Pelas regras da ditadura militar brasileira, a cada quatro anos um consenso de generais, almirantes e brigadeiros fixava-se num general do Exército – sempre de quatro estrelas –, e o escolhido estava automaticamente sagrado ditador temporário com o título de presidente da República. Era a chamada eleição pelos altos comandos.
Para suceder o general Médici – o terceiro general-presidente da série iniciada em 1964 – foi escolhido e anunciado, em junho de 1973, o general Ernesto Geisel. Apenas devia submeter-se a dois ridículos faz de conta. Na primeira simulação, parlamentares e representantes estaduais da Arena, o partido oficial, solenemente e por meio do voto secreto, escolheriam – sem ter outra alternativa – o nome do general já publicamente nomeado. Na segunda formalidade, os partidários do governo, amplamente majoritários, repetiriam esse mesmo gesto no Colégio Eleitoral. Os representantes da oposição minoritária, se desejassem, marcariam sua inconformidade inútil votando em branco ou, simplesmente, ausentando-se.
O Colégio Eleitoral era constituído pela totalidade dos 66 senadores, 310 deputados e 132 representantes das maiorias das assembleias legislativas, seis por estado. Total: 508 votos.
O placar já estava escrito.
O governo, por meio do partido oficial, contava com 223 deputados, 59 senadores e controlava as assembleias legislativas de 21 dos 22 estados. Ou seja, contava com 408 dos 508 votos do Colégio Eleitoral.
Sobravam para a oposição, no Movimento Democrático Brasileiro (MDB), apenas cem votos, um quinto do Colégio Eleitoral. Eles resultavam da soma dos seis votos de uma única assembleia legislativa, a do estado da Guanabara, de 87 deputados federais e de sete senadores.
Como vigorava o princípio legal da fidelidade partidária, o representante de um partido não podia votar no outro, sob pena de nulidade do voto e perda do mandato.
Portanto, a apresentação de um candidato pela oposição era pura perda de tempo. Sem qualquer chance, já que os deputados da maioria governista não tinham liberdade para votar na oposição. No máximo, a participação do MDB no Colégio Eleitoral serviria para um protesto, ou seria interpretada pela crítica como servil figuração destinada a alimentar a força ditatorial.
A primeira ação política da oposição que utilizou estrategicamente as regras da ditadura transformou em refrão de protesto uma voz de comando de general romano. Ulysses Guimarães declamou-a em versos:
“Navigare necesse, vivere non necesse”.
Pompeu (106-48 a.C.) gritou-a a marinheiros apavorados com uma ameaça de temporal. O episódio está descrito nas Vidas paralelas, de Plutarco. Pompeu era o mais popular guerreiro de Roma e sua biografia aparece em confronto com a vida de Agesilau, o inimigo público espartano.
Plutarco escreveu em grego, mas a frase é conhecida por sua versão latina. Assim está no brasão de Hamburgo, cidade portuária alemã, antiga sede da Liga Hanseática.
Em português, popularizou-se através das Palavras de pórtico, texto em prosa de catorze linhas encontrado postumamente entre os papéis do poeta Fernando Pessoa. Sem data ou assinatura, só foi publicado em 1960, 25 anos após a sua morte:
“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: Navegar é preciso, viver não é preciso. Quero para mim o espírito dessa frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto em gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenham de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isto tenha que perdê-la como minha. Cada vez mais assim penso. Cada vez mais, ponho na essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade. É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa raça”.
Mas não foi Fernando Pessoa a fonte de Ulysses; nem Camões, equívoco em que incidiram muitos desavisados, porque no discurso também é citada a figura camoniana do pessimista e agourento Velho do Restelo, que permanecia à margem do Tejo prevendo o malogro dos navegadores que partiam.
