Câmara dos Deputados, em 6/3/1991.
Publicado no DCN-I de 7/3/1991, p. 1266.
Defesa de projeto patrocinado pelo PMDB para regulamentar o art. 62 da Constituição, proibindo a reedição ilimitada de medidas provisórias e apelando ao presidente Fernando Collor para que se autolimitasse no uso, pois já se transformavam em “desmedidas”.
Subo a esta tribuna, por designação de meu talentoso líder Genebaldo Correia, carregado pela transcendência da decisão que o Congresso brasileiro vai tomar.
A ela assomo também como veterano expedicionário e com as cicatrizes das lutas pela restauração da dignidade democrática neste país.
Sr. Presidente Ibsen Pinheiro, ao saudar sua sábia e corajosa determinação de, sem delongas, submeter ao Plenário matéria tão polêmica e difícil, permito-me recordar que a democracia é a técnica política da prudência, vigilância e desconfiança da soberania popular em delegar seu poder original a seus representantes.
Daí, dar e tirar mandatos pela periodicidade. Subdividir em três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. As respectivas competências não são exclusivas em nenhum deles: o Executivo é Legislativo na propositura de mensagens e no exercício da sanção ou do veto; o Legislativo é Executivo na administração impenetrável, interna, de seu espaço de independência e na nomeação de altos funcionários da República; o Judiciário é Legislativo pela iniciativa de leis em sua área: “proposer la loi, c’est régner”, no magistério dos juristas e na revogação das leis por inconstitucionalidade.
Estes e outros são os freios e contrapesos na formulação histórica e cautelosa dos Founding Fathers do regime presidencialista criado nos Estados Unidos da América do Norte.
O fundamento é de que o poder não pode estar nas mãos de um homem só, de uma instituição só, de uma oligarquia ou plutocracia só.
Para ser democrático, há de ser condominiado.
Séculos de mártires e abusos testemunham que não é o poder que corrompe o homem. É o homem que corrompe e abusa do poder.
Na ontologia e na teleologia da Constituição, a medida provisória, ao se degradar em desmedida provisória, audaciosamente afronta a Constituição e ultraja a instituição.
A instituição está acima da Constituição.
Portugal de Salazar, a Espanha de Franco, a União Soviética antes do período libertário de Gorbachev, o torvo período autoritário brasileiro tiveram Constituições, mas não tiveram a instituição, porque a instituição se chama democracia.
Sr. Presidente, o tempero do tempo é a têmpera duradoura da lei. O tempo não perdoa o que se faz sem ele, na genial advertência de Joaquim Nabuco. É substancial o tempo na elaboração das boas leis, para que elas durem com o tempo. Também nas leis, o tempo é o exercício da cidadania.
Eis a razão institucional pela qual o Legislativo tem geralmente duas Casas como instâncias de reflexão.
Frequentemente se censura o Legislativo pela demora que, sendo protelatória ou preguiçosa, é inaceitável. Mas é precisamente nesse período de sazonamento que está baseado um dos pré-requisitos da lei.
Senadores e deputados, não somos legisladores exclusivos. O povo é o legislador supremo, criticando, sugerindo, aplaudindo ou condenando as matérias em causa no Parlamento, bem como seus autores.
Os cidadãos não podem ser surpreendidos e alarmados por decisões imaturas, muito menos instantâneas.
Povo quer dizer participação. Inclusive pelo direito natural de defesa de seu patrimônio, de sua saúde, de sua educação, até de sua sobrevivência.
Portanto, a instantaneidade da vigência da medida provisória, quando antidemocraticamente aviltada em desmedida provisória, é o monstro jurídico, político, social, econômico e sindical.
Não paire dúvida. Somos a favor do uso da medida provisória, como delegação admitida também nos países democráticos, mas somos indignadamente contra o abuso das medidas provisórias, prática revogatória dos fundamentos democráticos.
Somos contra principalmente pela repetência.
A repetência é um flagelo na educação. A desmedida provisória é a reprovação pelas lições estruturais do regime republicano.
Acrescente-se que a abominável extralimitação é insuportável cacófato, profanando a língua e a gramática.
A ilimitação das reedições pode ter até a extensão do mandato presidencial. Assim, onde está escrito “provisória”, a sinceridade manda ler “permanente”.
Sr. Presidente, agora chego à exegese do tristemente famoso art. 62 da Constituição Federal.
Ele autoriza o uso, não o abuso da legislação unipessoal do presidente da República.
