Câmara dos Deputados da Venezuela, Caracas, em 29/2/1984.
Breve apresentação do Brasil e do PMDB, em meio a uma análise crítica sobre problemas estruturais e conjunturais da América Latina.
Como presidente do maior partido de meu país, pelo testemunho de dezenove milhões de votos nas eleições de 1982, venho a esta Câmara confessar minhas angústias, mas reafirmar minhas esperanças quanto ao destino dos povos latino-americanos. Nossa história comum é a história da luta pela independência nacional, pela justiça social e pela democracia.
É uma batalha de todos os dias, que ainda não vencemos, mas que não admitimos perder. Conquistamos a independência política, arrancada das metrópoles coloniais, pela bravura dos que sonharam a liberdade dos povos de nossa América. Ninguém sonhou e lutou mais por ela do que o libertador Simon Bolívar. Abolimos a repulsiva degradação do trabalho escravo de negros e índios. Contudo, duram mais de século a emancipação política de nossas pátrias, o combate contra as cruéis injustiças de nossas estruturas sociais. Elas abrigam formas hipócritas de servidão, pela madrasta distribuição de renda, filha de modelos de economia selvagem, devastadores de imensas maiorias de desempregados, despossuídos e subempregados, o que degenera a própria raça.
Procuramos o progresso pela modernização das estruturas econômicas e avançamos no rumo da industrialização. Perseguimos o ideal de uma maior igualdade social e de respeito sem restrições aos direitos dos cidadãos. Desgraçadamente os anseios do povo latino-americano, o progresso, a justiça social e a autodeterminação não poucas vezes esbarram no cruel realismo de elites intransigentes em salvaguardar seus privilégios. Ousam conspirar contra a soberania nacional, como cúmplices da dominação estrangeira. Pior do que os gringos, que nos compram, são os nativos traidores, que nos vendem. Por isso, os regimes de força, temerosos do povo, usurpam e cerceiam os direitos inalienáveis da cidadania.
Sr. Presidente, venho à Venezuela, a mais duradoura democracia do continente sul-americano, exemplo para todos nós, num momento em que somos vítimas dos efeitos de prolongada e grave crise econômica e institucional.
Em todos os países da América Latina, a recessão compromete o esforço de industrialização e modernização das últimas décadas. As políticas de ajustamento de balanço de pagamento impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) provocam uma queda sem precedentes nos salários reais, deterioram as condições gerais de vida e lançam no desemprego milhões de trabalhadores. Os credores internacionais, que auferiram lucros incomensuráveis e que prazerosamente acorriam para cá com dólares abundantes, decidiram agora nos penalizar com uma brutal transferência de recursos reais. Nos dois últimos anos, sofremos uma sangria de cinquenta bilhões de dólares. A estratégia dos credores – amparada pelo poder de polícia do Fundo Monetário Internacional – é a de forçar a obtenção de superavits crescentes da balança comercial e reduzir drasticamente os financiamentos para os países da região. O Brasil foi compelido, em 1983, a apresentar um saldo positivo na sua conta de mercadorias de 6,3 bilhões de dólares e a Venezuela gerou excedentes de mais de nove bilhões. Estes resultados só puderam ser conseguidos com a redução brutal das importações, pela deterioração das relações de troca e pelo protecionismo dos países desenvolvidos.
As diretrizes perversas de contenção fiscal e monetária do FMI, marcadas pela retórica arcaica do liberalismo econômico, visam a um único objetivo: querem nos fazer pagar a conta, a pretexto de sermos os únicos responsáveis pelos nossos males. Mas não somos. É verdade que muitos governos irresponsavelmente deram as mãos à ganância dos banqueiros internacionais. Adiaram medidas de reorganização econômica e providências cautelares diante da crise, confiantes em que o crédito fácil seria um filão inesgotável. Mas também é verdade que os países desenvolvidos, especialmente os Estados Unidos da América do Norte, mudaram unilateralmente as regras do jogo em seu próprio benefício. Executaram políticas fiscais e monetárias contraditórias, fizeram saltar as taxas de juros até 21% e declinar o ritmo de crescimento do comércio internacional, tornando insustentável a situação dos países devedores. Parecem imaginar, estes senhores das finanças mundiais, que o nosso continente pode viver sob continuada recessão até o final da década, prolongando o desemprego aberto até o final do século.