Embora citando expressamente Pessoa, a colheita direta de Ulysses foi feita em Caetano Veloso, no fado Argonautas, que estava nas paradas de sucesso das emissoras de rádio. Sem confessá-lo e por não ter conseguido localizar de memória as origens clássicas da citação, Ulysses apelou para a forma ritmada e o tom épico dos versos de Caetano:
“Navegar é preciso.
Viver não é preciso”.
Ulysses Guimarães falava no plenário da Câmara dos Deputados, onde se realizava a convenção do MDB, mas apenas fingia dirigir-se aos convencionais. Orientado pelos técnicos da TV Nacional, dirigia olhar e gestos a um ponto nas galerias assinalado por uma luzinha vermelha. Era onde estava a câmara de televisão que captava sua imagem para transmiti-la ao vivo, para todo o Brasil, via Embratel, conforme inusitado contrato, pago antecipadamente, negociado e assinado pelo secretário-geral do partido, deputado Tales Ramalho.
O discurso era sua primeira manifestação como candidato das oposições à Presidência da República nas eleições indiretas marcadas para 15 de janeiro de 1974.
Naquele sábado, 22 de setembro de 1973, o duro e desconfiado presidente Médici parecia ter fraquejado. Ele sempre jogava na cara dos próprios civis do partido oficial que era um chefe militar em função de comando. O que inspirou o coronel Otávio Costa na redação do primeiro discurso do novo presidente numa convenção da Arena, pouco depois de empossado. Num trecho, que Médici gostou e leu com grande ênfase, havia um aviso: que não confundissem com habilidade de político seus gestos de comando, porque estava ali era como general de exército...
Após longa e penosa série de démarches, o secretário-geral do MDB conseguira convencer auxiliares próximos do presidente de que o governo só colheria vantagens ao permitir aquela transmissão. Sem ter nada a perder, porque o candidato oposicionista não ameaçava a vitória do general Ernesto Geisel, já proclamado futuro presidente. Com o gesto, o governo mostraria benevolência, tolerância e, sobretudo, respeito aos direitos da oposição minoritária. Era o jus murmurandi, como a candidatura do MDB era classificada pelo ministro Leitão de Abreu, chefe da Casa Civil e a voz civil mais influente junto ao presidente.
A permissão da transmissão do discurso de Ulysses fora apresentada ao presidente Médici como genial golpe de astúcia política. “Eles vão trabalhar de graça para a imagem dos governos revolucionários”, disseram-lhe. “Eles morderam a nossa isca, vão nos oferecer o antídoto contra o maior veneno que destilam contra nós: a queixa de que lhes falta liberdade para fazer política.”
Por intermédio de um funcionário autorizado da Agência Nacional, Maurício Vaitsman, velho jornalista carioca, conhecido nos anos 60 por seu best-seller Quanto custou Brasília e que cumpria ordens de Leitão de Abreu, o MDB solicitou a cessão de equipamentos da TV Nacional, a emissora estatal de Brasília. Eles eram indispensáveis à viabilização da transmissão da solenidade de encerramento da convenção nacional do partido. Proprietária do único caminhão de externas com equipamento de micro-ondas disponível na capital, a TV Nacional transmitiria os sinais do Congresso para os seus estúdios, que por sua vez os repassariam à Embratel. As imagens seriam liberadas às duas redes, Globo e Tupi, e às estações independentes que as desejassem no país inteiro, todas devidamente contactadas pelo MDB.
A colaboração da TV Nacional nada tinha de excepcional. Normalmente, essas mesmas facilidades eram concedidas à Arena. Estendidas ao MDB, nada mais significavam do que a prática da isonomia, de grande efeito psicológico na amedrontada área política. A intervenção da TV Nacional – e da Embratel, cujos canais de satélite também seriam utilizados – tranquilizaria os concessionários de canais privados. A cumplicidade da TV Nacional e da Embratel os isentaria de qualquer futura alegação de ação oposicionista.
