VI Convenção Nacional do MDB, em 21/9/1973, Brasília, DF.
Discurso de Ulysses, como presidente nacional do MDB, quando da aceitação de sua candidatura a presidente da República.
O paradoxo é o signo da presente sucessão presidencial brasileira.
Na situação, o anunciado como candidato em verdade é o presidente, não aguarda a eleição e sim a posse.
Na oposição, também não há candidato, pois não pode haver candidato a lugar de antemão provido. A 15 de janeiro próximo, com o apelido de “eleição”, o Congresso Nacional será palco de cerimônia de diplomação na qual senadores, deputados federais e estaduais da agremiação majoritária certificarão investidura outorgada com anterioridade.
O Movimento Democrático Brasileiro não alimenta ilusões quanto à homologação cega e inevitável, imperativo da identificação do voto ostensivo e da fatalidade da perda do mandato parlamentar, obra farisaica de pretenso Colégio Eleitoral em que a independência foi desalojada pela fidelidade partidária.
A inviabilidade da candidatura oposicionista testemunhará perante a nação e perante o mundo que o sistema não é democrático, de vez que tanto quanto dure este, a atual situação sempre será governo, perenidade impossível quando o poder é consentido pelo escrutínio direto, universal e secreto, em que a alternatividade de partidos é a regra, consoante ocorre nos países civilizados.
Não é o candidato que vai recorrer o país. É o anticandidato, para denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição que homizia o AI-5, submete o Legislativo e o Judiciário ao Executivo, possibilita prisões desamparadas pelo habeas corpus e condenações sem defesa, profana a indevassabilidade dos lares e das empresas pela escuta clandestina, torna inaudíveis as vozes discordantes, porque ensurdece a nação pela censura à imprensa, ao rádio, à televisão, ao teatro e ao cinema.
No que concerne ao primeiro cargo da União e dos estados, dura e triste tarefa esta de pregar numa república que não consulta os cidadãos e numa democracia que silenciou a voz das urnas.
Eis um tema para o teatro do absurdo de Bertolt Brecht, que, em peça fulgurante, escarnece da insânia do arbítrio prepotente ao aconselhar que, se o povo perde a confiança do governo, o governo deve dissolver o povo e eleger um outro.
Não como campanha, pois isto equivaleria a tola viagem rumo ao impossível, a peregrinação da oposição pelo país perseguirá tríplice objetivo:
I – Exercer sem temor e sem provocação sua função institucional de crítica e fiscalização ao governo e ao sistema, clamando pela eliminação dos instrumentos e da legislação discricionários, com prioridade urgente e absoluta a revogação do AI-5 e a reforma da Carta Constitucional em vigor.
II – Doutrinar com o programa partidário, unanimemente aprovado pelo Tribunal Superior Eleitoral, conscientizando o povo sobre seu conteúdo político, social, econômico, educacional, nacionalista, desenvolvimentista com liberdade e justiça social, o qual será realidade assim que o Movimento Democrático Brasileiro for governo, pelo sufrágio livre e sem intermediários do povo.
III – Concitar os eleitores, frustrados pela interdição, a 15 de janeiro de 1974, de eleger o presidente e o vice-presidente da República, para que a 15 de novembro do mesmo ano elejam senadores, deputados federais e estaduais da oposição, etapa fundamental para atuação e decisões parlamentares que conquistarão a normalidade democrática, inclusive número para propor emendas e reforma da Carta Constitucional de 1969 e a instalação de comissões parlamentares de inquérito, de cuja ação investigatória e moralizadora a presente legislatura se encontra jejuna e a atual administração imune, pela facciosa intolerância da maioria situacionista.
Hoje e aqui serei breve.
Somos todos cruzados da mesma cruzada. Dispensável, assim, pretender convencer o convicto, converter o cristão, predicar a virtude da liberdade a liberais, que pela fé republicana pagam o preço de riscos e sofrimentos.
Serei mais explícito e minudencioso ao longo da jornada, quando falarei também a nossos irmãos postados no outro lado do rio da democracia.
Aos que aí se situaram por opção ou conveniência, apostasia política mas rebelde à redenção.
Prioritariamente, aos que foram marginalizados pelo ceticismo e pela indiferença, notadamente os jovens e os trabalhadores, intoxicados por maciça e diuturna propaganda e compelidos a tão prolongada e implacável dieta de informações.
Quando a oposição clama pela reformulação das estruturas político-sociais e pela incolumidade dos direitos dos cidadãos, sua reiteração aflige os corifeus dos poderosos do dia.
