma das fotos exibia a viúva Amélie, com expressão serena, sentada numa cadeira. Ao fundo, a imagem diluída do suposto espírito de Kardec, mesma expressão sisuda das fotos antigas, com um cartão preenchido com letras miúdas, quase ilegíveis, diante dele. Para os observadores céticos, não havia dúvidas: montagem. E não era a única.
Muitos familiares saudosos recorriam à câmera de Buguet — e aos “fluidos magnéticos” de Firman — para tentar captar a presença no estúdio de seus entes queridos mortos. Quarenta por cento dos clientes, segundo cálculos do próprio Leymarie, voltavam para casa com os flagrantes e — o mais importante — com a evidência da sobrevivência do espírito. Cada fotografia era vendida por 75 cêntimos, uma pechincha, mas não para a justiça.
O caso chegou nos tribunais no dia 16 de junho de 1875. Leymarie e seus cúmplices foram acusados de fraude pelo juiz Millet. Sob pressão, Buguet não demorou a confessar suas artimanhas: entrevistava as famílias para colher dados sobre a aparência dos mortos — altura, idade, cores de cabelo e olhos — e, com ajuda de bonecos, silhuetas em papelão e negativos com semblantes semelhantes às descrições, compunha seus fotogramas.
Quanto a Leymarie, seria seu cúmplice ou sócio?
Diante de um juiz incrédulo, garantiu Buguet:
— Não. Ele não sabia de nada.
O sucessor de Kardec à frente da revista entrou no tribunal algemado — para alegria dos adversários do espiritismo e júbilo da imprensa — e se recusou a confessar o crime para se livrar da cadeia. Foi condenado a um ano de prisão e ao pagamento de quinhentos francos de multa — mesma pena de Buguet — após sofrer um interrogatório demolidor.
O juiz se recusou a dar crédito às testemunhas que juraram reconhecer, nas fotos do além, as imagens de seus mortos queridos, e atribuiu ao desespero estas declarações de fé. Ao longo dos interrogatórios, o nome de Allan Kardec foi citado pelo magistrado inúmeras vezes — e nunca com respeito.
Era como se a doutrina estivesse no banco dos réus. Até sobre as vendas das obras de Kardec o juiz pediu detalhes. Leymarie tinha as contas atualizadas: O livro dos espíritos já estava na vigésima edição, O livro dos médiuns, na décima, e O evangelho segundo o espiritismo, na sétima.
Mas o pior ainda estava por vir. Aos 80 anos, Amélie Boudet foi chamada a depor como testemunha. No centro do inquérito, Allan Kardec.
O juiz então perguntou, com ironia:
— Onde foi que ele arranjou este nome?
Amélie nem teve tempo de responder, pois o juiz já afirmava:
— Conhecemos as origens dos livros do seu marido. Ele os retirou principalmente do Grand Grimoire.
A viúva disse desconhecer a tal publicação — um livro de magia negra — e repetiu o que todo espírita sabia: as obras de Kardec seriam resultado de consultas a espíritos através de médiuns.
O juiz deu de ombros e passou a questionar a decisão de a viúva enterrar o próprio marido não com o nome de batismo, mas com o pseudônimo retirado, segundo ele, do nome de uma floresta da Bretanha.
Amélie reagiu:
— Não se deve brincar com este assunto.
E o magistrado foi além, acirrando o diálogo:
— Não gostamos de gente que toma nomes que não lhe pertencem, de escritores que pilham obras antigas e que enganam o público.
— Todos os literatos usam pseudônimos. Meu marido jamais pilhou coisa alguma.
— Ele é um compilador, não um literato. Era um homem que praticava a magia negra ou branca. Vá sentar-se!
Se Kardec estivesse ali, corria o risco de ser preso. Mas estava bem longe, e já não mandava notícias do além.
Quem quisesse saber mais sobre ele precisaria recorrer a seus arquivos.