Embora sem manter contatos diretos com o MDB, o chefe da Casa Civil, João Leitão de Abreu, coordenou a distância cada item da operação e se responsabilizou pelas autorizações ao diretor da TV Nacional e ao presidente da Embratel, para que promovessem o indispensável tráfego das imagens da convenção do MDB. Para cada uma dessas operações, foi solicitado um pedido formal do MDB, prontamente redigido e assinado por Tales.
Os serviços das empresas estatais envolvidas na transmissão foram pagos total e antecipadamente pelo MDB, conforme as tabelas e mediante recibos. Mas os lucros visados pelo governo eram outros. Nos seus estertores o governo Médici se incomodava com os efeitos sobre sua imagem dos sinais liberalizantes emitidos diariamente pelos escritórios do Largo da Misericórdia, no Rio, onde o general Geisel trabalhava na organização do seu futuro governo, tendo como principal colaborador – seria melhor dizer, parceiro – o general Golbery do Couto e Silva, por quem o presidente Médici alimentava antiga antipatia e muitas mágoas pessoais. Queixava-se, por exemplo, de que em 1967, na virada do governo Castelo Branco para o governo Costa e Silva, Golbery deixara de lhe passar a chefia do SNI, onde o sucederia. Médici e sua equipe tinham bons motivos para acreditar, como de fato aconteceu, que o futuro pesidente Geisel estabeleceria uma nítida linha divisória entre o seu governo, especialmente em matéria institucional, e o de seu antecessor. Ora, Médici presumia-se o responsável pela indicação de Geisel e se considerava traído pela fixação tão antecipada desse contraste em que passaria à História – como aconteceu – como chefe de um governo atrabiliário, enquanto Geisel seria o presidente que pôs fim à tortura e à censura.
Às três da tarde em ponto – como estava combinado e de acordo com as negociações, que consideraram o aviso de que na TV tudo é cronometrado, com hora para começar e terminar –, o rosto de Ulysses Guimarães, presidente do MDB e candidato da oposição, deveria surgir simultaneamente nos vídeos do país inteiro. Pelo acerto, o discurso duraria vinte minutos. E durou. O MDB honrou integralmente a sua parte, cumprida por Ulysses, que começou na hora e obedeceu o tempo de duração estabelecido para seu discurso. Mas a TV não o transmitiu.
O próprio general Médici passava os fins de semana na Granja do Riacho Fundo, sua residência presidencial preferida, onde construíra um galpão crioulo para seus churrascos gaúchos. Naquele começo de tarde, acompanhado do capitão Pachally, seu ajudante de ordens preferido, estava a postos diante da TV. Esperou em vão.
Ulysses olhava distante, como se estivesse fixando a câmara que o focalizava, instalada na galeria do plenário e captando sua imagem através de zoom. Esperou que ajeitassem o microfone e acenou teatralmente à plateia. A convenção aplaudia de pé. A TV captou a aclamação entusiástica, cadenciada,
“Um, dois, três
quatro, cinco mil,
Ulysses Guimarães
presidente do Brasil”.
Embora tudo já estivesse acertado, algo estranho começou a acontecer com os planos da transmissão desde o fim do expediente de sexta-feira, a menos de 24 horas da convenção do MDB. O ministro Leitão de Abreu chamou o secretário de Imprensa, Carlos Felhberg, e determinou-lhe expressamente que obtivesse, sem falta, a publicação nos jornais de sábado de uma nota oficial do Palácio do Planalto esclarecendo que a TV Nacional havia atendido a requerimento do MDB para cessão do seu equipamento, mas que a transmissão ocorreria “sem qualquer participação da Agência Nacional”. O eficiente Felhberg ligou ele próprio para as redações e sucursais em Brasília dos grandes jornais e deu ênfase a um apelo para a publicação daquela nota no dia seguinte. Felhberg não sabia por que, mas havia entendido que “a nota é muito importante, não deixem de dar”, como recomendava aos chefes de sucursal. Preocupado, voltou a ligar no fim da noite para certificar-se de que sua nota havia sido enviada aos grandes jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo.