Se persistirmos na aceitação destes programas de ajustamento, a América Latina será varrida do mapa como região que desenvolverá suas imensas potencialidades para usufruto do povo. Não nos renderemos à capitulação que nos querem impor, e a recusa em aceitar os termos ignominiosos começará por uma renegociação soberana da dívida externa. Os governos democráticos do presidente Jaime Lusinchi e do presidente Raul Alfonsín, cujos mandatos têm legitimidade democrática, porque nasceram das urnas livres, avançam com gestos firmes na defesa de seus processos de desenvolvimento, exigindo novas condições de pagamento, compatíveis com a preservação da economia e da sociedade de seus respectivos países. Precisamos subordinar o pagamento do serviço da dívida a uma taxa mínima de crescimento econômico. Isto requer aceitação de um período de graça, do reescalonamento do principal a longo prazo e de taxas de juros compatíveis com o crescimento das exportações.
Sr. Presidente, estou firmemente convencido de que a América Latina, de riquezas tão diversas e aspirações comuns, só poderá resistir à crise e avançar nos caminhos do progresso se a união dos povos, construída na democracia, caminhar para a integração econômica, perseguida com o ânimo da sobrevivência. Os próximos anos tornarão inevitável a constituição de um Mercado Comum Latino-Americano e de uma União Latino-Americana de Pagamentos, à margem de hegemonias ou de complementaridades estáticas. Não é desejável uma integração que congele as atuais estruturas econômicas, mas podemos criar mecanismos que permitam a homogeneidade do progresso, em meio à diversidade das potencialidades a serem exploradas. Só estas providências permitirão que a força multiplicada de nossa massa econômica seja traduzida na capacidade política de influir nas decisões que dizem respeito ao nosso futuro. Só estas providências impedirão que as moedas nacionais sejam aviltadas por imposições unilaterais dos que deveriam resguardar a estabilidade das relações comerciais e financeiras do mundo.
Não podemos mais permitir que a nossa divisão seja a força dos que pretendem nos submeter a seus propósitos imperiais. Se queremos nos livrar da opressão de uma divisão internacional do trabalho injusta, base desta ordem econômica em ruínas, devemos construir, conjuntamente, nosso espaço econômico, social e político na ordem que está por nascer. Nenhum país isoladamente poderá resolver seus problemas cruciais: a reorganização financeira e monetária, a definição energética e tecnológica e – mais importante – a garantia de abastecimento alimentar suficiente para as populações latino-americanas. Energia, tecnologia e alimentos não podem ser objeto de ações solitárias na busca a qualquer custo da autossuficiência. A União de Pagamentos é o meio adequado para promover a reativação e a diversificação do comércio intrarregional. Estas são as precondições para que a América Latina participe da nova ordem econômica mundial, a salvo dos percalços que a afetaram, tanto sob a hegemonia britânica, quanto sob a hegemonia americana.
Sr. Presidente, não haverá integração latino-americana enquanto ela depender de governos oligárquicos e ilegítimos afastados dos imperativos de justiça social. Esta é a herança de José Inácio de Abreu Lima, o general brasileiro, herói nascido e enterrado no Brasil e imortalizado no Monumento aos Libertadores, que, ao lado de Simon Bolívar, nutriu com seu sangue e garantiu com seu exemplo a perene amizade entre Venezuela e Brasil. Numa carta ao general José Antônio Páez, ele disse:
“Tenho orgulho de chamar-me um dos libertadores da Venezuela e dos de Nova Granada. Ostento com orgulho as minhas cruzes de Boyaca, de Puerto Cabello e meu nobre escudo de Carabobo. Tenho e conservo o busto de ouro do Libertador que ele mesmo me entregou, como diploma muito honroso; (...) devo ao Libertador meu grau de general”.
Em 1973, anticandidato à Presidência da República que fui, para denunciar o autoritarismo, já advertia para o verdadeiro significado da palavra desenvolvimento:
“O Movimento Democrático Brasileiro, em seu programa, define sua filosofia e seu compromisso com a inadiável ruptura da maldita estrutura da miséria, da doença, do analfabetismo, do atraso tecnológico. A liberdade e a justiça social conformam a face mais bela, generosa e providencial do desenvolvimento, aquela que olha os despossuídos, os subassalariados, os desempregados, os ocupados em ínfimo ganha-pão, ocasional e incerto, enfim, para a imensa maioria dos que precisam para sobreviver, em lugar da escassa minoria dos que têm para esbanjar.
