Saudação a Felipe González

Assembleia Nacional Constituinte, em 16/6/1987.

Publicado no DANC de 17/6/1987, p. 2701.

Ao receber o primeiro-ministro da Espanha, Felipe González, uma declaração que Ulysses redigiu à mão, extremamente calorosa e pessoal, e que mandou publicar sob o título “Sem consenso, não há bom senso”.

Duas circunstâncias excepcionais singularizam a homenagem que lhe tributa o Parlamento brasileiro. Por concordância do presidente do Congresso Nacional, o digno senador Humberto Lucena, V.Exa. é recebido pela Assembleia Nacional Constituinte, e o é como chefe de governo e não de Estado, o que registra outra excepcionalidade.

É simples a justificativa: Felipe González é personalidade excepcional.

Felipe González é um estadista. O homem público pode ter talento, decência e operosidade. Mas só será estadista se tiver coragem. Sem a coragem, todas as demais virtudes perecem na hora de perigo ou de decisão de risco.

Felipe González, entre outros lances de sua biografia política, revelou coragem quando, em 1979, renunciou espetacularmente ao cargo de secretário-geral de seu partido, o PSOB, bem como quando condicionou sua permanência no governo à participação da Espanha na Otan. A convocação do plebiscito para homologação do gesto, que as pesquisas de opinião pública indicavam que seria derrotado, mereceu de Bettino Craxi a célebre admoestação: “Você é louco”.

Felipe González respondeu que se tratava de um compromisso. Um político pode ser derrotado por cumprir um compromisso, mas não pode ser desonrado por descumprir um compromisso.

Outra alternativa carregada de contestação foi o ingresso na Comunidade Econômica Europeia.

Eis exemplares e audaciosos exemplos do estadista Felipe González.

Há uma regra no ofício político: não haver nele carreiras napoleônicas.

É a correlação do aforismo latino de que a natureza não dá saltos. O tempo é cadinho da carreira política. E o tempo não perdoa o que se faz sem ele.

Aqui retorno ao mote de minhas palavras iniciais. Na Europa, na Espanha milenar, sob o signo da excepcionalidade, Felipe González ascende a chefe do governo de sua pátria aos quarenta anos. O mais jovem do século no continente.

As ruas e praças, regozijantes de multidões ovacionantes, cunharam o apelido do fenômeno popular e democrático: El Huracán, o furacão.

Sr. Presidente Felipe González, há profunda semelhança entre o que contemporaneamente ocorre entre seu país e o nosso.

Foi através da transição e não da ruptura que evoluímos da ditadura para a democracia.

Em ambas as nações, o sangue não foi a parteira do regime popular. Este é filho da cidadania, não das armas.

No Brasil, foi um pacto que levou cinquenta milhões de pessoas às ruas, na histórica campanha das eleições diretas.

Toda transição é terrivelmente difícil. Ainda não é o novo, por isso é criticada, e luta contra o velho, por isso é repelida pela inércia. Além do consenso e, com ele, a busca do bom senso.

V.Exa., com sabedoria, coragem e determinação, ensina que é preciso sobretudo imaginação, flexibilidade e, pitorescamente, prega a síntese entre a coca-cola e a vodca, um socialismo sem Marx, exclusão que teve o preço de sua famosa renúncia ao comando de seu partido.

No Brasil, marchamos. Com tropeços, quedas, incompreensões, mas marchamos para a consolidação democrática. Fincamos marcos democráticos notáveis: o voto do analfabeto, a eleição direta para todos os níveis da administração, a pluralidade partidária abrangendo as legendas ideológicas, a pureza na votação e apuração com o recenseamento eleitoral e, como coroamento, a histórica convocação da Assembleia Nacional Constituinte pelo presidente José Sarney e sua aprovação pelo Congresso Nacional.

Presidente Felipe González, percorre a América Latina, mais do que um desejo, a prática da integração. Temos que nos unir para sobreviver. Essa integração deve se estender à Espanha e Portugal pelos ditames da História, principalmente pelas oportunidades que se abrem pelo ingresso das nações genitoras no Mercado Comum Europeu.

Sinta-se, assim, no Brasil, como se estivesse em sua casa integracionista.

Recebido como filho do Brasil, como tantos patrícios seus, e nosso concidadão, pois a luta pela liberdade transforma seus heróis em cidadãos da humanidade. Por consenso universal, Felipe González é um deles.

Como constituinte, saúdo o constituinte Felipe González fazendo minhas as exemplares e justas palavras do presidente do Congresso Nacional, senador Humberto Lucena, do senador Fernando Henrique Cardoso e do deputado Bonifácio de Andrada.

No Brasil, V.Exa. está recebendo acolhida fervorosa pelo governo, pela imprensa, por seus patrícios e descendentes. Nenhuma, porém, superará a deste momento.

O povo brasileiro, que vinte anos lutou e sofreu para, soberanamente, se reunir em Assembleia Nacional Constituinte, proclama que Felipe González pode entrar, ser aclamado, falar nesta Casa e ser chamado companheiro, pois o amor à liberdade o levou à prisão e ao exílio, e o governo social que empreende na Espanha é convincente testemunho de que a democracia é áspera, mas insubstituível caminho para o bem-estar, a segurança e a dignidade dos povos.