Assembleia Nacional Constituinte, em 21/4/1987.
Publicado no DANC de 22/4/1987, p. 1412.
Considerada pelo próprio Ulysses sua mais elaborada – porque distanciada do momento trágico e escrita à sua maneira sincopada de montar os discursos, no silêncio de uma manhã na casa da rua Campo Verde, em São Paulo – declaração sobre a morte de Tancredo Neves.
Tancredo, quando na manhã do dia 22 de abril de 1985, há dois anos, olhei pela última vez seu rosto no saguão do Palácio do Planalto, o que na verdade vi foi a política.
O fascínio e a tragédia da política.
Você se preparou desde vereador, em São João Del Rei, para a Presidência da República.
Seu talento, os astros e a conjuntura o fizeram presidente da República.
À véspera de sua sagração, a fatalidade golpeou duas vezes: sua vida e o sonho de toda a sua vida.
Afinal, entrava no Palácio para o velório, não para a posse.
Viajante batido pelo destino, retornou para o solo paterno, onde começou, irrealizado peregrino de uma jornada inconclusa, imagem inacabada de coluna partida.
Quando você ia ser ungido, o sudário tomou o lugar da coroa de louros.
Glorioso Tancredo, pobre Tancredo!
Assim é a política e assim lutam, sonham, se desesperam e morrem os políticos.
A política é o ofício do perigo, do desafio, do surpreendente, da escalada e da queda.
Tancredo que o diga.
Foi principalmente para os políticos o conselho insano de Nietzsche: “Construí vossas casas à beira do abismo”.
O abismo de abandonar sua profissão, seus negócios, e se distanciar da mulher, filhos e netos; o abismo de não ser reeleito e perambular por corredores e antecâmaras na busca angustiosa e humilhante de um emprego, para que a família possa comer e morar; o abismo da perseguição, da prisão, da tortura, da morte, do exílio; o abismo da mentira, da calúnia, da inveja, das forjadas e vis suspeições, propagadas pelo anonimato covarde e demolidor; o abismo de ser preterido pelo dinheiro, pela bajulação, pelo nepotismo, pelo competidor ajudado pela sorte ou pela fisiologia, não pelo talento.
Em Tancredo, saúdo a louca, forte e bendita raça dos políticos.
Como não há pátria sem democracia, não há pátria sem políticos. O político é a pátria. Quem não gosta da política, não gosta da vida, repudia a política.
“Se serves à pátria com desvelo e ela te é ingrata, não te surpreendas: fizeste o que devias e ela o que costuma.” Eis outro abismo, no consolo do padre Antônio Vieira.
Aqui está Risoleta, sua mulher e minha amiga.
Conviver com Tancredo era dádiva e festa. Era fabuloso e diuturno exercício de alegria.
Posso testemunhar como beneficiário dessa euforia.
Tancredo era um sábio. Sabia conversar, sabia ler, sabia rezar, sabia comer e beber, sabia rir, sabia ironizar, sabia não ter medo, sabia ser cireneu para amigos amargurados, sabia ver o mar, ouvir os passarinhos, imaginar com o vento, namorar as estrelas, sábio para ser suave na forma e forte na ação. Forte como a linha reta e doce como a curva do rio. Pelo bem e pela verdade foi implacável no cumprimento da terrível sentença. Não se faz política sem fazer vítimas.
Tancredo também foi um bruxo. Ninguém resistia a sua sedução. Hipnotizado pelo seu sortilégio, presto meu depoimento sobre o convívio contraditório que tivemos: eu amava, admirava e temia Tancredo.
Enterrado em uma igreja de sua querência, o bruxo foi para o céu.
Acolitado por São Francisco, seu patrono, Tancredo, plebiscitado como presidente, vai convencer Deus com sua súplica.
Que teu exemplo ilumine teus companheiros de ofício.
Que como estadista sejas coautor de nossa Constituição e de nossas leis, para que cheguem aos tugúrios dos miseráveis, com a paz do bem-estar.
Que teu dom de previsão e tua aptidão em decidir ajudem a esconjurar a inflação, câncer apodrecedor da economia, maldição do pobre; exorcizem a vergonha dos juros escorchantes; desarmem a mão genocida de nações e bancos estrangeiros, gerando a recessão, o desemprego e a consequente desestabilização democrática dos países endividados.
Você também, Risoleta, não resistiu ao fascinante sedutor. Teve o privilégio de a seu lado fazer longa e maravilhosa viagem, até que ele ficasse encantado e não morresse, na profecia mágica de Guimarães Rosa, o rapsodo de suas Minas Gerais.
Eu a sabia a doce e animada companheira.
Não conhecia a guerreira que comoveu e fez chorar todo o Brasil, na doença, martírio, agonia, morte e ressurreição de Tancredo.
A soberania da Assembleia Nacional Constituinte ressuscita Tancredo Neves e promulga na História sua imortalidade.
Tancredo morreu, viva Tancredo!