Nenhum artigo da Constituição ou de qualquer lei pode ser pinçado, como ente autônomo e autodeterminável em sua hermenêutica e muito menos em sua aplicação.
É como arrancar o órgão do organismo. Ele ou os dois morrem.
Todo dispositivo legal há de ser interpretado em seu contexto, em seu universo, em seu sistema. É o conteúdo de um continente.
Não havendo respeito às órbitas, até o cosmo explodiria.
Consectário com esse pressuposto, as leis são pesquisadas pela sua mens legislatoris, isto é, o que estava na cabeça dos legisladores ao editá-las. Também na mens legis, porque as leis não são inertes, têm mente, falam, são racionais.
Não mais se perfilha o in claris cessat interpretatio. Tudo se interpreta.
Se fossem necessários mais argumentos, aí está, para comprová-lo, a jurisprudência vária e até contraditória dos tribunais. No tempo, as mesmas leis, com vozes diferentes conforme as circunstâncias, mudam para servir às mutações da sociedade.
É transparente: não se pode interpretar, muito menos aplicar, uma lei pelo absurdo, pela insensatez, para a nocividade.
A lei existe para o bem, não para o mal.
O povo romano, que não teve Constituição escrita, teve o dogma, que é a síntese de todas as Constituições, “Salus populi suprema lex esto”, vale dizer, a salvação do povo e o bem do povo são a suprema lei.
Em latim ou em português, as desmedidas provisórias têm sido não o bem, mas o mal do povo. De conseguinte, vamos exorcizá-las. Aqui, hoje, agora.
Sras. e Srs. Congressistas, esta nação não pode continuar sob o signo, mais do que o signo, o estigma, mais do que o estigma, a maldição da provisoriedade.
Congresso Nacional funcionalmente provisório, pois na verdade é pronto-socorro diário, tentando salvar vítimas da arbitrariedade das desmedidas provisórias ou, pelo menos, minorar suas lesões.
Tudo se tornou provisório neste país: os salários, os empregos, as empresas, a agricultura, a própria vida.
Sr. Presidente Fernando Collor de Melo, a provisoriedade da vida é desígnio de Deus. Não dos homens.
A luta dos brasileiros não foi pela provisoriedade, mas pela estabilidade democrática.
Como símbolo de tantos outros, essas cadeiras e esta tribuna foram frequentadas pelo nosso colega Rubens Paiva, assassinado pela provisoriedade da ditadura, na defesa da estabilidade democrática.
Pelo mesmo princípio, também o operário Santo Dias e o jornalista Vladimir Herzog foram trucidados.
Os mortos vigiam os vivos. Não vamos profaná-los votando contra a disciplina estatuída, em termos de universo e intransponibilidade de limites, abrangidos pelo irrepreensível projeto do talentoso jurista Nélson Jobim, com sábios suplementos do relator, deputado José Luís Clerot.
Ao finalizar, dirijo-me esperançosamente ao presidente Fernando Collor de Melo.
É tarde, mas ainda é tempo.
Chega de provisoriedade, Sr. Presidente da República.
O Brasil só se salvará com a estabilidade das leis, da moeda, dos salários, das relações preço e salário, do desenvolvimento.
O Brasil não pode continuar acordando atônito, confuso, desesperado. O Brasil quer socorro, não improvisações.
Permito-me fraternalmente aconselhar V.Exa.
Não se deixe aprisionar pelas desmedidas provisórias. Precavenha-se contra o efeito bumerangue.
Não desobedeça a Aristóteles no “o homem é um animal gregário” e fuja da maldição do Eclesiastes: vale solis, ai do solitário.
Em sua campanha, V.Exa. buscou acender a chama da esperança nos descamisados. Eles lhe deram, tantos deles, seus votos pelo compromisso de pão, salário e emprego.
Se lhe deram o voto, não lhe deram a liberdade.
A liberdade de tempestivamente participarem da vida nacional, notadamente da edição de leis.
Antes de abandonar esta tribuna, abraço os companheiros que comungam da mesma causa.
Estendo fraternalmente o mesmo abraço aos que, em tantos episódios, têm divergido de nós.
Eu os abraço com a consagradora definição: democracia é o convívio de contrários.
Mas convivência dentro da Constituição, não fora ou contra ela.
Definitivamente a desmedida provisória é inconstitucionalissimamente inconstitucional.
Sras. e Srs. Deputados, esta Casa é uma trincheira. O povo nos convocou para ela como soldados da democracia, não como desertores da democracia.