MELHOR REJEITAR 10 VERDADES

Com cadernetas de couro sempre à mão e lápis afiados a postos nos bolsos do colete, Rivail passou a anotar com letra miúda — que, muitas vezes, só Amélie, além dele, conseguia decifrar — impressões e interrogações sobre os diálogos com Zéfiro e outros visitantes invisíveis na casa das irmãs Baudin.

Eram muitas as perguntas ainda sem resposta. Estariam essas inteligências na humanidade ou seriam sobre-humanas? As irmãs Baudin captariam no ar — no inconsciente dos vivos — ou no além as mensagens atribuídas aos mortos? Em outras palavras: estariam os mortos vivos?

Estas eram as questões cruciais capazes de tornar muito menos penosa a vida no século XIX.

O perigo e a desgraça estavam à espreita por toda a França. A capital cultural do mundo, cenário da Revolução Francesa, enfrentava tempos sombrios. A taxa de mortalidade em Paris era a mais elevada entre os principais centros urbanos da Europa. Um terço de todos os nascimentos na capital eram ilegítimos, e um décimo dos recém-nascidos eram abandonados no hospital de enjeitados, onde 60% deles morriam antes de completar um ano.

Em meados do século XIX, um em cada dez parisienses dependia da assistência social ou da caridade para sobreviver. E o rio Sena, tão romântico, era palco de um sexto de todos os suicídios da França.

O romancista Honoré de Balzac, cada vez mais lido e admirado na Europa, retratava nos volumes de sua Comédia humana, lançada em 1842, o abismo entre os ricos e os pobres em Paris. Em A menina dos olhos de ouro, descrevia assim a aparência dos moradores empobrecidos da cidade:

Seus rostos — abatidos, amarelados, castigados pelas intempéries (...), contorcidos, desfigurados — eram mais máscaras do que rostos, máscaras de fraqueza, máscaras de força, máscaras de desdita, máscaras de prazer, máscaras de hipocrisia.

Onde estava o Deus misericordioso nisso tudo? Qual o sentido da vida em meio a tanta miséria? Como aceitar a injustiça de se nascer condenado à morte?

Era com ceticismo sim — e com uma imensa esperança também — que Rivail lutava para decifrar a lógica por trás do véu que se erguia em torno das mesas girantes e dos cestos escreventes. Para filtrar as informações do além, tentou agir como um legítimo discípulo de Pestalozzi: “Observar, comparar e julgar, essa a regra que constantemente segui.”

A cada sessão na casa das irmãs adolescentes, as perguntas ficavam mais complexas. Rivail colocava à prova os espíritos — dos vivos ou do além... Como ter uma confirmação da existência de Deus? O espaço universal é um todo infinito ou delimitado? A separação da alma e do corpo é dolorosa?

O professor passou a levar para as reuniões semanais perguntas como essas. Na pauta do longo inquérito, questões sobre a vida e a morte, a moral e a psicologia, e sobre os bastidores do mundo invisível.

Para tristeza de boa parte da antiga plateia de Zéfiro, as conversas com o além foram se tornando cada vez menos pessoais. Com ou sem cesto de bico, Caroline e Julie passaram a intermediar diálogos como este, conduzido por Rivail:

— Os espíritos possuem uma forma determinada, delimitada e constante?

— A vossos olhos não; aos nossos, sim. Ela será, se imagem quiserdes, flama ou clarão ou centelha.

A cada resposta mais elaborada vinda das mãos ou do cesto das jovens irmãs, o professor ficava mais esperançoso:

O simples fato de se comprovar a comunicação dos espíritos, dissessem eles o que dissessem, provaria a existência do mundo invisível.

Ficava também preocupado com tanta responsabilidade:

Compreendi antes de tudo a gravidade da exploração que ia empreender; percebi, naqueles fenômenos, a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro da humanidade, a solução que eu procurara em toda a minha vida.

O problema era a morte e a solução, a vida em outros planos, invisíveis aos simples mortais (ou imortais?):

Era, em suma, toda uma revolução nas ideias e nas crenças; fazia-se mister, portanto, andar com a maior circunspecção e não levianamente; ser positivista e não idealista, para não me deixar iludir.

Testemunhos como os de Victor Hugo — e o apoio permanente de Amélie — estimulavam Rivail a ir em frente. E sua convicção aumentava com as notícias de que as mesmas informações sobre a dinâmica de mundos invisíveis começavam a se revelar em outras sessões de mesas girantes mundo afora, conduzidas ou testemunhadas por “pessoas sérias, honradas, instruídas e dignas”.

Quanto mais perguntas lançava ao invisível e mais respostas consistentes obtinha do “lado de lá”, mais Rivail se irritava com o tratamento dado pela ciência aos novos fenômenos. Faraday e Chevreul, por exemplo, não poderiam ter chegado tão rápido a conclusões tão definitivas sobre a inexistência de forças invisíveis nas manifestações das mesas. Faltavam a estas pesquisas, supostamente científicas, três qualidades básicas: continuidade, regularidade e isenção.

Rivail protestava e avançava, fiel a uma linha de conduta radical: “Melhor rejeitar dez verdades como sendo mentiras do que aceitar uma única mentira como sendo verdade.”