A providência era um sinal de que o sistema de repressão, despertado pelo noticiário, reagira energicamente à ideia da transmissão. Citado como “comunidade de informações”, esse sistema, invisível apenas para quem não queria observá-lo, mas acintoso e exibicionista de seu poder ilimitado, comandava ostensivamente o governo Médici. Percebendo os riscos da concessão, Leitão de Abreu preparou seu recuo, lavou as mãos e deixou a solução final para a repressão. A nota que saiu nos jornais de sábado era o seu álibi.
Indiferente e desavisado das mudanças nas disposições do governo, até mesmo por que o MDB, até o fim da ditadura, não manteve canais expeditos com os núcleos secretos do regime, Ulysses subiu à tribuna e começou seu discurso, certo de que estava sendo visto e ouvido pelo Brasil de norte a sul. Sua performance foi extraordinária.
Sem titubeios, leu o texto que seria lembrado como seu mais belo e importante discurso. Existem os originais desse discurso, redigido à mão, bem ao seu estilo. Foi totalmente concebido e escrito por ele, sem colaboradores ou revisores. Frases sincopadas, colocadas no papel só depois de ditas em voz alta, conforme a regra em que sempre acreditou e que atribuía ao famoso advogado francês maitre Maurice Garçon. Um bom discurso parte de uma boa ideia, bem expressa, no princípio, com um recheio acidental, e um final dramaticamente inesquecível.
Os três primeiros parágrafos pareciam os termos de um silogismo:
“O paradoxo é o signo da presente sucessão presidencial brasileira.
O anunciado como candidato, em verdade, já é o presidente. Não aguarda a eleição, e sim a posse.
Na oposição também não há candidato, pois não pode haver candidato a lugar de antemão provido. A quinze de janeiro próximo, com o apelido de eleição, o Congresso Nacional será palco de cerimônia de diplomação, na qual senadores, deputados federais e estaduais da agremiação majoritária certificarão investidura outorgada com anterioridade”.
A projetada e contratada rede nacional de TV fora reduzida a uma transmissão em circuito fechado. Os técnicos das redes de TV e da Embratel assistiam ao discurso como autômatos controladores da qualidade de imagem e som, que estavam entregando e recebendo em perfeitas condições para transmissão. Daí para a frente, o problema não era mais deles, mas de um desconhecido que estava nos estúdios da TV Nacional, em Brasília, justamente para tomar a decisão de mandar para o ar o discurso de Ulysses. Ou não.
Com a desenvoltura de quem sabia muito bem o que fazer, o coronel Ronaldo – os operadores nunca souberam seu sobrenome, nem se era apenas mero codinome, ou mesmo se era coronel – chegou à paisana e acompanhou em silêncio a gravação, pois a determinação de que as imagens não iriam ao ar ao vivo já havia sido tomada pela manhã.
No final do discurso de Ulysses, o coronel Ronaldo tirou da maleta tipo 007 um telefone sem fio, como se fosse um walkie-talkie – na realidade, um telefone celular, mas que naquela época era exclusivo dos serviços secretos –, digitou um número e afastou-se para falar sem ser escutado pelos operadores.
Nunca se soube com exatidão o motivo do cancelamento da transmissão. O MDB não recebeu explicações, nem pediu seu dinheiro de volta. Nem mesmo o próprio Médici foi informado com detalhes sobre o que aconteceu. Disseram-lhe apenas o essencial: o deputado Ulysses Guimarães havia sido insolente, traíra a boa vontade do governo e a transmissão fora cancelada.
Eis precisamente o que aconteceu. As imagens foram captadas no Congresso, a Embratel as transmitiu para todo o Brasil, conforme o contrato e pagamento antecipado feito pelo MDB; as emissoras de TV as receberam e gravaram. Só em Joinville, Santa Catarina, uma estação colocou o discurso no ar, por inadvertência, já que havia uma recomendação apócrifa, embora transmitida por canal oficial, de que se esperasse um ok de Brasília para início da transmissão. Esse sinal liberatório jamais chegou e a transmissão isolada em Santa Catarina não foi punida.