Este é o desenvolvimento vivificado pelas liberdades rooseveltianas, inspiradoras da Carta das Nações Unidas, as que se propõem a libertar o homem do medo e da necessidade. É o perfilhado na encíclica Populorum Progressio, isto é, prosperidade do povo, não do Estado, que lhe é consectário, cunhando seu protótipo na sentença lapidar: o desenvolvimento é o novo nome da paz.
Desenvolvimento sem liberdade e justiça social não tem esse nome. É crescimento ou inchação, é empilhamento de coisas e valores, é estocagem de serviços, utilidades e divisas, estranho ao homem e a seus problemas. Enfatize-se que o desenvolvimento não é silo monumental e desumano, montado para guardar e exibir a mitologia ou o folclore do Produto Interno Bruto, inacessível tesouro no fundo do mar, inatingível pelas reivindicações populares. É intolerável mistificar uma nação, a pretexto de desenvolvê-la, rebaixá-la em armazém de riquezas, tendo como clientela privilegiada, senão exclusiva, o governo, para custeio de tantas obras faraônicas, e o poder econômico, particular ou empresarial, destacadamente o estrangeiro, desnacionalizando a indústria e dragando para o exterior lucros indevidos.
É equívoco fadado à catástrofe o Estado absorver o homem e a nação. A grandeza do homem é mais importante do que a grandeza do Estado, porque a felicidade do homem é a obra-prima do Estado. O Estado é o agente político da nação. Além disso, e mais do que isso, a nação é a língua, a tradição, a família, a religião, os costumes, a memória dos que morreram, a luta dos que vivem, a esperança dos que nascerão”.
Estas palavras podem parecer estranhas pronunciadas no momento de crise econômica, quando está em risco a própria acumulação de riqueza passada. Mas convém ter em mente que o destino da riqueza a ser criada no futuro não deverá ser o mesmo que observamos nestas últimas décadas. E para alterar o estilo de desenvolvimento econômico na direção de uma maior igualdade social, só há um caminho, o da democracia. A plena restauração democrática no Brasil é a luta de meu partido, das oposições e de lideranças operárias, de mulheres, de estudantes, da Igreja, de intelectuais e de minorias discriminadas. Com a sociedade, definida por pesquisas em 95% da população, percorremos 26 estados e territórios, distribuídos na extensão continental de 8.500.000 quilômetros quadrados, falando a multidões que transpõem os marcos históricos de comparecimento em campanhas realizadas em meu país, na recuperação da cidadania, para eleger o presidente da República. Sem eleição direta para presidente da República não há representatividade, sem representatividade não há legitimidade nem credibilidade popular; portanto, sem o voto pessoal dos cidadãos, não se elege um governo, decreta-se a crise de ingovernabilidade da nação.
Sr. Presidente, falando à Câmara dos Deputados, falo ao povo da Venezuela.
Nossa América, integrada pela geografia, não pode continuar antagonizada entre os Estados Unidos da América do Norte e os Estados desunidos da América do Sul.
A grandeza nunca será o destino solitário de qualquer uma de nossas pátrias.
Integração é o nome latino-americano da paz, da abundância e do bem-estar. A paz é indivisível. Não haverá paz na América Latina enquanto não houver paz na América Central. A paz é bela, serena e fecunda, filha do ideal integracionista.
O Grupo Contadora, integrado por Venezuela, México, Colômbia e Panamá, merece todo o nosso apoio, como esforço genuíno, respaldado pelo nosso ecossistema e sem perigos hegemônicos, para que cessem os sangrentos conflitos que infelicitam nossos irmãos centro-americanos.
Repito, para terminar: integração, mas integração de povos, não meramente de governos, porque desgraçadamente entre estes existem as amaldiçoadas e repugnantes ditaduras.
A integração na América Latina tem o nome político de democracia, exercício que não se faz de costas para o povo, é o nome social de pão, saúde, habitação, escola, esperança e alegria para os homens e mulheres da América.
Para o tempo e o espaço da América Latina, ordenou a voz profética de Simon Bolívar:
“Es una idea grandiosa pretender formar de todo el mundo nuevo una sola nación, com un sólo vínculo que ligue sus partes entre si y con el todo. Yo deseo más que otro alguno ver formar en America la más grande nación del mundo, menos por su extensión y riquezas, que por su libertad y gloria”.