Faltos de razão e argumentos, acoimam-na de fastidiosa repetição. Condenável é repetir o erro e não sua crítica. Saibam que a persistência dos abusos terá como resposta a pertinácia das denúncias.
Ressaltarei nesta convenção a liberdade de expressão, que é apanágio da condição humana e socorre as demais liberdades ameaçadas, feridas ou banidas.
A oposição reputa inseparáveis o direito de falar e o direito de ser ouvido.
É inócua a prerrogativa que faculta falar em Brasília, não podendo ser escutado no Brasil, porquanto a censura à imprensa, ao rádio e à televisão venda os olhos e tapa os ouvidos do povo. O drama dos censores é que se fazem mais furiosos quanto mais acreditam nas verdades que censuram. E seu engano fatal é presumir que a censura, como a mentira, pode exterminar os fatos, eliminar os acontecimentos, decretar o desaparecimento das ocorrência indesejáveis.
A verdade poderá ser temporariamente ocultada, nunca destruída. O futuro e a História são incensuráveis.
A informação, que abrange a crítica, é inarredável requisito de acerto para os governos verdadeiramente fortes e bem-intencionados, que buscam o bem público e não a popularidade. Quem, senão ela, poderá dizer ao chefe de Estado o que realmente se passa, às vezes de suma gravidade, na intimidade dos ministérios e dos múltiplos e superpovoados órgãos descentralizados?
Quem, senão ela, investigará e contestará os conselhos ineptos dos ministros, as falsas prioridades dos técnicos, o planejamento defasado dos assessores? Essa a sabedoria e o dimensionamento da prática com que o gênio político britânico enriqueceu o direito público: oposição do governo de Sua Majestade, ao governo de Sua Majestade.
A burocracia pode ser preguiçosa, descortês, incapaz e até corrupta. Não é exclusivamente na Dinamarca, em qualquer reino sempre há algo de podre. Rematada insânia tornar impublicáveis lacunas, faltas ou crimes, pois contamina a responsabilidade do governante que a ordena ou tolera.
Eis por que o poder absoluto, erigido em infalível pela censura, corrompe e fracassa absolutamente.
É axiomático, para finalizar, que sem liberdade de comunicação não há, em sua inteireza, oposição, muito menos partido de oposição.
Como o desenvolvimento é o desafio da atual geração, pois ou o Brasil se desenvolve ou desaparecerá, o Movimento Democrático Brasileiro, em seu programa, define sua filosofia e seu compromisso com a inadiável ruptura da maldita estrutura da miséria, da doença, do analfabetismo, do atraso tecnológico e político.
A liberdade e a justiça social não são meras consequências do desenvolvimento. Integram a condição insubstituível de sua procura, o pré-requisito de sua formulação, a humanidade de sua destinação.
A liberdade e a justiça social conformam a face mais bela, generosa e providencial do desenvolvimento, aquela que olha para os despossuídos, os subassalariados, os desempregados, os ocupados em ínfimo ganha-pão ocasional e incerto, enfim, para a imensa maioria dos que precisam para sobreviver, em lugar da escassa minoria dos que têm para esbanjar.
Este o desenvolvimento vivificado pelas liberdades roosevelteanas, inspiradoras da Carta das Nações Unidas, as que se propõem a libertar o homem do medo e da necessidade. É o perfilhado na encíclica Populorum Progressio, isto é, prosperidade do povo, não do Estado, que lhe é consectária, cunhando seu protótipo na sentença lapidar: o desenvolvimento é o novo nome da paz.
Desenvolvimento sem liberdade e justiça social não tem esse nome. É crescimento ou inchação, é empilhamento de coisas e valores, é estocagem de serviços, utilidades e divisas, estranha ao homem e a seus problemas.
Enfatize-se que desenvolvimento não é silo monumental e desumano, montado para guardar e exibir a mitologia ou o folclore do Produto Interno Bruto, inacessível tesouro no fundo do mar, inatingível pelas reivindicações populares.
É intolerável mistificar uma nação a pretexto de desenvolvê-la, rebaixá-la em armazém de riquezas, tendo como clientela privilegiada, senão exclusiva, o governo para custeio de tantas obras faraônicas e o poder econômico, particular ou empresarial, destacadamente o estrangeiro, desnacionalizando a indústria e dragando para o exterior lucros indevidos.
É equívoco, fadado à catástrofe, o Estado absorver o homem e a nação.
A grandeza do homem é mais importante do que a grandeza do Estado, porque a felicidade do homem é a obra-prima do Estado.
O Estado é o agente político da nação. Além disso e mais do que isso, a nação é a língua, a tradição, a família, a religião, os costumes, a memória dos que morreram, a luta dos que vivem, a esperança dos que nascerão.