O jornal O Estado de S. Paulo conseguiu fazer uma versão detalhada desses acontecimentos, apurada e escrita pelo diretor da sucursal de Brasília, Carlos Chagas. Mas a censura proibiu a publicação. Uma cópia desse texto foi guardada por Ulysses, entre seus papéis pessoais.
Como aconteceu sempre durante a ditadura, os fatos consumados se esgotavam em si mesmos. Podiam ser arbitrariedades da censura, assassinatos políticos ou crimes comuns. Como o da menina Ana Lídia, de Brasília, um hediondo mistério policial que ficou insolúvel e sobre o qual os jornais receberam ordens de silenciar, tão logo apareceu como suspeito o filho do então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid. Da mesma forma, o cancelamento da transmissão já autorizada e paga do discurso do candidato da oposição à Presidência da República morreu como assunto e preocupações. Oficialmente, houve uma falha técnica.
Depois de ler nos jornais o discurso de Ulysses, Médici comentou: “Crítica direta, desde que respeitosa, ainda vai, mas ironia, não aceito. O discurso é odioso”. Na opinião de Médici, Ulysses não se comportara à altura da regalia que lhe era oferecida. O presidente estava irritado com a propaganda intensiva da oposição, usando a inócua candidatura presidencial de Ulysses:
“O Movimento Democrático Brasileiro não alimenta ilusões quanto à homologação cega e inevitável, imperativo da identificação do voto ostensivo e da fatalidade da perda do mandato parlamentar, obra farisaica de pretenso Colégio Eleitoral, em que a independência foi desalojada pela fidelidade partidária.
A inviabilidade da candidatura oposicionista testemunhará perante a nação que o sistema não é democrático (...)”.
Em seu apartamento, na Asa Norte, o pequeno e fisicamente frágil – lembrava um vietnamita – general Milton Tavares foi a primeira e decisiva instância da decisão de proibir a transmissão. Ele estava ouvindo o discurso por um canal de voz e instruiu o coronel Ronaldo para determinar a existência de falha técnica que cancelava a transmissão. O general Milton Tavares – que mais tarde comandaria o Segundo Exército em São Paulo e ordenaria os famosos voos de helicópteros sobre concentrações de grevistas no ABC – era o terrível chefe do Centro de Informações do Exército (Ciex). Cercado por um grupo de oficiais – que, com a abertura, caíram em desgraça, ainda durante a ditadura, como o coronel Etchgoyen –, centralizava a repressão política e foi definitivo na ordem fulminante para cancelar a transmissão do discurso de Ulysses: “Esse idiota não vai ao ar. Não foi ao vivo, nem vai em gravação”.
Ao saber do veredicto do chefe do Ciex, o ministro Leitão de Abreu concordou sem constrangimento: “Inimigo é inimigo. Não adianta querer mudar a natureza das coisas”.
Decorridas 48 horas da convenção, o essencial da mensagem do presidente do MDB estava nos jornais. Ulysses, cunhando a expressão “anticandidato”, havia conseguido uma forma contundente de denúncia. Iria percorrer o país lançando um brado tão forte quanto denunciante:
“Navegar é preciso
Viver não é preciso”.
Às nove da manhã de 24 de setembro, como acontecia todas as segundas-feiras, o presidente Médici subiu com toda a solenidade a rampa do Palácio do Planalto, em meio a um caprichado cerimonial militar, criado justamente durante seu governo. Recebido por ministros e assessores especiais, estes o seguiam ao gabinete do segundo andar. Reviviam a tradição dos quartéis de cumprimentar o comandante no início do expediente. Habitualmente, para atender ao assunto mais estimado do chefe, discutiam-se os resultados do futebol da véspera. Mas, naquele dia, o tema foi a frustração da esperada transmissão da convenção do MDB. Um coronel ironizou:
“Quer dizer que se não tivesse havido a tal falha técnica e caído a transmissão... (risos e mais risos, puxados pelo próprio Médici) teríamos engolido muito mais do que essa própria candidatura inútil já representa? E os malandros pretendiam usar a Embratel, obra dos governos revolucionários que eles esculhambam! Como se fôssemos otários...”.
