Assembleia Legislativa de São Paulo, em 5/11/1949.
Elogio ao padre José de Anchieta, fundador de São Paulo, o Apóstolo dos Gentios, o Padroeiro de Piratininga, o Santo do Brasil.
Anchieta é viagem retrospectiva ao nosso passado, sugestivo comprovante à prática já sugerida da política do regresso, a fim de que um presente de perigos não enterre um passado de grandezas. Evoquemos emocionado o torto e franzino açoriano. Atlas aleijado, que em seus ombros desconjuntados ergueu e sustém a surpreendente edificação moral de São Paulo, criatura piedosa de seu amor cristão, fecunda descendente do milagroso celibatário que gerou o futuro paulista.
Recordemos, em sua figura minguada, a efeméride genetlíaca de 25 de janeiro de 1554, pedra fundamental de São Paulo, natal de Piratininga. Plantada no planalto para que só respirasse pureza e liberdade; egressa do ventre imaculado de uma igreja, que a fez bendita e invulnerável, e de um colégio, que a iluminou e a predestinou. Aprouve à Providência dar o nome de Apóstolo da Conversão à Meca do Bandeirismo. Ela soube cumprir o augúrio: foi, no espaço, a estrada de Damasco, que o Brasil trilhou para ir buscar suas fronteiras continentais, e foi, no tempo, a escada de Jacó, que o Brasil subiu em quatro séculos trescalantes de trabalho e prosperidade.
No altiplano amortalhado em garoa, encrespado de colinas, rasgado por vales e estirado em retas relvosas, nessa manhã de Gênesis, que é 5 de janeiro de 1554, alteia-se uma figura esquálida, face enxuta e macerada, imensamente triste e, por isso, imensamente boa.
É Anchieta, o Taumaturgo da Selva, o Apóstolo dos Gentios, o Padroeiro de Piratininga, o Santo do Brasil.
Em êxtase profético, seus olhos se projetam além das coisas e por sobre as idades e veem o Tamanduateí guardando nas retinas líquidas e barrentas o cromo agreste da missa batismal, com o altar e a cruz de madeira verde e resinosa, tendo em volta bugres balouçantes nos galhos das árvores e as rijas cunhãs amamentando nos seios apojados os curumins assustados; veem o colégio tal qual o descreveu em carta o Santo Inácio de Loyola: “barranquinha de caniço e barro, coberta de palha, longa 14 pés, larga 10. É isto a escola, a enfermaria, o dormitório, refeitório, cozinha, despensa”; veem a miséria e o desconforto como apearem de tal sorte, que necessita improvisar-lhe médico, enfermeiro, barbeiro, artífice de alpercatas, e implorar a São Vicente que lhe mande as velas rotas e inúteis dos navios, para que, ao menos, seus catecúmenos a ele próprio tivessem com que se vestir e se resguardar contra o frio intenso; veem cair sobre a povoação inerme a sombra exterminadora da Confederação dos Tamoios, entoando macabra marcha fúnebre na algaravia rítmica dos maracás chocalhantes, das inúbias e borés zinindo imprecações guerreiras, dos atabaques anunciando rubras vinditas de carnificina; veem o casario qual vaga humana galgar os outeiros, espraiar-se pelas lapas e acompanhando a crista dos espigões; os conventos de São Bento, de São Francisco e do Carmo são os vértices do triângulo que foi a medula da metrópole futura; veem a rebeldia e a impaciência aventureira do planalto aleitarem a estirpe jupiteriana dos mamelucos, os bandeirantes do apresamento indígena e do recuo de Tordesilhas, os façanhudos caboclos de gibão de couro e arcabuz de pederneira, que, sob bimbalhos nervosos dos sinos, partiam em monções, deixando a vila vazia de homens válidos e, arriscando-se pelo Tietê estrangulado em itaipavas traiçoeiras e suicidas nos saltos mortais das cachoeiras, em verdade, eram os primeiros instrumentos do fatalismo histórico, que sempre foi uma constante no destino de São Paulo, qual seja o de estar tantas vezes ausente de seus próprios interesses para estar mais presente no interesse maior do Brasil; veem ainda Amador Bueno, por lealdade, recusar uma coroa, Pedro I libertar a pátria na colina sagrada do Ipiranga, José Feliciano Fernandes Pinheiro, o visconde de São Leopoldo, fundar os cursos jurídicos, alojando-os no Mosteiro de São Francisco, sem dúvida, para que a beca do doutor em leis se impregnasse da austeridade impoluta da túnica do sacerdote; e, finalmente, no prodígio dessa antevisão, os olhos de Anchieta, em clarões de entusiasmo e ofegantes de orgulho paternal, admiram o São Paulo de hoje, em que os arranha-céus saltaram para as alturas quais lépidos sacis-pererês de cimento armado e vigas de aço, os viadutos pularam acrobaticamente os vales, as ruas e avenidas espicharam-se e se multiplicaram como grossas veias onde circulam trêfegas multidões e veículos vertiginosos, o gás neônio pondo corisco cor de sangue no pretume da noite, as fábricas a apitar no ouvido róseo das madrugadas, enfim, o São Paulo que trabalha, sem descanso, na indústria, que planta lavouras, que apascenta rebanhos, que reza nas igrejas, que se ilustra nas escolas, que se exercita nos quartéis, apaixonadamente devotado à glória e à unicidade do Brasil.
E, sem dúvida, vê também, com os olhos orvalhados de gratidão, a cerimônia atual, em que na Casa da Lei Secular se entroniza a imagem do apóstolo da lei moral eterna. Anchieta é um santo que há mais de trezentos anos busca um altar. Canonizamo-lo civicamente hoje, neste plenário, que a democracia garante o redentor inquilinato da liberdade de palavra e opiniões, nele inaugurando seu busto como anátema causticante contra os apóstatas do bem e da verdade.
Foram os jesuítas, dos quais Anchieta é o arquétipo imortal, pizarros às avessas por conquistarem contra os conquistadores e que, ao defenderem nos aborígines sua condição humana, infensa a serem tratados como coisas sujeitas à propriedade, tornaram-se, em verdade, nossos primeiros mestres de direito, professando da cátedra verde das selvas as prerrogativas fundamentais e inalienáveis do homem.
Muito bem, portanto, ficará entre nós a presença evocativa desse meigo legislador de almas, desse suave jurisperito de consciências. Ela lembrará aos mandatos políticos que se albergarem sob este teto livre o ensinamento evangélico que poderá salvar a época delirante que vivemos: política, antes de ser ciência ou arte, é virtude.
Reconciliemo-nos com nossas origens austeras e viris ao pormos nossos trabalhos sob a presidência moral de Anchieta, esse andarilho Pedro Álvares Cabral das selvas, que desbravou o pedestre Colombo dos corações autóctones e mamelucos, que descobriu para Deus e para a pátria.
Semelhante paraninfado ético significará para nós e para os que nos sucederem nesta tribuna e nessas poltronas que São Paulo só continuará como nasceu das santas mãos de Anchieta.
Servo da Cruz, para ser livre da descrença; honrado e esburacado colégio de paus bentos, para não ser desonrado pela ignorância; lutando sempre pelo bem, pela verdade e pelas liberdades humanas para que não se suicide com a morte política da tirania ou com a morte civil da indignidade.