Liberdade sem ordem e segurança é o caos. Em contraposição, ordem e segurança sem liberdade é a permissividade das penitenciárias. As penitenciárias modernas são minicidades, com trabalho remunerado, restaurante, biblioteca, escola, futebol, cinema, jornais, rádio e televisão.
Os infelizes que as povoam têm quase tudo, mas não têm nada, porque não têm a liberdade. Delas fogem, expondo a vida ou aguardam aflitos a hora da libertação.
Do alto desta convenção, falo ao general Ernesto Geisel, futuro chefe da nação.
As Forças Armadas têm como patrono Caxias e como exemplo Eurico Gaspar Dutra, cidadãos que glorificaram suas espadas na defesa da lei e na proteção à liberdade. O general Ernesto Geisel a elas pertence, dignificou-as com sua honradez, delas sai para o supremo comando político e militar do Brasil.
A História assinalou-lhe talvez a última oportunidade para ser instituído no Brasil, pela evolução, o governo da ordem com liberdade, do desenvolvimento com justiça social, do povo como origem e finalidade do poder e não seu objeto passivo e vítima inerme.
Difícil empresa, sem dúvida. Carregada de riscos, talvez. Mas o perigo participa do destino dos verdadeiros soldados.
A estátua dos estadistas não é forjada pelo varejo da rotina ou pela fisiologia do cotidiano.
Não é somente para entrar no céu que a porta é estreita, conforme previne o evangelista São Mateus, no capítulo XXIII, versículo 24.
Por igual, é angustiosa a porta do dever e do bem, quando deles depende a redenção de um povo. Esperemos que o presidente Ernesto Geisel a transponha.
A oposição dará à próxima administração a mais alta, leal e eficiente das colaborações: a crítica e a fiscalização.
Sabe, com humildade, que não é dona da verdade.
A verdade não tem proprietário exclusivo e infalível.
Porém sabe, também, que está mais vizinha dela e em melhores condições para revelá-la aos transitórios detentores do poder, dela tantas vezes desviados ou iludidos pelos tecnocratas presunçosos, que amaldiçoam e exorcisam os opositores, pelos serviçais de todos os governos, pelos que vitaliciamente apoiam e votam para agradar ao príncipe.
A oposição oferece ao governo o único caminho que conduz à verdade: a controvérsia, o diálogo, o debate, a independência para dizer sim ao bem e a coragem para dizer não ao mal, a democracia em uma palavra.
Srs. Convencionais, do fundo do coração, digo-lhes que não agradeço a indicação que consagra minha vida pública. Missão não se pede. Aceita-se, para cumprir, com sacrifício e não proveito.
Como presidente nacional do Movimento Democrático Brasileiro, agradeço-lhes, aí sim, o destemor e a determinação com que, ao sol, aos ventos e desafiando ameaças, desfilam pela pátria o lábaro da liberdade.
Minha memória guardará as palavras amigas aqui proferidas, permitindo-me reportar às da lavra dos grandes líderes senador Nélson Carneiro e deputado Aldo Fagundes, parlamentares que têm os nomes perpetuados nos anais e na admiração do Congresso Nacional.
Significo o reconhecimento do partido a Barbosa Lima Sobrinho, por ter acudido a seu empenhado apelo.
Temporariamente deixou sua biblioteca e apartou-se da imprensa, trincheiras do seu talento e de seu patriotismo, para exercer perante o povo o magistério das franquias públicas, das garantias individuais e do nacionalismo.
Sua vida e sua obra podem ser erigidas em doutrina de nossa pregação.
Por fim, a imperiosidade do resgate da enorme injustiça que vitimou, sem defesa, tantos brasileiros paladinos do bem público e da causa democrática. Essa justiça é pacto de honra de nosso partido e seu nome é anistia.
Srs. Convencionais, a caravela vai partir. As velas estão pandas de sonho, aladas de esperanças. O ideal está ao leme e o desconhecido se desata à frente.
No cais alvoroçado, nossos opositores, como o Velho do Restelo de todas as epopeias, com sua voz de Cassandra e seu olhar derrotista, sussurram as excelências do imobilismo e a invencibilidade do establishment. Conjuram que é hora de ficar e não de aventurar.
Mas, no episódio, nossa carta de marear não é de Camões e sim de Fernando Pessoa ao recordar o brado:
“Navegar é preciso.
Viver não é preciso”.
Posto hoje no alto da gávea, espero em Deus que em breve possa gritar ao povo brasileiro: Alvíssaras, meu capitão. Terra à vista!
Sem sombra, medo e pesadelo, à vista a terra limpa e abençoada da liberdade.