Enquanto se debochava dele no Palácio do Planalto, o discurso de Ulysses repicava forte, graças aos trechos publicados pelos jornais:
“Não é o candidato que vai percorrer o país. É o anticandidato, para denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição que homizia o Al-5, submete o Legislativo e o Judiciário ao Executivo, possibilita prisões desamparadas pelo corpus e condenações sem defesa, profana a indevassabilidade dos lares e das empresas pela escuta clandestina, torna inaudíveis as vozes discordantes, porque ensurdece a nação pela censura à imprensa, ao rádio e à televisão, ao teatro e ao cinema.
(...) triste tarefa esta de pregar numa república que não consulta a voz dos cidadãos e numa democracia que silenciou a voz das urnas. Eis um tema para o teatro de Bertolt Brecht, que, em peça fulgurante, escarnece do arbítrio prepotente ao aconselhar que, se o povo perde a confiança do governo, o governo deve dissolver o povo e eleger um outro.
O drama dos censores é que se fazem mais furiosos quanto mais acreditam nas verdades que censuram. E seu engano fatal é presumir que a censura, como a mentira, pode exterminar os fatos, eliminar os acontecimentos, decretar o desaparecimento das ocorrências indesejáveis.
Liberdade sem ordem e segurança é o caos. Em contraposição, ordem e segurança sem liberdade são a permissividade das penitenciárias.
Srs. Convencionais, a caravela vai partir. As velas estão pandas de sonho, aladas de esperança. O ideal está ao leme e o desconhecido se desata à frente.
No cais alvoroçado, nossos opositores, como o Velho do Restelo de todas as epopeias, com sua voz de Cassandra e seu olhar derrotista, sussurram as excelências do imobilismo e a invencibilidade do establishment. Conjuram que é hora de ficar e não de aventurar.
Mas, no episódio, nossa carta de marear não é de Camões, e sim de Fernando Pessoa ao recordar o brado:
‘Navegar é preciso.
Viver não é preciso’.
Posto hoje no alto da gávea, espero em Deus que em breve possa gritar ao povo brasileiro: Alvíssaras, meu capitão, terra à vista!
Sem sombra, medo e pesadelo, à vista a terra limpa e abençoada da liberdade”.
Ulysses explicaria que se inspirou, para a escolha do “navegar é preciso” do seu discurso, no efeito desafiador que sempre observou, desde criança, quando se cantavam os versos de Evaristo da Veiga para a melodia atribuída a D. Pedro I, para o Hino da Independência:
“Ou ficar a pátria livre,
ou morrer pelo Brasil”.
É possível que os ouvidos do censor militar também tenham estabelecido a mesma conexão de sentido e ênfase entre o “navegar é preciso”, do discurso, e o “ou ficar a pátria livre”, do hino. E o sincretismo, ensinavam os manuais da repressão, é o mais perigoso dos códigos subversivos brasileiros, desde as senzalas.
Mas a nova leitura do refrão do fado de Caetano Veloso, que a um só tempo era a voz de comando do general romano e o dilema existencial do poeta português, estava lançada como grito de guerra contra a ditadura. Sem a preciosa ajuda da TV, difundia-se celeremente como apelo à resistência política dos brasileiros. Ulysses não achava que o fenômeno fosse tão espantoso.
“As verdades mais antigas do mundo vieram da Grécia, onde não havia meios de comunicação e a palavra era transmitida de pessoa a pessoa. Uma dessas verdades, é bom lembrar, é o mito de Sísifo, ou o eterno recomeçar.”